Mente em conflito, Jurandir caminha. Cabisbaixo, remoendo a dúvida, aproxima-se da igreja, ou melhor, do templo. Confessa ou não confessa?
Católico por tradição, busca sua igreja para harmonizar-se com seu interior.
Já na praça olha o templo que se abre acolhedor à sua frente com sua arquitetura barroca. Nem imagina que dois séculos passados, durante o governo do príncipe regente (a rainha perdera as condições de governar), fosse ali o local de evidência da elite de então, da nobreza de sangue azul e de títulos. Mais de títulos. Combinação perfeita de novos ricos em ascensão e uma nobreza esfacelada, maior parte permanecida em além mar, na velha Lisboa.
Sangue azul ou não, era a elite o centro das decisões políticas, econômicas e sociais. Dos tempos áureos restaram apenas os detalhes físicos do prédio e do mobiliário, dando ares de sobriedade, lembrança dos tempos em que as jovens com seus véus e vestes brancas entoavam cânticos ao som do órgão e as senhoras com véus pretos rezavam o terço, pois da missa em latim nada entendiam. Apenas a homilia ou o sermão eram na língua pátria.
Hoje os freqüentadores do templo são de classe média, de pobres e alguns até abaixo da linha de pobreza.
A nave da igreja vazia revela os novos tempos de uma comunidade onde os valores ganham novas significações. Por certo nos bares as mesas e cadeiras já invadem as calçadas e em alguns deles até as pistas de rolamento dos veículos.
Jurandir, homem que daqui a menos de dois anos entra na conta dos sexagenários, ajoelha-se no confessionário entalhado, ornado em ouro, assim como o altar e o teto do templo. Do outro lado da treliça do confessionário o confessor mal ouve o seu ato de contrição. Lê o Missal para, logo mais, mais uma missa celebrar.
- Quanto tempo faz que não confessa? – Pergunta o padre, ao interromper a leitura.
- Nem sei, padre. Faz muito tempo. - Responde Jurandir, modos desajeitados, peixe fora do aquário, muito tempo fora da igreja.
- Tudo bem. Conta seus pecados. – Diz o padre voltando a atenção para o missal.
- Pois é, padre. Eu, que cheguei a esbravejar a igreja quando jovem e até a negar a proficiência da fé, estou arrependido. Muito erro fiz. Erro, inclusive, de interpretação de textos da bíblia, a exemplo dos referentes ao matrimônio. Explico melhor. Nos Evangelhos, onde se diz que o homem é a cabeça da mulher, eu entendia que a ele caberia administrar a sociedade conjugal. Onde diz que a mulher deve ser submissa ao marido, eu entendia submissão como no dicionário: “ato ou efeito de submeter-se”; ou então “disposição para aceitar a dependência”. Isso conforme o Aurélio, que acrescenta no termo submisso: “que se submete ou se sujeita”; “obediência, humildade, respeito”. Enquanto isso, ao homem caberia amar a mulher, sacrificar-se nos trabalhos mais duros, se necessário, mas com a prerrogativa dos dizeres bíblicos. Hoje sei de meu equívoco ao interpretar referidos textos e venho confessar meu erro. Admito que tenha entendido tudo às avessas. Não quanto nas responsabilidades dos homens, ou até mesmo nestas. Além de provedor deve também o homem ombrear-se nas tarefas domésticas, ajudar a mulher nas atribuições que antes pensava eu que não fossem responsabilidade do homem. Errei mais uma vez. Errei quando não aceitei que aquela que me foi declarada esposa, nos termos do texto bíblico fizesse o contrário. A mim caberia também o dever de obediência a ela, de submissão, de aceitar suas ordens e imposições, seu direito de falar e o meu dever de apenas ouvi-la. Ouvi-la e atender a sua vontade, ampla, geral e irrestrita. Errei, padre, pois resisti e não a obedecia em tudo. Errei quando pensei que eu, de acordo com o texto bíblico com a interpretação dos dicionários, poderia ter autonomia de locomoção, de livre arbítrio, de decisão em meus negócios, de agir como sujeito. Mas a realidade é outra, não é, padre? Ainda bem que o senhor não se casou. Já pensou o senhor ter que perder sua autonomia até de pensar ou de falar? Nem de escrever ou ler? Já nem digo de fazer, de agir. A mulher é quem pode, ao homem cabe obedecer. Sabe qual o verbo que ela mais aprecia? O impositivo verbo ter: você tem que... isso, tem que... aquilo, etc. e tal. E eu só percebi que estava errado quando entendi melhor a pregação religiosa. Os padres, os diáconos, os pastores, têm apresentado interpretações diferentes para aqueles dizeres bíblicos. Os dicionários bíblicos, por certo, têm conceituações diferentes das dos dicionários de sinônimos, não é, padre? Para a bíblia submissão tem outro sentido, não é? Ser cabeça do casal, conforme a bíblia, quer dizer diferentemente do que eu entendia, não é? Pelo menos de uns tempos para cá, não é? Por tudo isso é que estou arrependido, padre, e estou aqui para confessar meus pecados.
Pecados de entender errado a bíblia e agir de acordo com o que eu entendia antigamente. Mas agora é diferente, padre. Eu sei que estava errado e quero me redimir. Venho pedir perdão por todos os meus pecados. E para terminar, padre, considerando que eu sou fraco e não vou dar conta de seguir a bíblia de acordo com as novas regras que agora sei que são as corretas, preciso de uma nova postura de vida. Não quero mais desobedecer as ordens, as diretrizes, o comando daquela com quem me casei. E como não dou conta de cumprir esses mandamentos bíblicos de submissão e obediência, agora conforme os dicionários, decidi: para não mais errar ou para errar menos, só tenho um caminho, padre: o divórcio.
Agora pode ditar a penitência que devo fazer, padre. Por tudo isso, peço perdão.
Jurandir percebe que o padre caiu em sono profundo, certamente pela desimportância de sua confissão.
Levanta-se com cautela, olha a igreja agora quase cheia, caminha contrito para ajoelhar-se diante do altar. Começa a rezar o terço, penitência que julga compatível com os tantos pecados confessos. O padre determinaria penitência menor?
Na parede de acesso ao confessionário, uma fila de fiéis que aguardam para se confessar.
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