domingo, 2 de fevereiro de 2014

Nilto Maciel (Contistas do Ceará) Ronaldo Correia de Brito

Ronaldo Correia de Brito (Saboeiro, 1950) aos cinco anos mudou-se para o Crato e aos dezoito para Recife, onde estudou medicina. Teatrólogo e ficcionista. Escreveu teatro para crianças: O Baile do Menino Deus, Bandeira de São João, O Pavão Misterioso e Arlequim; teatro para adultos: O Reino Desejado, Retratos de Mãe, Malassombro, Auto das Portas do Céu e Os Desencantos do Diabo. Também roteiros de documentários e filmes para televisão e cinema: Lua Cambará (Longa metragem para a TV Cultura), Caboclinhos (Documentário para a TV Universitária), Brincadeira de Mateus (Documentário para a TV Universitária), Cavaleiro Reisado (Documentário para cinema), Brincadeira de Reisado (Documentário para cinema), Maracatus (Documentário sobre para a TV BBC); além dos livros de contos: Três Histórias na Noite (Prêmio Governo do Estado de Pernambuco de 1989), As Noites e os Dias (Recife: Ed. Bagaço, 1996), Faca (São Paulo: Ed. Cosac & Naif, 2003) e O Livro dos Homens (São Paulo: Ed. Cosac & Naif, 2005).

As histórias de Faca enfocam o ambiente do sertão cearense, num tempo aparentemente indefinido. Na primeira, Velho espera a volante policial, expressão em voga no tempo do cangaço. Em outra, Catarina vive do passado, a pedir ao filho a leitura de árvores genealógicas, que remontam ao início do povoamento português das terras nordestinas. Passado de riquezas; presente de quase miséria: “Não somos mais nada. Da família só guardamos o piano, uns móveis capengas e essa casa, ameaçando ruir”. Também os utensílios domésticos e vestes remetem a um tempo morto: candeeiros, lamparina a querosene, cumbuca, camisa de madapolão.

Os Sertões pode ser considerado o marco de uma literatura brasileira voltada para a interiorização do foco narrativo, que desaguaria no Romance de 30 e, depois, em Guimarães Rosa e Ariano Suassuna. E não só isso, mas, sobretudo, o enfoque de um período histórico que vai da desagregação do aparato feudal das propriedades rurais, os latifúndios, passando pelo desmoronamento dos engenhos de açúcar, o surgimento do cangaço, até o início da agroindústria, isto é, a implementação de um capitalismo de Estado (Sudene). Pois enquanto a industrialização se desenvolvia na Europa, com o fortalecimento dos Estados nacionais, em Canudos tropas legais massacravam uma comunidade medieval. Pois a Idade Média brasileira teve início quando na Europa o feudalismo estertorava. E terminou quando lá o capitalismo chegava ao apogeu. Enquanto na Rússia acontecia a revolução socialista, no Nordeste brasileiro, bandoleiros sem ideologia política enfrentavam volantes policiais, como se aqui o Estado ainda não estivesse constituído.

Ronaldo Correia de Brito é o retratista mais moderno desse mundo decadente. Com uma linguagem nova, retrata o ambiente sertanejo daquele período histórico, porém voltado para o microcosmo familiar, as desavenças entre greis ou no interior de clãs semifeudais do Nordeste brasileiro. O próprio narrador de “Redemunho” observa este descompasso histórico entre o “mundo” e o “sertão”: “Quando o mundo já falava por rádios e telefones e os aviões cortavam os céus, os sertões ainda se abasteciam nos lombos de burros e cavalos de carga”.

Os personagens de Ronaldo vagam pelos sertões, tabuleiros, vivem em pequenas cidades, viajam em lombo de cavalo, atravessam o rio Jaguaribe. São seres afeitos à violência, à solidão, à morte, às tragédias familiares. Chagas Valadão, perseguido pela volante, é acusado de assassinato. As cenas de violência entre os ciganos de “Faca” se repetem do início ao fim. O dia-a-dia de mãe e filho em “Redemunho” deixa os nervos do leitor à flor da pele, como se a qualquer momento o clima de tensão pudesse desaguar em morte.

Aspecto interessante nos personagens de A Faca são os nomes de batismo: Chagas Valadão, Leonardo Bezerra, Otacílio Mendes, Anselmo Dantas e muitos outros. No Nordeste os nomes mais comuns são José, João, Luís, Raimundo, Pedro, Manoel, Maria, etc. Além disso, quase todos têm nomes duplos, ou nome e sobrenome, como nos ficcionistas hispano-americanos. Alguns se vangloriam dos muitos nomes, como Catarina Macrina Cavalcante de Albuquerque Bezerra. Além disso, se irrita por não ter sido batizada como Cavalcanti, pois descendente de Pedro Cavalcanti de Albuquerque, Cavaleiros da Ordem de Cristo, fidalgos da casa real, governadores de capitanias.

O ponto de vista onisciente prepondera no livro, mesmo em “Lua Cambará”, que tem mais de um narrador. Um homem ou menino (primeira pessoa) não identificado, e de menor importância na trama, inicia a história: “Meu pai jurou que viu”. Não se sabe se, ao narrar a lenda, o ser fictício é adulto ou criança, porque fala do passado: “Eu pulei do colo de meu pai, assustado (...)”. A seguir, a voz assume o ponto de vista onisciente. Outros narradores-personagens surgem entre um quadro e outro, como o vaqueiro Bispo e o Doido Guará. Composto de quadros/cenas, o foco narrativo ora se volta para o menino, seu pai e o vaqueiro Argemiro Bispo, num passado recente; ora regride no tempo, para contar a história-lenda de Lua Cambará, já morta (“assombração que passa/ sem princípio, meio e fim”) no tempo em que o garoto ouve do pai a história da alma penada de Lua.

Ronaldo se vale sempre desse ir e vir do foco de narração, em cenas curtas, em tempos diferentes (retrospectos). Passado e presente (agora ou passado mais recente) se complementam, como se a trama durasse alguns anos (novela, romance). Em “A espera da volante”, Irineia dá notícia ao Velho de que “a volante policial vinha vindo”. Segue-se a narração do encontro dos dois, das conversas: “O Velho balançava a cabeça, ria manso, falava baixo”. Mais adiante o narrador faz um retrospecto, para apresentar ao leitor o protagonista: “Ninguém sabia há quanto tempo o Velho estava ali”. No desenrolar do episódio, o narrador parece perder a onisciência: “Em algum ponto da estrada, a volante avançava em marcha”. Ação distante do cenário principal. Quem a presenciava? No final, ao se aproximar a volante do palco do conflito (a casa do Velho), a voz narradora deixa de fazer conjecturas e, como se narrasse uma ação no presente real (ao vivo, como se diz em televisão), observa: “Como agora, quando o verde da camisa suada dos soldados era visível, e não havia mais dúvidas de que o esperado encontro, finalmente, estava para acontecer”.

Algumas composições de Ronaldo seguem um plano de flashes, com as ações intercaladas, ora num tempo, ora noutro. Veja-se “Faca”: na primeira ação “uns ciganos acharam a faca”; na segunda, há um flashback em que aparecem alguns dos personagens da trama e a faca; a terceira cena é continuação da primeira. E assim até o final. São narrativas em quadros breves (linguagem de cinema), tempos diferentes e intercalados.

Um dos mais interessantes e bem realizados contos da coleção é “Mentira de Amor”. Realidade e imaginação (da protagonista Delmira) dão corpo à história de uma mulher e suas filhas aprisionadas em casa pelo marido e pai. A realidade se circunscreve entre as paredes da casa. Fora, na rua, na cidade, a vida fervilha, sobretudo com a chegada de um circo. Impossibilitadas de saírem de casa, Delmira passa o tempo a imaginar, para si e as meninas, a agitação na cidade, a adivinhar o desfile dos artistas e animais do circo. É a vida imaginada. Como seria o circo? Como antigamente, quando era menina?

Os desfechos às vezes não ocorrem ou são meras conjecturas. Ou a expectativa de um fim, como em “A espera da volante”. Em outros contos os desenlaces são os mais inesperados. Em terceiro grupo se situam as tragédias, com remates entrevistos, adredemente anunciados nas entrelinhas.

A linguagem do contista é erudita, apesar de serem sertanejos os seres fictícios. Não se verifica o linguajar arrevesado, muitas vezes antiquado, dos habitantes dos sertões, sobretudo antes do advento da televisão. Os vocábulos de uso no sertão encontrados na obra são do conhecimento do leitor comum: alpendre, coalhada, candeeiro, comboieiro, baú, todos dicionarizados. E não só isso, também a construção da frase nos moldes da tradição literária. Portanto, não há vislumbres de regionalismo, no sentido restritivo do termo, nestas composições de Ronaldo Correia de Brito, mesmo que os narradores não se esqueçam de mencionar o sertão ou algumas localidades da geografia nordestina ou cearense.

Ao arquitetar as narrativas de Faca, o contista certamente não se prendeu a um esquema, a uma fórmula, pois, apesar das peculiaridades (linguagem objetiva, narração em quadros, personagens trágicos, etc), não se repete nunca. O narrador de “A escolha” se dá até o direito de apontar ao leitor o cuidado que teve ter com o detalhe, o miolo da peça ficcional, o recheio do relato: “As histórias não têm apenas princípio e fim, elas são sobretudo o meio, que é o tempo de maior duração, o de se comer juntos uma arrouba de sal”. Talvez uma lição de narrativa.

Fonte:
MACIEL, Nilto. Contistas do Ceará: D’A Quinzena ao Caos Portátil. Fortaleza/CE: Imprece, 2008.

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