sábado, 19 de setembro de 2009

Marcos Martins (A Morte do Jumento)


Sábado, dia de feira-livre em Nova Canaã, interior da Bahia. A cidade brandia no movimento efêmero de mascates, que se deslocavam de diversas regiões do Município para vender a sua mercadoria no largo público. Às quatro horas da madrugada já se podia ouvir o prantear mórbido das rodas de carroças levando produtos trazidos da zona rural, que seriam ali comercializados.

Ao alvorecer, cavalos e burros desfilavam pomposamente pela cidade, transportando gente e levando as colheitas feitas no dia anterior pelos produtores rurais. Como esse comércio era feito pelos próprios rurícolas, quase não se via ali atravessadores, o que tornava o preço bastante atrativo.

Naquele local se misturavam as mais diversas gentes de diferentes regiões e classes sociais: Negros, brancos, mestiços, ricos, pobres, políticos, estudantes, intelectuais, analfabetos... Enfim, uma infinidade de pessoas que, em tempos de feira, se faziam semelhantes, trocavam idéias, contavam estórias, vendiam, compravam, permutavam, etc.

Àquela época, meado da oitava década do século XX, ainda era comum a prática do escambo. Muitos comerciantes aceitavam parte do pagamento das compras feitas pelos moradores da zona rural em troca de mercadorias produzidas pelos seus assíduos fregueses – requeijão, manteiga, café, feijão, ovos, farinha...

Dentre as muitas faces que por ali circulavam, as negras irmãs “angolanas” embelezavam a feira com a sua graça magnificente. Altas e esbeltas, estavam sempre elegantes e perfumadas, agasalhadas com vestidos estampados em cores gritantes e pó de arroz nos rostos, destacando-se dentre as mulheres ali presentes.

Naquela oportunidade também era possível ver homens e mulheres simples e trabalhadores diversos, que costumeiramente preenchiam aquele cenário, abrilhantando ainda mais o espetáculo do agitado dia-de-sábado, quer seja vendendo, quer seja comprando, ou somente marcando presença na esplanada.

Os vendedores de pipoca, quebra-queixo, doces, etc., eram desses pequenos, mas não desapercebidos comerciantes, que, de forma estratégica, estacionavam o seu tabuleiro ou carrinho numa esquina qualquer de acesso à praça da feira ou em meio à multidão, atraindo a sua fiel clientela, formada principalmente de jovens e crianças.

Havia também diversos outros comerciantes mais bem-posicionados, que eram donos de entrepostos comerciais ali no centro da cidade, como um italiano radicado no Brasil, dono de uma mercearia local, que chamava a atenção pela posição em que usava a suas calças, sempre esticada acima do umbigo.

Não podemos nos esquecer dos bares, que eram freqüentados pelos beberrões e jogadores de bilhar, onde cristãos, mulheres descentes e crianças eram proibidos de entrar. Salões de beleza e lojas de confecções também atraiam um grande número de clientes, aquecendo ainda mais o pequeno comércio local.

Convém não deslembrar igualmente dos pedintes, que buscavam alguma dádiva no meio do tumultuoso agrupamento da feira, acrescentando ainda mais rumor ao alarido maquinal produzido pela massa concentrada.

Dada a presença de um grande número de pessoas reunidas em um espaço tão curto, era muito comum surgirem brigas, entre socos e xingamentos, que lançavam tanto mais anarquia àquela confusão oficializada. As crianças tratavam logo de anunciar o arranca-rabo:

- “Ói” briga na rua da formiga! “Ói” rolo na rua do besouro!

A seguir, um círculo de curiosos se formava em torno dos desordeiros para assistir à rinha (pois chamavam essas chinfrinadas de “brigas de galos”). Alguns se aproveitavam da algazarra para tentar a sorte em apostas sobre quem sairia vencedor, principalmente quando a luta livre se dava entre garotos.

Os carros davam um espetáculo à parte: Pick-ups, caminhões, ônibus e carros de passeio desfilavam pelas principais ruas da cidade, trazendo e levando pessoas e alçando muita poeira. Para a zona rural, o veículo mais utilizado no transporte de pessoas e mercadorias era o caminhão do leite, em que os “passageiros” viajavam sentados sobre baldes e sacas de alimentos, numa arriscada viagem de ida e volta.

Dentre os carros de passeio que se exibiam no local havia o Fusca, o Corcel, o Jeep, a Kombi, a Rural e o mais majestoso de todos – a Opala, sonho de consumo de nove entre cada dez jovens da urbe. Este último era muitas vezes utilizado por alguns “filhos-de-papai” na prática de “pegas” ou de manobras arriscadas, tipo “cavalo-de-pau” e “rabiadas”. Havia muita reclamação do delegado aos seus pais, mas logo tudo acabava bem.

Diante dessa balbúrdia circunstancial, eis que se achegava o “Seu” Manoel Domingues escoltando a pé o fiel companheiro no labor dessa incansável atividade de mascate. Passivo, embora atrasado, Seu Manoel tocava o animal – um asno velho e dócil – tão despreocupadamente, que causava letargia só de olhar. E ninguém os olhava! Já o asno parecia haver incorporado a personalidade apática do seu dono, tão mansamente circulava por entre carros, casas, animais e pessoas.

Vislumbrando-se aquela cena extenuante, tinha-se a sensação de que o Tempo havia diminuído a marcha para dar-lhes passagem. Já eram quase sete da manhã, mas a pressa não parecia ter alcançado aquelas duas criaturas. Lá seguiam ambos – o senhor e o acéfalo – trafegando pela momentaneamente agitada Rua do Pombal com demasiada tranqüilidade e indolência, que mais os assemelhava com o personagem Milkau e o cavalo molenga que alugara para viajar. Se houvesse assistido àquela cena, Drummond certamente exclamaria:

- Êta vida besta, meu Deus!

Manoel Domingues tinha uma feição rude e crua, olhos fundos, nariz afinalado, pele morena, barba por fazer e cabelos lisos e negros, assemelhados aos dos indígenas, com mechas grisalhas resultantes da passagem do tempo. De estatura mediana, com aparentemente cinqüenta anos de idade, era magro feito cipó. Não era homem de muitas palavras, não sorria, não chorava e só falava o essencial. Frio de temperamento, morava sozinho numa choupana de fazenda, mas como mero agregado. Exceto o jumento, não possuía bens, família e amigos, tampouco era visto entre pessoas civilizadas, a não ser aos sábados, quando necessariamente teria que vender a sua escassa colheita na cidade.

Afinal, depois de algum tempo (não me pergunte se um minuto ou um século) os dois se aproximaram da praça da feira. Seu Manoel, que acabara de enrolar um cigarro de palha, quase nem percebera quando o animal parou à sua frente. Com o seu temperamento fleumático, digno de um legítimo Phileas Fogg, enxotou o animal fazendo um sonido estralado entre os lábios, imitando o som de um prolongado e sonoroso beijo.

Pela primeira vez em anos de parceria, o quadrúpede desatendera uma ordem do seu dono. Indiferentemente, Seu Manoel estralou os lábios mais uma vez e bateu levemente na anca do animal, tentando empurrá-lo à frente. O velho amigo não esboçou qualquer reação. Seu Manoel manteve-se, então, inativo, paciente, apenas fumando o seu cigarro tranqüilamente, como se nada estivesse acontecendo (e, de fato, não acontecia). Permaneceu assim por cerca de cinco ou seis minutos, que até mesmo o Tempo, na sua clássica paciência com aquele cidadão, perdeu as estribeiras.

Bem, se algum apressado resolvesse olhar para aquela cena, acreditaria que o Prefeito decidiu ornamentar a via pública com uma escultura realística da vida bucólica no Município. E seria uma merecedora homenagem aos bravos cidadãos que movimentavam a economia local, cujas memórias pós-morte iam caindo no esquecimento.

Seu Manoel não se abalava jamais. Com a sua distintiva pachorra e frigidez, encaminhou-se à frente do animal e, alisando-o a fronte, conversou mansamente com o companheiro:

- Vamos “migão”, só faltam alguns passos.

O animal manteve-se estável, sem reação, parecendo não estar ali. Seu Manoel novamente cochichou palavras de incentivo ao velho asno, porém em vão. O Tempo agora resolvera manter a sua celeridade natural, pois já não lhe convinha mais se refrear para ajudar aquelas duas pobres criaturas, esquecidas da vida. E os minutos foram passando, passando e... De repente, o asno soltou um estranho urro e quedou-se ao chão, deixando cair parte da carga que transportava nos dois panacuns, fixados em cada lado da cangalha.

Seu Manoel não acreditava no que via. Eis que o seu velho amigo, membro real da sua família, único patrimônio que possuía – se é que se podia considerá-lo assim, pois, como bem lembrado por Luis Gonzaga, para o nordestino o jumento é seu irmão – partia desta vida para uma melhor. E o que é pior: em plena atividade laboral, sem direito a um descanso ou ao cuidado do seu amo.

Um plangente e culminante gemido se ouviu no paço municipal. Todos paralisaram as suas atividades para ver o que estava acontecendo. Seu Manoel, não se agüentando nas pernas, sentou à beira do meio-fio e ali permaneceu, choroso e abatido. Não podia acreditar no que presenciara: a morte do seu único amigo e companheiro de luta.

Tão triste foi ver aquele episódio, que o luto do Seu Manoel logo contaminou as pessoas ali presentes. Um longo silêncio se fez em meio àquele tumulto. Só se ouvia o choro do desgraçado feirante. Como era de praxe, logo um círculo de curiosos se formou em torno do Seu Manoel e do corpo do animal, já sem vida. Naquele meio era até possível ver a irônica “Dona” Morte, que se ria sem piedade da miséria do nosso infeliz personagem.

Quanta desolação, meu Pai! Quanta tristeza se via no rosto daquele pobre senhor, de quem jamais se ouvira falar maiores detalhes sobre a sua vida, origem e família. Durante o episódio, duas caridosas almas cristãs saíram do meio da multidão para tentar consolar o mísero vivente. Não demorou muito e logo Seu Manoel colocara-se novamente de pé, embora ainda choroso. Olhava consternado para o amigo morto e dizia repetidamente:

- E agora, o que vou fazer?

Para encurtar a história, pois eu mesmo me emociono só de lembrar, um bondoso fazendeiro local se comprometeu a presenteá-lo com um dos animais da sua fazenda, à escolha do Seu Manoel. Logo a vida dele voltaria ao normal. Porém a nostálgica lembrança do velho amigo de longas datas não lhe sairia mais da cabeça, como a de um verdadeiro irmão que se foi.

A carcaça do animal foi enterrada junto à choupana onde morava o Seu Manoel, ali na zona rural. Enquanto vivesse, não permitiria que aquela lembrança caísse no ostracismo, pois tinha uma enorme dívida de gratidão ao seu falecido companheiro. Durante anos, o Seu Manoel contou as estórias do seu velho amigo às crianças e jovens da região, e assim conseguiu preservar-lhe a memória por muitos e muitos anos. Também foi dessa forma que o nosso personagem fez-se sentir unido ao seu herói, jazendo agora no ventre da Terra, de todos nós viemos e aonde um dia retornaremos.

Que descanse em paz!

Fonte:
Academia Poçoense de Letras e Artes
Imagem = http://gazetaweb.globo.com/

Um comentário:

Fidellis disse...

Bom, mas a ft eh alagoana...
Aconteceu aki na Fernandes Lima, em meio a Capital. Costumo dizer q a minha cidade (Maceió) tem manis de Metrópole, a pesar de ser muito rural; até morte de jumento tem!!!!
Abraços..