A LITERATURA e a política, estas duas faces bem distintas da sociedade civilizada, cingiram como uma dupla púrpura de glória e de martírio os vultos luminosos da nossa história de ontem. A política elevando as cabeças eminentes da literatura, e a poesia santificando com suas inspirações atrevidas as vítimas das agitações revolucionárias, e a manifestação eloquente de uma raça heróica que lutava contra a indiferença da época, sob o peso das medidas despóticas de um governo absoluto e bárbaro. O ostracismo e o cadafalso não os intimidavam, a eles, verdadeiros apóstolos do pensamento e da liberdade; a eles, novos Cristos da regeneração de um povo, cuja missão era a união do desinteresse, do patriotismo e das virtudes humanitárias.
Era uma empresa difícil a que eles tinham então em vista. A sociedade contemporânea era bem mesquinha para bradar—avante! —aqueles missionários da inteligência e sustentá-los nas suas mais santas aspirações. Parece que o terror de uma época colonial inoculava nas fibras íntimas do povo o desânimo e a indiferença.
A poesia de então tinha um caráter essencialmente europeu. Gonzaga, um dos mais líricos poetas da língua portuguesa, pintava cenas da Arcádia, na frase de Garrett, em vez de dar uma cor local às suas liras, em vez de dar-lhes um cunho puramente nacional. Daqui uma grande perda: a literatura escravizava-se, em vez de criar um estilo seu, de modo a poder mais tarde influir no equilíbrio literário da América. Todos os mais eram assim: as aberrações eram raras. Era evidente que a influência poderosa da literatura portuguesa sobre a nossa, só podia ser prejudicada e sacudida por uma revolução intelectual.
Para contrabalançar, porém, esse fato cujos resultados podiam ser funestos, como uma valiosa exceção apareceu o Uraguai de Basílo da Gama. Sem trilhar a senda seguida pelos outros, Gama escreveu um poema, se não puramente nacional, ao menos nada europeu. Não era nacional, porque era indígena, e a poesia indígena, bárbara, a poesia do boré e do tupã, não é a poesia nacional. O que temos nós com essa raça, com esses primitivos habitadores do país, se os seus costumes não são a face característica da nossa sociedade?
Basílio da Gama era entretanto um verdadeiro talento, inspirado pelas ardências vaporosas do céu tropical. A sua poesia suave, natural, tocante por vezes, elevada, mas elevada sem ser bombástica, agrada e impressiona o espírito. Foi pena que em vez de escrever um poema de tão acanhadas proporções, não empregasse o seu talento em um trabalho de mais larga esfera. Os grandes poemas são tão raros entre nós!
As odes de José Bonifácio são magníficas. As belezas da forma, a concisão e a força da frase, a elevação do estilo, tudo encanta e arrebata. Algumas delas são superiores às de Filinto. José Bonifácio foi a reunião dos dois grandes princípios pelos quais sacrificava-se aquela geração: a literatura e a política. Seria mais poeta se fosse menos político; mas não seria talvez tão conhecido das classes inferiores. Perguntai ao trabalhador que cava a terra com a enxada, quem era José Bonifácio; ele vos falará dele com o entusiasmo de um coração patriota. A ode não chega ao tugúrio do lavrador. A razão é clara: faltam-lhe os conhecimentos, a educação necessária para compreendê-la.
Os Andradas foram a trindade simbólica da inteligência, do patriotismo, e da liberdade. A natureza não produz muitos homens como aqueles. Interessados vivamente pela regeneração da pátria, plantaram a dinastia bragantina no trono imperial, convíctos de que o herói do Ipiranga convinha mais que ninguém a um povo altamente liberal e assim legaram à geração atual as douradas tradições de uma geração fecunda de prodígios, e animada por uma santa inspiração.
Sousa Caldas, S. Carlos e outros muitos foram também astros luminosos daquele firmamento literário. A poesia é a forma mais conveniente e perfeitamente acomodada às expansões espontâneas de um país novo, cuja natureza só conhece uma estação, a primavera, teve naqueles homens, verdadeiros missionários que honraram a pátria e provam as nossas riquezas intelectuais ao crítico mais investigador e exigente.
Uma revolução literária e política fazia-se necessária. O país não podia continuar a viver debaixo daquela dupla escravidão que o podia aniquilar. A aurora de 7 de Setembro de 1882, foi a aurora de uma nova era. O grito do Ipiranga foi o - Eureca- soltado pelos lábios daqueles que verdadeiramente se interessam pela sorte do Brasil cuja felicidade e bem-estar procuravam.
O país emancipou-se. A Europa contemplou de longe esta regeneração política, esta transição súbita da servidão para a liberdade, operada pela vontade de um príncipe e de meia dúzia de homens eminentemente patriotas. Foi uma honrosa conquista que nos deve encher de glória e de orgulho; e é mais que tudo uma eloqüente resposta às interrogações pedantescas de meia dúzia de céticos da época: o que somos nós?
Havia, digamos de passagem, no procedimento do fundador do império um sacrifício heróico, admirável e pasmoso. Dois tronos se erguiam diante dele: um, cheio de tradições e de glórias; o outro, apenas saído das mãos do povo, não tinha passado, e fortificava-se só com uma esperança no futuro! Escolher o primeiro era um duplo dever, como patriota e como príncipe. Aquela cabeça inteligente devia dar o seu quinhão de glória ao trono de D.Manuel e D. João II. Pois bem! ele escolheu o segundo, com o qual nada ganhava, e ao qual ia dar muito. Há poucos sacrifícios como este.
Mas após o fiat político, devia vir o fiat literário, a emancipação do mundo intelectual, vacilante sob a ação influente de uma literatura ultramarina. Mas como? É mais fácil regenerar uma nação, que uma literatura. Para esta não há gritos de Ipiranga; as modificações operam-se vagarosamente; e não se chega em um só momento a um resultado. Além disso, as erupções revolucionárias agitavam as entranhas do país; o facho das dimensões civis ardia em corações inflamados pelas paixões políticas. O povo tinha-se fracionado e ia derramando pelas próprias veias a força e a vida. Cumpria fazer cessar essas lutas fratricidas para dar lugar as lutas da inteligência, onde a emulação é o primeiro elemento e cujo resultado imediato são os louros, fecundos da glória e os aplausos entusiásticos de uma posteridade agradecida.
A sociedade atual não é decerto compassiva, não acolhe o talento como deve fazê-lo. Compreendam-nos! nós não somos inimigo encarniçado do progresso material. Chateaubriand o disse: " quando se aperfeiçoar o vapor, quando unido ao telegrafo tiver feito desaparecer as distâncias, não hão de ser só as mercadorias que hão de viajar de um lado a outro do globo, com a rapidez do relâmpago; hão de ser também as idéias". Este pensamento daquele restaurador do cristianismo-é justamente o nosso-; nem é o desenvolvimento material que acusamos e atacamos. O que nós queremos, o que querem todas as vocações, todos os talentos da atualidade literária, é que a sociedade não se lance exclusivamente na realização desse progresso material, magnífico pretexto de especulação, para certos espíritos positivos que se alentam no fluxo e refluxo das operações monetárias. O predomínio exclusivo dessa realeza parva, legitimidade fundada numa letra de câmbio, é fatal, bem fatal às inteligências; o talento pode e tem também direito aos olhares piedosos da sociedade moderna: negar-lhos é matar-lhe todas as aspirações, é nulificar-lhe todos os esforços aplicados na realização das idéias mais generosas, dos princípios mais salutares, e dos germes mais fecundos do progresso e da civilização.
É sem dúvida, por este doloroso indiferentismo que a geração atual tem de encontrar numerosas dificuldades na peregrinação; contrariedades que, sem abater de todo as tendências literárias, toda via podem fatigá-las reduzindo-as a um marasmo apático, sintoma doloroso de uma decadência prematura.
No estado atual das coisas, a literatura não pode ser perfeitamente um culto, um dogma intelectual, e o literato não pode aspirar a uma existência independente, mas sim tornar-se um homem social, participando dos movimentos da sociedade em que vive e de que depende. Esta verdade, exceto no jornalismo, verifica-se em qualquer outra forma literária. Ora, será possível que assim tenhamos uma literatura convenientemente desenvolvida?
Respondemos pela negativa.
Tratemos das três formas literárias essenciais: -o romance, o drama e a poesia.
Ninguém que for imparcial afirmará a existência das duas primeiras entre nós; pelo menos, a existência animada, a existência que vive, a existência que se desenvolve fecunda e progressiva. Raros, bem raros, se tem dado ao estudo de uma forma tão importante como o romance; apesar mesmo da convivência perniciosa com os romances franceses, que discute, aplaude e endeusa a nossa mocidade, tão pouco escrupulosa de ferir as susceptibilidades nacionais.
Podíamos aqui assinalar os nomes desses poucos que se têm entregado a um estudo tão importante, mas isso não entra na ordem deste trabalho, pequeno exame genérico das nossas letras. Em um trabalho de mais largas dimensões que vamos empreender analisaremos minuciosamente esses vultos de muita importância decerto para a nossa recente literatura.
Passando ao drama, ao teatro, é palpável que a esse somos o povo mais parvo e pobretão entre as nações cultas. Dizer que temos teatro, é negar um fato; dizer que não o temos, é publicar uma vergonha. E todavia assim é. Não somos severos: os fatos falam bem alto. O nosso teatro é um mito, uma quimera. E nem se diga que queremos que em tão verdes anos nos ergamos a altura da França, a capital da civilização moderna; não! Basta que nos modelemos por aquela renascente literatura que floresce em Portugal, inda ontem estremecendo ao impulso das erupções revolucionárias.
Para que estas traduções enervando a nossa cena dramática? Para que esta inundação de peças francesas, sem o mérito da localidade e cheias de equívocos, sensaborões as vezes, e galicismos, a fazer recuar o mais denodado francelho?
É evidente que é isto a cabeça de Medusa, que enche de terror as tendências indecisas, e mesmo as resolutas. Mais de uma tentativa terá decerto abortado em face desta verdade pungente, deste fato doloroso.
Mas a quem atribuí-lo? Ao povo? O triunfo que obtiveram as comédias do Pena, e do Sr. Macedo, prova o contrário. O povo não é avaro em aplaudir e animar as vocações; saber agradá-lo, é o essencial.
É fora de dúvida, pois, que a não existir no povo a causa desse mal. não pode existir senão nas direções e empresas. Digam o que quiserem, as direções influem
neste caso. As tentativas dramáticas naufragam diante deste czariato de bastidores, imoral e vergonhoso, pois que tende a obstruir os progressos da arte. A tradução é o elemento dominante, nesse caos que devia ser a arca santa onde a arte pelos lábios dos seus oráculos falasse as turbas entusiasmadas delirantes. Transplantar uma composição dramática francesa para a nossa língua, é tarefa de que se incumbe qualquer bípede que entende letra redonda. O que provém daí? O que se está vendo. A arte tornou-se uma indústria; e à parte meia dúzia de tentativas bem sucedidas sem dúvida, o nosso teatro é uma fábula, uma utopia.
Haverá remédio para a situação? Cremos que sim. Uma reforma dramática não é difícil neste caso. Há um meio fácil e engenhoso; recorra-se às operações políticas. A questão é de pura diplomacia; e um golpe de estado literário não é mais difícil que uma parcela de orçamento.
Em termos claros, um tratado sobre direitos de representação reservados, com o apêndice de um imposto sobre traduções dramáticas, vem muito a pêlo, e convém
perfeitamente as necessidades da situação.
Removido este obstáculo, o teatro nacional será uma realidade? Respondemos afirmativamente. A sociedade, Deus louvado! é uma mina a explorar, e um mundo
caprichoso, onde o talento pode descobrir, copiar, analisar, uma aluvião de tipos e caracteres de todas as categorias. Estudem-na: eis o que aconselhamos as vocações da época!
A escola moderna presta-se precisamente ao gosto da atualidade As Mulheres de Mármore—O Mundo Equívoco—A Dama das Camélias — agradaram, apesar de traduções. As tentativas do sr. Alencar tiveram um lisonjeiro sucesso.
Que mais querem? A transformação literária e social foi exatamente compreendida pelo povo; e as antigas idéias, os cultos inveterados, vão caindo a proporção que a reforma se realiza. Qual é o homem de gosto que atura no século XIX uma punhalada insulsa tragicamente administrada, ou trocadilhos sensaborões da antiga farsa?
Não divaguemos mais; a questão está toda neste ponto. Removidos os obstáculos que impedem a criação do teatro nacional, as vocações dramáticas devem estudar a escola moderna. Se uma parte do povo está ainda aferrada às antigas idéias, cumpre ao talento educá-la, chamá-la à esfera das idéias novas, das reformas, dos princípios dominantes. É assim que o teatro nascerá e viverá; é assim que se há de construir um edifício de proporções tão colossais e de futuro tão grandioso.
Fonte:
Machado de Assis. Críticas Literárias. Pará de Minas/ MG: Virtualbooks, 2003.
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