quinta-feira, 6 de fevereiro de 2014

Machado de Assis (Gazeta de Holanda) N.° 37 – 22 de novembro de 1887

Pessoas há... Por exemplo,
Que vale um desfalque triste
Cuja notícia contemplo?
Acho que já nem existe.

Pois, entrados os cobritos,
Desmancha-se a diferença,
E o que eram terríveis gritos
Chega a pura indiferença.

Pessoas há que detestam
Rimas daquele feitio;
São cadeias que molestam
A inspiração, mais o brio.

Eu cá sendo, necessário
Ir andando, vou andando;
Rimo Corsário e corsário,
E bando com contrabando,

Sem saber se o leitor gosta,
Ou não dessa rima rica.
Se eu quero a obra composta,
Menos que fazer me fica.

Se não sair boa a quadra,
Que saia, ao menos, completa;
Lá, se lhe quadra ou não quadra,
É queixar-se do poeta;

Não do triste gazeteiro,
Que rói o tempo e trabalha
Sem encontrar no tinteiro
Qualquer assunto que calha.

Ninguém me dirá que as notas
Falsas e germanizadas
Valem nunca um par de botas,
Novas ou acalcanhadas.

Pois que já tratara delas
O cronista do costume,
E ora são como panelas
A que não resta chorume.

Nem elas, nem os debates
Do Jockey-Club, e os palpites,
Nem os terríveis combates
De agudas encefalites.

De encefalites agudas,
Das quais não escrevo nada;
As rimas devem ser mudas,
Quando a matéria é pancada.

E brigar por dois cavalos,
Gastar suor, sangue e murros,
Defendê-los, levantá-los,
Para um amador de burros,

É completa maluquice.
Eu amo os burros, capazes,
Sem ardor nem casquilhice,
Maduros desde rapazes.

Barulhos entre campistas?
Cadeira de Torres Homem?
São matérias de altas vistas,
Que aos fracos olhos se somem.

Sobretudo, em medicina,
Basta-me um só documento,
Cousa séria, não mofina,
Obra séria e de momento,

A autópsia de um tal Garrido,
Que foi achado enforcado,
Sem ficar bem definido
Se era ou não um suicidado.

Se sim ou se não — responde
O auto que é impossível
Achar por onde se sonde
Esse problema terrível.

Mas, continuando a pena
Naquele labor ingrato,
De toda a descrita cena
Conclui que houve assassinato.

É por isso que os problemas
Nunca me meteram susto;
São simples estratagemas
Que a gente desfaz sem custo.

Assim desfizesse o dano
E a funda melancolia
De não ser pernambucano!
Teria visto, de dia,

Vênus, o astro, no Recife,
Onde apareceu agora...
Ah! tu rimas com patife,
Tu, Recife de má hora!

Lembra a notícia que Enéias,
Indo da troiana parte,
Viu assim a flor de idéias,
E assim a viu Bonaparte.

Foi o que li e acredito;
Que eu creio em tudo o que leio,
E como sigo um só rito
Só leio aquilo em que creio.

Faça o leitor outro tanto;
Se não crê nesta Gazeta
De Holanda, ponha-a num canto;
E rimará com Gazeta.

Fonte:
Obra Completa de Machado de Assis, Edições Jackson, Rio de Janeiro, 1937.
Publicado originalmente na Gazeta de Noticias, Rio de Janeiro, de 01/11/1886 a 24/02/1888.

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