Nascido na Veiga, entre outeiros de relva aveludada e claros, sonoros fios d'agua, criado no meio de ovelhas brancas, em companhia de pastores e zagalas (pastoras), adorando o sol de ouro puro e as estrelas rutilas de prata, fazendo canções à lua, contando queixas de amor às fontes vivas, era feliz o pastorzinho.
Só pensava em Aleina e no seu rebanho, dando-se por venturoso se a pastora lhe sorria, correndo ao templo rústico com ofertas aos deuses se ouvia balar um novo anho.
À noitinha, em tempo de luar, deixava as folhas cheirosas do seu leito pastrano (rústico) e, à porta da cabaninha, contemplando o céu, ouvia o rouxinol.
Que lindos os seus pensamentos!
Um dia, alongando-se no caminho, penetrou a floresta, guiado pelas borboletas, e, no recesso sombrio em que se apinhavam as árvores mais velhas, ficou ouvindo o sereno murmúrio das águas apenas nascidas.
Gozava aquele tartareio das fontes, berços das ribeiras, quando descobriu um fauno que ia e vinha de arvore a árvore, tocando ligeiramente as flores desabrochadas.
Empalideceu receoso, quis esconder-se às vistas do deus silvestre, mas a figura do fauno — cornífero, capripede, veludo — fê-lo rir e, como o morador e protetor da selva não se perturbasse com a sua presença, o pastorzinho adiantou-se.
— Que fazes, fauno? perguntou.
Voltou-se o deus e, fitando no pastor os grandes olhos profundos, respondeu:
— Caso as flores, pastor. Sou eu quem leva recados de uma a outra corola. É verdade que a brisa e as abelhas auxiliam-me, mas sou eu quem lhes diz onde há flores púberes, flores que podem celebrar noivado. Sou eu que, à noite, pelo clarão nupcial da lua, visito os ramos sentindo o perfume! É pelo perfume que chego a conhecer a puberdade dessas donzelas cativas que nem por viverem presas às hastes em que nasceram deixam de se entender com os seus namorados, não fossem elas femininas!
O pastorzinho desatou a rir e o fauno, encostando-se a um velho e rugoso tronco, suspirou:
— Eis! Se conhecesses, como eu, os segredos da natureza, não ririas, por certo. Dizes cá, pastorzinho: queres ser sábio como um deus?
— Sim, quero. A que preço? Dou-te a ovelha mais gorda do meu rebanho e uma taleiga (saco pequeno e largo) nova que ainda não serviu.
— Guarda a tua ovelha e a taleiga. Dar-te-ei toda a ciência dos deuses se me quiseres ceder as tuas ilusões. Troquemos as nossas almas: levarás, com a minha, a eternidade e a sabedoria. Eviterno e onisciente, que fortuna! pastor! Eu ficarei com as ilusões da tua e sujeito à vida efêmera que as almas humanas vivem no corpo em que transitam. Conhecerás todos os segredos da terra, todos os mistérios do céu; verás tão claro no futuro como no presente e a tua mocidade será perpetua como a cor azul do eliseu e a cor verde do mar. Queres?
— Sim, quero, disse o pastor contente.
— Vem comigo. Habito uma caverna a dois passos daqui e no tempo que baste a uma abelha para sugar o mel de um nectário farei a troca das almas. Levarás a riqueza e eu ficarei com as ilusões que valem menos que o fumo que sobe da lenha verde.
Pôs-se a rir, de contente, o pastorzinho e, rindo, acompanhou o fauno à caverna.
Era uma furna sombria, merencória e humilde: parecia que ali se agasalhava o inverno. Contínua, com triste som, uma gota d'água pingava e os passos, ainda os mais leves, retumbavam no côncavo rochoso com um soturno ressoo longo e amedrontador. E disse o fauno:
— Senta-te, vou fazer lume.
E, puxando folhas secas, fez fogo e, em volta da chama, sentaram-se os dois.
Pôs-se o fauno a murmurar palavras encantadas e os olhos do pastorzinho logo se fecharam, pendendo-lhe a cabeça loura e, dormindo, quedou no leito de ramos.
Então o deus silvestre, colando a sua boca à do pastor, sorveu-lhe a alma cheia de ilusões e transmitiu-lhe, com a eternidade, o seu espírito onisciente.
Logo despertou o pastorzinho e, olhando, um momento, em torno, ergueu-se e, tristonhamente, partiu. Ficou o fauno a fitar o lume alegre, pôs-se a cantar contente e, levantando-se num pincho (salto), entrou a bailar em redor da fogueira.
E assim cantava o que fora imortal:
“Estrelas são gotas de luar. Ó cântaro da lua, cheio de leite, que desastrada zagala andou contigo aos boléos (boleando) para que assim derramasses tanto leite na eira?
Bem hajas, zagala — não fosses tu e não haveria estrelas. A luz do sol é sangue, a luz da lua é leite”.
E cantava ainda:
“Quão lindo é o olhar da virgem! Há mais profundeza e mistério nos olhos da mulher do que nos abismos do mar. Pode o mergulhador descer à pesca da perola, nos penetrais mais íntimos das águas... quem é capaz de descobrir o segredo dos olhos verdes, abismos de sedução onde cantam sereias?
Um beijo é um germe, é o pólen que vai de lábio a lábio. O amor... que importa a morte?!”.
Assim cantava o fauno e ria perseguindo, a correr, as borboletas e toda a brenha parecia rir com o alegre fauno. Mas, de vez em vez, gritos rolantes atroavam.
— Fauno do bosque, dá-me as minhas ilusões, toma a tua alma com a eternidade, a onisciência e todo o seu poder divino. Restitui-me as ilusões que me roubaste. Conhecer toda a verdade é viver no vazio, é ver o fim de todo o Bem, o fim de todo o Amor; é jazer, vivo, num sepulcro porque o nada é a expressão da vida. E as minhas ilusões eram o azul desse vazio, o horizonte feliz desse infinito lúgubre. Dá-me as ilusões, toma a tua alma.
E o fauno, ouvindo o pastor, abalsava-se (embrenhava-se), fugindo, a cantar, pelo bosque verde:
“Há mais profundeza e mistério nos olhos da mulher do que nos abismos do mar”.
E o pastorzinho? Pobre pastor deserdado! E vós, que andais pelos bosques, não vos fieis em faunos.
Fonte> Coelho Neto. Fabulário. Porto/Portugal: Livraria Chardron, de Ceio & Irmão Ltda, 1924. Disponível no Portal de Domínio Público.
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