quinta-feira, 3 de setembro de 2009

Antônio Girão Barroso: o percurso de uma poética



A obra literária de Antônio Girão Barroso está inserida no Modernismo e, ao longo de seu percurso, acompanha as evoluções que tal estética sofreu, tanto em relação a traços estilísticos quanto a elementos temáticos. Seus poemas revelam a ruptura com os formalismos anteriores ao modernismo e a busca do coloquialismo da fala brasileira; daí a valorização dos versos livres e brancos ou, então, a combinação de versos de metros variados.

Poesias incompletas, de Antônio Girão Barroso (Edições UFC, 119 páginas) reúne, praticamente, toda a sua produção, cuja linguagem, sem sombra de dúvidas, é ponto de destaque em estética, com acento ao português popular, coloquial, pleno de brasileirismos, de neologismos, expressões populares e emprego irregular dos sinais de pontuação.

Nasceu Antônio Girão Barroso em Araripe (CE) aos 6 de junho de 1914 e morreu, em Fortaleza (CE) em 1990. Realizou a poesia, o conto, a crítica, sendo jornalista e professor universitário - graduado em Direito, fez doutorado em Economia. Foi membro do Grupo Clã - movimento artístico que, nos anos 1940, sedimentou as conquistas modernistas no Ceará -, ao lado de Aluísio Medeiros, Artur Eduardo Benevides, Eduardo Campos, João Clímaco Bezerra e Moreira Campos, dentre outros.

No poema de abertura, ´Estação de trem´, Antônio Girão Barroso já aponta a sua intenção em romper - particularmente aqui, no Ceará - com os padrões tradicionais da poesia, que se impuseram como verdadeiros cânones antes do advento do Modernismo: do ponto de vista formal, há o livre emprego de versos longos e curtos, sem métrica regular, bem como a presença apenas de rimas ocasionais, a dessacralização da linguagem por meio da fala matuta (´vem danado pra chegá´ - aqui, estabelece-se uma intertextualidade com Ascenso Ferreira, poeta pernambucano, autor dos versos: ´Vou danado pra Catende / com vontade de chegá´) e a exploração de recursos sonoros: Lá-e-vem o trem / lá-e-vem / com seu apito tão fino / vem danado pra chega /// Pacatú-b-a-bá / Paratú-b-a-bá /// Corre, menina / teu pai chegou / o trem das nove / não já apitou? /// Banana seca é o pau que rola. /// Lá-e-vem o trem / lá-e-vem / com seu apito tão fino / vem danado pra chegá /// Pacatú-b-a-bá / Paratú-b-a-bá /// Donde vem esse povo? / Vem do Ceará! /// Pacatú-b-a-bá / Paratú-b-a-bá /// Seu moço, me dê uma esmola / pelo santo amor de Deus... /// esse cego tá fazendo verso?/// O trem vinha puxando noventa / Ah trem espritado! /// Um bando de colegiais / tão fazendo sururu na vila. / Tem um bebendo até cachaça / o Acarape é tão perto / cachaça é quase de graça / contudo ele já gastou seiscentos reis.../// Fiu... / O trem partiu / Pacatuba sumiu. /// (Mas que vontade de voltar...) /// Pacatú-b-a-bá (p. 11-12)

Antônio Girão Barroso, à semelhança de Manuel Bandeira (a quem dedica esse poema, ressaltando a intertextualidade com ´Trem de ferro´, do poeta pernambucano) sabe, muito bem, unir humor, calor humano e ritmos sugestivos.

Ainda que não haja descrições do cenário, este se desenha por sugestões: a princípio, uma casa, onde a mãe lembra à filha a chegada do pai, e a interrogação: ´o trem das nove / já não apitou?´ nos revela que o trem funciona também como um cronômetro coletivo da cidadezinha; por fim, a própria estação, também delineada por gestos e atitudes dos moradores: a oferta de iguarias (mariola); a mendigação (´Seu moço, me dê uma esmola / pelo santo amor de Deus...´) - nesse caso, o rogo, em redondilha maior, deu ao ´moço´ a sensação de que o ´cego´ fizesse ´verso´. O trem, então, muda a paisagem da cidade: incitam-se os colegiais, os botequins... até que o trem parte, desfazendo o sonho.

Ainda que esteja comprometido com a inserção definitiva das idéias modernistas entre nós,

A. G. B. tem, notadamente, conhecimentos da evolução das conquistas modernas (Manuel Bandeira, com ´Libertinagem´; e Drummond, com ´Alguma poesia´ - livros publicados em 1930); desse modo, sente-se à vontade de versejar em ritmo metrificado; mas, no propósito de aliar literatura e povo, escolhe a redondilha (menor) - um dos ritmos mais populares entre nós, conforme, os versos de ´Vida´: Proezas não tenho / na vida tão pau / nem lances terríveis / tragédias enfim / com choros pesados / e mortes no meio / senão que uma vez / morrendo afogado / gritei pros passantes / me acudam me acudam. / Mas isso é tão simples / acho isso tão besta / tão sem novidade / a vida todinha / me acudam, me acudam.

O eu lírico reconhece-se numa pessoa comum, anônima - em verdade, um anti-herói, mergulhado numa vida monótona, sem grandes feitos: ´Proezas não tenho / na vida tão pau´. Assim, não foi lancetado por ´lances terríveis´ ou ´ tragédias´, isto é, não sentiu ainda, por perto, a experiência da morte ou das perdas inexoráveis. Tal atmosfera, porém, é quebrada ao lembrar-se de que, um dia, ´morrendo afogado´, pediu socorro, sendo, portanto, salvo.

O poema, a partir desse momento, aponta uma nota comum em A. G. B.: a fusão do cotidiano a elementos do eu, pois, o elemento externo lhe possibilita criar uma dimensão interior de infinitas complexidades; desse modo, o episódio concreto do afogamento converte-se no espelho de uma postura existencial: a de sentir-se, constantemente, desamparado, sozinho, à mercê do socorro público.

Fonte:
Diario do Nordeste. 22.10.2006. Seção Cultura. http://diariodonordeste.globo.com/materia.asp?codigo=375672

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