sexta-feira, 5 de janeiro de 2024

Newton Sampaio (Zico)

(contos do sertão paranaense)

Ao sentir entre os dentes o freio puxado por vigorosos punhos, o cavalo estacou súbito diante da porteira, espumando nas ventas escancaradas pelo cansaço da corrida. Em seguida, prestamente pulou dos arreios um guapo rapaz de chapéu largo a proteger do sol o rosto esbraseado, onde dois olhinhos vivos se moviam de contínuo. Trazia nas mãos, além do chicote de couro, um minúsculo embrulho de papéis. De estatura avantajada, músculos rígidos e coradas faces, via-se bem que era uma potência de energia para qualquer trabalho. O traje era simples: botas de montar, que acusavam não muito má situação, esporas com largas rosetas, camisa de brim amarelo, própria para dispensar o paletó, aberta no peito, e sobretudo, aquele chapéu largo, complemento indispensável, e que lhe dava a nota mais característica de elegância sertaneja.

Apenas apeara, e já um luzidio cachorrinho, abanando a cauda, lhe vinha roçar as pernas, a dar ladridos de alegria. O moço, complacente, abaixou-se para lhe acariciar o dorso e disse:

— Saudades de mim, meu caro. Pudera! Desta vez eu não o deixei ir na minha companhia, hein?

E logo amarrou mal e mal o cabresto no palanque, atravessando com passo firme o terreiro, que preguiçosa mulatinha dificultosamente varria. Antes de poder alcançar a casa, veio-lhe ao encontro uma graciosa moçoila, que de longe já gritava:

— Então, Zico? Alguma carta para mim, hoje?

— Certamente, dona. Até duas, creio eu.

E, dizendo isto, entregou-lhe o pacote que tinha nas mãos.

— Muito obrigada, Zico. Você é um anjo. Hum! Que carta perfumada! Será que... 

Não pôde terminar. Viva curiosidade, mesclada de intenso júbilo, fê-la voltar correndo e logo desaparecer no interior de um quarto. Cumprida a obrigação, Zico deteve-se quedo e, para se distrair, começou a tilintar devagarinho com o chicote o lombo do cachorro, que, rosnando, continuava a lhe fazer festas.

Pouco depois, empertigado o corpo, dirigiu-se ao paiol, cantarolando uma trova sertaneja. Ao voltar, trazia nas mãos calejadas algumas espigas de milho e, sentado finalmente no único degrau da escada, dispôs-se a debulhá-las, atraindo para si uma multidão de galinhas em interessantes conluios. Enquanto isso, o sol que, na sua frente, ameaçava enterrar-se dentro em pouco na grota longínqua, induzia-o a meditar em silêncio.

Recordava quando, muitos anos antes, da direção do nascente, num domingo bonito como aquele, e também à tardinha, ele, simples garoto com um pequeno saco de roupas a tiracolo, viera bater à porta da fazenda pedindo serviço. E depois, pelo passar do tempo, e mercê de sua atividade e de zelo no trabalho, fora pouco a pouco captando a confiança e a amizade de seus protetores, até que, já homem feito, e homem correto e valoroso, era uma espécie de ajudante de ordens do patrão, que nele depositava os encargos de maior responsabilidade, considerando-o mais como pessoa de casa que empregado.

Por tudo isso, Zico julgava-se muito feliz, e nada tinha para queixar-se da sorte. Mas, coisa inexplicável, enquanto os revérberos solares gradativamente se iam enfraquecendo, o guapo rapaz, que tinha as mãos dadas e alegres com o destino, começou a sentir um esquisito mal-estar interior. O coração parecia pulsar de outro modo naquela tarde. Lá por dentro uma coisa diferente estava a remover-se daqui e dali. E ele, que nunca ficara assim entregue, mesmo depois dos mais árduos trabalhos, num fim de domingo haveria de sentir-se cansado?

— Oh! Não. — monologou, sorrindo. — Não pode ser, ‘seu’ Zico. Força a essa carcaça.

E sem mais demora foi buscar o “pinho”, companheiro de sempre, amigo de confiança e confidente fiel, uma das coisas de que mais gostava. O violão, o douradilho, o cachorrinho negriço, a amizade dos patrões, e, principalmente, a independência e retidão no proceder, constituíam o melhor de sua vida. Com isso tudo, o mundo podia vir abaixo que o não incomodaria. Trazia um mundo consigo. 

De novo abancado no degrau da escada, começou o Zico a ferir as cordas do instrumento, e à meia voz ia entoando umas improvisadas quadrinhas, com o sentimentalismo tão profundamente característico do sertanejo brasileiro. Não sei por que, mas naquele dia elas saíam tão espontâneas e com tal tom de tristeza...

O dia desaparecera, e a luz viera clarear o corpo de Zico (que na calada da noite continuava a improvisar versinhos), projetando oblonga sombra, muito oblonga mesmo, no terreiro varrido, onde as galinhas não mais bicavam milho em interessantes conluios.

— Que é isso, Zico? Até que horas quer você ficar aí? A titia há pouco esteve a observar o cavalo arreado, o paiol aberto, e a casa toda a fechar. Vamos. Deixe essa tristeza e venha dar uma prosinha conosco, aqui na varanda — disse, assomando à porta a moçoila graciosa que recebera as cartas.

Obediente a todos os pedidos, Zico tratou de executar os serviços. Quando, porém, se foi deitar, não conseguiu conciliar o sono. A todo momento lhe vinha à memória aquela vozinha de meiguice: “Que é isso, Zico?”. E sem querer, começou a pensar na sobrinha do patrão, que de São Paulo viera passar uma temporada na fazenda. Ela era tão boazinha... Tratava com tanta amabilidade todos os empregados, até os mais rudes... E, além disso, os seus olhos eram bonitos... bonitos...

E logo sacudiu a cabeça com energia, refletindo: “Que tem você com isso, ‘seu’ moço? Que ela seja ou não boa e bonita, não é da sua conta. Não meta o nariz onde não é chamado”.

Mas qual! Por mais que tentasse varrer da cachola esse pensamento, não o conseguia. Era inútil. Ele teimava em aparecer. E teimava cada vez com maior veemência. Assim passou parte da noite. De madrugadinha já, resolveu dar um fim àquilo. E perguntou a si mesmo: “Por que pensas assim, Zico?”

Insensivelmente, teve de tirar a conclusão: gostava da sobrinha do fazendeiro, com todo o vigor, com toda a sinceridade que só os nossos sertanejos sabem ter. Gostava da sobrinha do fazendeiro... ele, um quase nada. Ela, moça instruída, educada no grande centro, e além do mais, como, sem o querer, pudera perceber pelas conversas, prestes a noivar na capital. Faltava só o consentimento do pai.

Ao ter certeza dessas conclusões, o pobre rapaz sentiu um calafrio no corpo todo. Não, não era possível! Que loucura!

Era no outro domingo. Como sempre, em traje domingueiro, fora à cidade buscar a correspondência. Ao voltar, cavalgando o douradilho de ventas escancaradas, cheias de espuma, e acompanhado pelo cachorro de língua à mostra, estacou diante da porteira, desceu presto do cavalo, e, com passo firme, dispôs-se a atravessar o terreiro, que ainda desta vez preguiçosa mulatinha varria. Pouco depois, ali de fora, ouviu uns gritos de mal contido júbilo. É que, à graciosa moçoila, chegara finalmente a esperada notícia.

O sertanejo deteve-se quedo. Como na semana anterior, foi buscar umas espigas de milho, debulhando-as no chão. Na sua frente o sol, mais vermelho que nunca, ameaçava submergir-se na grota longínqua. E continuava Zico a meditar em silêncio.

De repente, com a fisionomia contraída num decisivo, num supremo esforço de domínio e de energia, os olhos faiscantes e um enigmático sorriso nos lábios, levanta-se e olha em derredor. Sonda alguma coisa. Ali perto da escada estava uma cordinha. Toma-a. Amarra uma ponta na correia do cachorrinho e outra no palanque chantado próximo. Depois examina com desconfiança o ambiente. E quando, no longe do horizonte, o sol já escondera a metade do disco, salta destramente para cima dos arreios, dá um adeus abafado àquelas terras que lhe eram tão caras e chicoteia o animal com ardor.

Anoitecera. As galinhas haviam abandonado as espigas nuas, e a lua, bonita como os olhos da moçoila graciosa, não mais projetava no terreiro varrido uma alongada sombra do rapaz. Junto ao palanque, o cachorrinho luzidio deixara de abanar a cauda em sinal de alegria e, compreendendo talvez aquilo tudo, encaramonara-se com as orelhas caídas e o corpo pegado ao chão. Apenas, no grotão longínquo onde o sol se escondera, reboava o ronco de algum bugio perdido. No mesmo lado do poente, um cavaleiro, em desenfreado galope, pouco a pouco desaparecia para nunca mais voltar, anatematizando aquele sentimento que, pela primeira vez, tivera a força de lhe abater o ânimo sertanejo.

Fonte> Newton Sampaio. Ficções. Secretaria de Estado da Cultura: Biblioteca Pública do Paraná, 2014.

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