sábado, 15 de dezembro de 2012

Machado de Assis (Idéias sobre o Teatro)


A ARTE DRAMÁTICA não é ainda entre nós um culto; as vocações definem-se e educam-se como um resultado acidental. As perspectivas do belo não são ainda o ímã da cena; o fundo de uma posição importante ou de um emprego suave, é que para lá impele as tendências balbuciantes. As exceções neste caso são tão raras, tão isoladas que não constituem um protesto contra a verdade absoluta da asserção.

Não sendo, pois, a arte um culto, a idéia desapareceu do teatro e ele reduziu-se ao simples foro de uma secretaria de Estado. Desceu para lá o oficial com todos os seus atavios: a pêndula marcou a hora do trabalho, e o talento prendeu-se no monótono emprego de copiar as formas comuns, cediças e fatigantes de um aviso sobre a regularidade da limpeza púbica. Ora, a espontaneidade pára onde o oficial começa; os talentos, em vez de se expandirem no largo das concepções infinitas, limitaram-se à estrada indicada pelo resultado real e representativo das suas fadigas de trinta dias. 

Prometeu atou-se ao Cáucaso.

Daqui uma porção de páginas perdidas. As vocações viciosas e simpáticas sufocaram debaixo da atmosfera de gelo, que parece pesar, como um sudário de morto sobre a tenda da arte. Daqui o pouco ouro que havia. lá vai quase que despercebido no meio da terra que preenche a âmbula sagrada.

Serão desconhecidas as causas dessa prostituição imoral?

Não é difícil assinalar a primeira, e talvez a única que maiores efeitos tem produzido. Entre nós não há iniciativa. Não há iniciativa, isto é, não há mão poderosa que abra uma direção aos espíritos; há terreno, não há semente; há rebanho, não há pastor; há planetas, mas não há outro sistema.

A arte para nós foi sempre órfã; adornou-se nos esforços, impossíveis quase, de alguns caracteres de ferro, mas, caminho certo, estrela ou alvo, nunca os teve. Assim, basta a boa vontade de um exame ligeiro sobre a nossa situação artística para reconhecer que estamos na infância da moral; e que ainda tateamos para darmos com a porta da adolescência que parece escondida nas trevas do futuro.

A iniciativa em arte dramática não se limita ao estreito círculo do tablado — vai além da rampa, vai ao povo. As platéias estão aqui perfeitamente educadas? A resposta é negativa.

Uma platéia avançada, com um tablado balbuciante e errado, é um anacronismo, uma impossibilidade. Há uma interna relação entre uma e outro. Sófocles hoje faria rir ou enjoaria as massas, e as platéias gregas pateariam de boa vontade uma cena de Dumas ou Barrière. A iniciativa, pois, deve ter uma mira única: a educação. 

Demonstrar aos iniciados as verdades e as concepções da arte; e conduzir os espíritos flutuantes e contraídos da platéia à esfera dessas concepções e dessas verdades. Desta harmonia recíproca de direções acontece que a platéia e o talento nunca se acham arredados no caminho da civilização. Aqui há um completo deslocamento: a arte divorciou-se do público. Há entre a rampa e a platéia um vácuo imenso de que nem um nem outra se apercebe.

A platéia ainda dominada pela impressão de uma atmosfera, dissipada hoje no verdadeiro mundo da arte, — não pode sentir claramente as condições vitais de uma nova esfera que parece encerrar o espírito moderno. Ora, à arte tocava a exploração dos novos mares que se lhe apresentam no horizonte, assim como o abrir gradual, mas urgente, dos olhos do público. Uma iniciativa firme e fecunda e o elixir necessário à situação; um dedo que, grupando platéia e tablado, folheie a ambos a grande bíblia da arte moderna com toda as relações sociais, é do que precisamos na atualidade.

Hoje não há mais pretensões, creio eu, de metodizar uma luta de escola, e estabelecer a concorrência de dois princípios. É claro ou é simples que a arte não pode aberrar das condições atuais da sociedade para perder-se no mundo labiríntico das abstrações. O teatro é para o povo o que o Coro era para o antigo teatro grego; uma iniciativa de moral e civilização. Ora, não se pode moralizar fatos de pura abstração em proveito das sociedades; a arte não deve desvairar-se no doido infinito das concepções ideais, mas identificar-se com o fundo das massas; copiar, acompanhar o povo em seus diversos movimentos, nos vários modos da sua atividade.

Copiar a civilização existente e adicionar-lhe uma partícula, é uma das forças mais produtivas com que conta a sociedade em sua marcha de progresso ascendente. Assim os desvios de uma sociedade de transição lá vão passando e à arte moderna toca corrigi-la de todo. Querer levantar luta entre um princípio falso, decaído, e uma idéia verdadeira que se levanta, é encerrar nas grades de uma gaiola as verdades puras que se evidenciavam no cérebro de Salomão de Caus.

Estas apreensões são tomadas de alto e constituem as bordas da cratera que é preciso entrar. Desçamos ate as aplicações locais. A arena da arte dramática entre nós é tão limitada, que é difícil fazer aplicações sem parecer assinalar fatos, ou ferir individualidades. De resto, é de sobre individualidades e fatos que irradiam os vícios e as virtudes, e sobre eles assenta sempre a análise. Todas as suscetibilidades, pois, são inconseqüentes, — a menos que o erro ou a maledicência modelem estas ligeiras apreciações.

A reforma da arte dramática estendeu-se até nós e pareceu dominar definitivamente uma fração da sociedade. Mas isso é o resultado de um esforço isolado operando por um grupo de homens. Não tem ação larga sobre a sociedade. Esse esforço tem-se mantido e produzido os mais belos efeitos; inoculou em algumas artérias o sangue das novas idéias, mas não o pôde ainda fazer relativamente a todo o corpo social.

Não há aqui iniciativa direta e relacionada com todos os outros grupos e filhos da arte. A sua ação sobre o povo limita-se a um círculo tão pequeno que dificilmente faria resvalar os novos dogmas em todas as direções sociais.

Fora dessa manifestação singular e isolada, — há algumas vocações que de bom grado acompanhariam o movimento artístico de sorte a tomarem uma direção mais de acordo com as opiniões do século. Mas são ainda vocações isoladas, manifestações impotentes. Tudo é abafado e se perde na grande massa.

Assinaladas e postas de parte certas crenças ainda cheias de fé, esse amor ainda santificado, o que resta? Os mercadores entraram no templo e lá foram pendurar as suas alfaias de fancaria. São os jesuítas da arte; os jesuítas expuseram o Cristo por tabuleta e curvaram-se sobre o balcão para absorver as fortunas. Os novos invasores fizeram o mesmo, a arte é a inscrição com que parecem absorver fortunas e seiva.

A arte dramática tornou-se definitivamente uma carreira pública.

Dirigiram mal as tendências e o povo. Diante das vocações colocaram os horizontes de um futuro inglório, e fizeram crer às turbas que o teatro foi feito para passatempo. Aquelas e este tomaram caminho errado; e divorciaram-se na estrada da civilização.

Deste mundo sem iniciativa nasceram o anacronismo, as anomalias, as contradições grotescas, as mascaradas, o marasmo. A musa do tablado doidejou com os vestidos de arlequim, — no meio das apupadas de uma multidão ébria. É um fiat de reforma que precisa este caos. Há mister de mão hábil que ponha em ação, com proveito para a arte e para o país, as subvenções improdutivas, empregadas na aquisição de individualidades parasitas.

Esta necessidade palpitante não entra na vista dos nossos governos. Limitam-se ao apoio material das subvenções e deixam entregue o teatro a mãos ou profanas ou maléficas. O desleixo, as lutas internas, são os resultados lamentáveis desses desvios da arte. Levantar um paradeiro a essa corrente despenhada de desvarios, é a obra dos governos e das iniciativas verdadeiramente dedicadas.

Se o teatro como tablado degenerou entre nós, como literatura é uma fantasia do espírito.

Não se argumente com meia dúzia de tentativas, que constituem apenas uma exceção; o poeta dramático não é ainda aqui um sacerdote, mas um crente de momento que tirou simplesmente o chapéu ao passar pela porta do templo. Orou e foi caminho. O teatro tornou-se uma escola de aclimatação intelectual para que se transplantaram as concepções de estranhas atmosferas, de céus remotos. A missão nacional, renegou-a ele em seu caminhar na civilização; não tem cunho local; reflete as sociedades estranhas, vai ao impulso de revoluções alheias à sociedade que representa, presbita da arte que não enxerga o que se move debaixo das mãos.

Será aridez de inteligência? não o creio. É fecunda de talentos a sociedade atual. Será falta de ânimo? Talvez; mas será essencialmente falta de emulação. Essa é a causa legítima da ausência do poeta dramático; essa não outra. Falta de emulação? Donde vem ela? Das platéias? Das platéias. Mas é preciso entender: das platéias, porque elas não têm, como disse, uma sedução real e conseqüente.

Já assinalei a ausência de iniciativa e a desordem que esteriliza e mata tanto elemento aproveitável que a arte em caos encerra. A essa falta de um raio condutor se prende ainda a deficiência de poeta dramáticos. Uma educação viciosa constitui o paladar das platéias. Fizeram ar em face das multidões uma procissão de manjares esquisitos de um sabor estranho, no festim da arte, os naturalizaram sem cuidar dos elementos que fermentavam em torno de nossa sociedade, e que só esperavam uma mão poderosa para tomarem uma forma e
uma direção.

As turbas não são o mármore que cede somente ao trescalar laborioso do escopro, são a argamassa que se amolda à pressão dos dedos. Era fácil dar-lhes uma fisionomia; deram-lha. Os olhos foram rasgados para verem segundo as conveniências singulares de uma autocracia absoluta.

Conseguiram fazê-lo.

Habituaram a platéia nos boulevards elas esqueceram as distâncias e gravitam em um círculo vicioso. Esqueceram-se de si mesmas; e os czares da arte lisonjeiam-lhes a ilusão com esse manjar exclusivo que deitam à mesa pública. Podiam dar a mão aos talentos que se grupam nos derradeiros degraus a espera de um chamado.

Nada!

As tentativas nascem pelo esforço sobre-humano de alguma inteligência onipotente, — mas passam depois de assinalar um sacrifício, mais nada! E, de feito, não é mau este proceder. É uma mina o estrangeiro, há sempre que tomar à mão; e as inteligências não são máquinas dispostas às vontades e conveniências especulativas.

Daqui o nascimento de uma entidade: o tradutor dramático, espécie de criado de servir que passa, de uma sala a outra, os pratos de uma cozinha estranha.

Ainda mais essa!

Dessa deficiência de poetas dramáticos, que de coisas resultam! que deslocamentos! Vejamos.

Pelo lado da arte o teatro deixa de ser uma reprodução da vida social na esfera de sua localidade. A crítica resolverá debalde o escalpelo nesse ventre sem entranhas próprias, pode ir procurar o estudo do povo em outra face; no teatro não encontrará o cunho nacional mas uma galeria bastarda, um grupo furta-cor, uma associação de nacionalidades.

A civilização perde assim a unidade. A arte, destinada a caminhar na vanguarda do povo como uma preceptora, — vai copiar as sociedades ultrafronteiras.

Tarefa estéril!

Não pára aqui. Consideremos o teatro como um canal de iniciação. O jornal e a tribuna são os outros dois meios de proclamação e educação pública. Quando se procura iniciar uma verdade busca-se um desses respiradouros e lança-se o pomo às multidões ignorantes. No país em que o jornal, a tribuna e o teatro tiverem um desenvolvimento conveniente — as caligens cairão aos olhos das massas; morrerá o privilégio, obra de noite e da sombra; e as castas superiores da sociedade ou rasgarão os seus pergaminhos ou cairão abraçadas com eles, como em sudários.

É assim, sempre assim; a palavra escrita na imprensa, a palavra falada na tribuna, ou a palavra dramatizada no teatro, produziu sempre uma transformação. 
É o grande fiat de todos os tempos.

Há porém uma diferença: na imprensa e na tribuna a verdade que se quer proclamar é discutida, analisada, e torcida nos cálculos da lógica; no teatro há um processo mais simples e mais ampliado; a verdade parece nua, sem demonstração, sem análise.

Diante da imprensa e da tribuna as idéias abalroam-se, ferem-se, e lutam para acordar-se; em face do teatro o homem vê, sente, palpa; está diante de uma sociedade viva, que se move, que se levanta, que fala, e de cujo composto se deduz a verdade, que as massas colhem por meio de iniciação. De um lado a narração falada ou cifrada, de outro a narração estampada, a sociedade reproduzida no espelho fotográfico de forma dramática.

É quase capital a diferença.

Não só o teatro é um meio de propaganda, como também é o meio mais eficaz, mais firme, mais insinuante.

É justamente o que não temos.

As massas que necessitam de verdades, não as encontrarão no teatro destinado à reprodução material e improdutiva de concepções deslocadas da nossa civilização,
— e que trazem em si o cunho de sociedades afastadas. É uma grande perda; o sangue da civilização, que se inocula também nas veias do povo pelo teatro, não desce a animar o corpo social: ele se levantará dificilmente embora a geração presente enxergue o contrário com seus olhos de esperança.

Insisto pois na asserção: o teatro não existe entre nós: as exceções são esforços isolados que não atuam, como disse já, sobre a sociedade em geral. Não há um teatro nem poeta dramático...

Dura verdade, com efeito! Como! pois imitamos as frivolidades estrangeiras, e não aceitamos os seus dogmas de arte? É um problema talvez; as sociedades infantes
parecem balbuciar as verdades, que deviam proclamar para o próprio engrandecimento. Nós temos medo da luz, por isso que a empanamos de fumo e vapor. 

Sem literatura dramática, e com um tablado, regular aqui, é verdade, mas deslocado e defeituoso ali e além, — não podemos aspirar a um grande passo na civilização. À arte cumpre assinalar como um relevo na história as aspirações éticas do povo — e aperfeiçoá-las e conduzi-las, para um resultado de grandioso futuro.

O que e necessário para esse fim?

Iniciativa e mais iniciativa.

Fonte:
Machado de Assis. Crítica Literária. Pará de  Minas/ MG: Virtualbooks, 2003.

Nenhum comentário: