segunda-feira, 23 de maio de 2011

Francisca Clotilde (A Enjeitada)


A gentil criancinha viu a luz do dia em uma estreita e úmida mansarda. Filha do amor e do crime nascia quase ao desamparo, e apenas os beijos maternos festejaram-lhe a entrada no mundo.

A mãe seduzida por um homem sem coração necessitava encobrir a falta para continuar a viver entre a familia, e tinha de abandoná-la à caridade publica algumas horas depois de nascida.

Era tão franzina! Precisava tanto de cuidados maternos; porém a sociedade severa e inexorável a triste sorte da enjeitada.

São assim as leis humanas.

A moça inexperiente e sem o escudo de uma boa e sólida educação caíra aos amorosos assaltos de mancebo sedutor, e tornara-se mãe. Era, portanto, indispensável ocultar o fruto de uma culpa que o mundo não perdoa, e entre o amor de mãe e o terror do anátema que lhe cairia na fronte, a pobre moça hesitava.

Abandonar a filha, uma criaturinha frágil, flor mal desabrochada que a primeira carícia de vento pode molestar, deixá-la à porta de algum rico compassivo, privá-la dos seus beijos, não vê-la talvez mais!

Trouxera-a nove meses no seio, nutrindo-a com o seu sangue, com a sua própria vida.

Às ocultas fizera um enxolvazinho para que o seu anjo tivesse uma camisinha de rendas e uma touca enfeitada, ouvira-lhe o primeiro vagido, beijara-a com toda efusão de seu amor, e ia separar-se dela!

O seu coração de mãe revoltava-se.

Havia de conservá-la, embora a família a repelisse.

Trabalharia para sustentá-la, sofreria junto a si. Já lhe queria tanto!

Mas a vergonha e o opróbrio que a esperava?

Tratava-se n’aquele espírito abatido pela dor física numa luta horrível. Ficaria irremediavelmente perdida. A filha mais tarde envergonhar-se -ia de sua origem e talvez a amaldiçoasse.

Aparecia-lhe o mundo com a sua moral severa a estigmatisá-la, a excluí-la do rol das mulheres honestas, a família a expulsá-la.

Podia continuar a ser querida e respeitada. Ninguém descobriria sua falta, frequentaria a sociedade, seria bem recebida em toda parte, encontraria talvez um homem que a desposasse e havia de ser feliz. Mas para conseguir isso devia abandonar a filha aos cuidados estranhos, condená-la a implorar continuamente a caridade alheia. Era horroroso!...

Tinha-a junto do coração, molhava-lhe as facezinhas rosadas com lágrimas de ternura acariciava-lhe a loura cabecinha, extasiava se diante dos seus olhos que se abriam indecisos como para fitá-la e dizer-lhe: não me abandones.

O amor materno ia triunfar, mas ali estava alguém a reclamar-lhe a criança, a anima-la ao sacrifício expondo-lhe as consequências de sua fraqueza, a dizer-lhe que se apressasse, que em casa poderiam desconfiar de sua demora.

Pobre mãe! O miserável que murchou a coroa de tua virgindade não pensa decerto nas angústias porque estás passando.

Ri neste momento, quem sabe?

A sociedade não há de repelir, ele tem o direito de entrar com a fronte erguida nos salões, onde se ostenta a gente melhor e será recebida com atenções e obséquios.

Mas, tu, vitima indefesa, terias arremessada ao charco onde se revolvem as criaturas sem pudor.

Não te vendeste, o amor te perdeu, te entregaste generosamente e sem restrições ao homem que te fez pulsar o coração ainda virgem; porém o mundo não indaga destas cousas. Há de salpicar-te o rosto com a lama da degradação e marcar—há a fronte com o selo da ignomínia e da desonra!

Nem mesmo a maternidade dá o direito de esperar indulgência. Riram de tua dor e zombaram de teus desvelos, e sobre tua filha recairá a tua infâmia.

A jovem mãe sente a vertigem do desespero. Passa-lhe pelos olhos uma nuvem que a deslumbra.

Aperta mais o filhinho, cobre-a de beijos, agasalha-a cuidadosamente contra as intempéries do tempo à pessoa que a espera.

Depois, como impelida por força sobre humana ergue-se do leito dos sofrimentos, deixa a mansarda úmida e estreita e volta para a casa da família.

Vai continuar a frequentar o mundo.

Ninguém lhe verá a palidez das faces e as palpitações nervosas do coração.

Sua honra está salva, porque o mundo contenta-se com exterioridades.

E enquanto ela aparentemente é feliz, e cercam-na de homenagens e afeições, a filhinha aos cuidados de estranhos não passa de uma enjeitada.

Fonte:
F. Clotilde. Revista A Quinzena. Fortaleza, Ceará,15/10/1887. (Colaboração de Anamélia Custódio Mota, biógrafa de Francisca Clotilde - Academia Tauaense de Letras - Tauá - CE)

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