O Felizardo tinha,
Havia um mês apenas,
Uma formosa e lânguida vizinha,
Flor da flor das morenas,
Por quem se apaixonara
Desde o momento em que lhe viu a cara.
À janela sozinha,
Nunca a pilhou, mas sempre acompanhada
Por uma quarentona
Rechonchuda e anafada (adiposa).
Quem seria a matrona
Ele ignorava, mas, na vizinhança,
Tendo indagado, soube, sem tardança,
Que das duas vizinhas
Uma era a filha e outra a mulher do Prado,
Velhote apatacado,
Que a vender galos, a vender galinhas,
E outros bichos domésticos, vivia
Durante todo o dia
Na praça do Mercado.
Felizardo ficou muito contente
Ao saber que a matrona
Da morena era mãe, porque a tal dona
Indubitavelmente
Mostrava ter por ele simpatia;
Quando a cumprimentava, ela sorria
Com um sorriso de sogra em perspectiva.
A morena adorada
Era mais reservada,
Menos demonstrativa;
Sorria-lhe igualmente,
Mas disfarçadamente
E de um modo indeciso,
Como se fora um crime o seu sorriso.
II
Um dia Felizardo, que era esperto,
Tendo a jeito apanhado um molecote
Da casa das vizinhas, deu-lhe um bote
E o efeito foi certo,
Porque não há moleque
Que por uns cinco ou dez mil réis não peque.
— Como se chama a filha do teu amo?
— Mercedes. — E a senhora? — Julieta.
— Pois ouve cá: dona Mercedes amo.
Toma esta nota. Dobro-te a gorjeta
Se acaso te encarregas
De lhe entregar uma cartinha... Entregas?
— Entrego, sim senhor. — Quando trouxeres
A resposta, terás quanto quiseres!
A secreta cartinha
Uma declaração de amor continha,
E terminava assim: «Se me autoriza
A pedi-la a seu pai em casamento,
Três letras bastam... nada mais precisa...
Sim ou não... minha vida ou meu tormento.»
Veio em breve a resposta
Pela tal mala-posta,
E exultou Felizardo,
Lendo, escrito em bastardo,
O grato monossílabo ditoso
Com que sonhava um coração ansioso.
No mesmo dia foi o namorado
Ter com o pai da morena
À praça do Mercado.
Não preparou a cena:
Refletiu que modesto
Devia o velho ser, por conseguinte,
Dispensava etiquetas. Deu no vinte,
Como o leitor verá, se ler o resto.
III
Em mangas de camisa estava o Prado.
Na barraca sentado,
Entre galos, galinhas, galinholas
Das raças mais comuns e das mais caras, —
Frangos, patos, perus, coelhos, araras,
Passarinhos saltando nas gaiolas,
Saguis mimosos, trêmulos, surpresos,
Acorrentados cães, macacos presos,
E no ambiente um cheiro
De entontecer o próprio galinheiro,
Quando foi procurado
Por Felizardo. — Felizardo Pinho
É o meu nome; conhece-me, seu Prado?
— De vista, sim, senhor, que é meu vizinho.
— Eu amo ardentemente sua filha,
E não sou para aí um farroupilha.
Não quero agora expor-lhe as minhas prendas;
Apenas digo-lhe isto:
Vivo das próprias rendas,
Tenho boa família e sou bem visto.
Venho, por sua filha autorizado,
Dizer-lhe que domingo irei pedi-la.
Até lá pode ser bem informado,
Afim de que me aceite ou me repila.
O pai, que estava atônito e pasmado,
Interrogou: — É sério? É decidido?
O senhor gosta da Mercedes? — Gosto,
E tudo, tudo arrosto,
Para ser seu marido!
— Bom; domingo lá estou, e é crença minha
Que ficaremos do melhor acordo;
Mas vá jantar, que sábado, à tardinha,
Mando pra casa o meu perú mais gordo.
No domingo aprazado
O Felizardo, todo encasacado,
Inveja das catitas mais catitas,
Foi recebido pelo velho Prado
Na sala de visitas.
— Vou chamar a Mercedes, disse o velho,
Enquanto o namorado, num relance
Mirando-se no espelho,
Achava-se um bom tipo de romance.
Voltou à sala o Prado,
Trazendo pela mão... a quarentona.
— Aqui tem minha filha! Embatucado,
Felizardo caiu numa poltrona.
O mísero protesta:
— Perdão, mas não é esta!
— Eu não tenho outra filha! sobranceiro
Exclama o galinheiro.
Felizardo, fazendo uma careta,
— Mas a outra?... — pergunta. — A Julieta?
Essa é minha mulher! — Minha madrasta,
Acrescenta Mercedes. — Basta! basta
Perdão, minha senhora!
Murmurou Felizardo, e foi se embora,
Correndo pelas ruas.
Não houve nunca mais noticias suas
Artur de Azevedo. Contos em verso (contos cariocas). Publicado originalmente em 1909. Disponível em Domínio Público . Convertido para o português atual por J. Feldman
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