segunda-feira, 21 de março de 2022

Machado de Assis (A desejada das gentes)

- Ah! conselheiro, aí começa a falar em verso.

- Todos os homens devem ter uma lira no coração, - ou não sejam homens. Que a  lira ressoe a toda hora, nem por qualquer motivo, não o digo eu; mas de longe em longe, e por algumas reminiscências particulares... Sabe por que é que lhe pareço poeta, apesar das Ordenações do Reino e dos cabelos grisalhos? É porque vamos por esta Glória adiante, costeando aqui a Secretaria de Estrangeiros... Lá está o outeiro célebre... Adiante há uma casa...

- Vamos andando.

- Vamos... Divina Quintília! Todas essas caras que por aí passam são outras, mas falam-me daquele tempo, como se fossem as mesmas de outrora; é a lira que ressoa, e a imaginação faz o resto. Divina Quintília!

- Chamava-se Quintília? Conheci de vista, quando andava na Escola de Medicina, uma linda moça com esse nome. Diziam que era a mais bela da cidade.

- Há de ser a mesma, porque tinha essa fama. Magra e alta?

- Isso. Que fim levou?

- Morreu em 1859. Vinte de Abril. Nunca me há de esquecer esse dia. Vou contar-lhe um caso interessante para mim, e creio que também para o senhor. Olhe, a casa era aquela... Morava com um tio, chefe de esquadra reformado; tinha outra casa no Cosme Velho. Quando conheci Quintília... Que idade pensa que teria, quando a conheci?

- Se foi em 1855...

- Em 1855.

- Devia ter vinte anos

- Tinha trinta.

- Trinta?

- Trinta anos. Não os parecia, nem era nenhuma inimiga que lhe dava essa idade. Ela própria confessava e até com afetação. Ao contrário, uma de suas amigas afirmava que Quintília não passava de vinte e sete; mas como ambas tinham nascido no mesmo dia, dizia isso para diminuir-se a si própria.

- Mau, nada de ironias; olhe que ironia não faz boa cama com a saudade.

- Que é a saudade senão uma ironia do tempo e da fortuna? Veja lá; começo a ficar sentencioso. Trinta anos; mas em verdade, não os parecia. Lembra-se bem que era magra e alta; tinha os olhos, como eu então dizia, que pareciam cortados da capa da última noite, mas apesar de noturnos, sem mistérios nem abismos. A voz era brandíssima, um tanto apaulistada, a boca larga, e os dentes, quando ela simplesmente falava, davam-lhe à boca um ar de riso. Ria também, e foram os risos dela, de parceria com os olhos, que me doeram muito durante certo tempo.

- Mas se os olhos não tinham mistérios...

- Tanto não tinham que cheguei ao ponto de supor que eram as portas abertas do castelo, e o riso o clarim que chamava os cavaleiros. Já a conhecíamos, eu e o meu companheiro de escritório, o João Nóbrega, ambos principiantes na advocacia, e íntimos como ninguém mais; mas nunca nos lembrou namorá-la. Ela andava então no galarim; era bela, rica, elegante e da primeira roda. Mas um dia, no antigo teatro Provisório, entre dois atos dos Puritanos, estando eu num corredor, ouvi um grupo de moços que falavam dela, como de uma fortaleza inexpugnável. Dois confessaram haver tentado alguma coisa, mas sem fruto; e todos pasmavam do celibato da moça que lhes parecia sem explicação. E chalaceavam: um dizia que era promessa até ver se engordava primeiro; outro que estava esperando a segunda mocidade do tio para casar com ele; outro que provavelmente encomendara algum anjo ao porteiro do céu; trivialidades que me aborreceram muito, e da parte dos que confessaram tê-la cortejado ou amado, achei que era uma grosseria sem nome. No que eles estavam todos de acordo é que ela era extraordinariamente bela; aí foram entusiastas e sinceros.

- Oh! ainda me lembro!... era muito bonita.

- No dia seguinte, ao chegar ao escritório, entre duas causas que não vinham, contei ao Nóbrega a conversação da véspera. Nóbrega riu-se do caso, refletiu, e depois de dar alguns passos, parou diante de mim, olhando calado. – Aposto que a namoras? perguntei-lhe. – Não, disse ele; nem tu? Pois lembrou-me uma coisa: vamos tentar o assalto à fortaleza? Que perdemos com isso? Nada; ou ela nos põe na rua e já podemos esperá-lo, ou aceita um de nós, e tanto melhor para o outro que verá o seu amigo feliz. - Estás falando sério? - Muito sério. - Nóbrega acrescentou que não era só a beleza dela que a fazia atraente. Note que ele tinha a presunção de ser espírito prático, mas era principalmente um sonhador que vivia lendo e construindo aparelhos sociais e políticos. Segundo ele, os tais rapazes do teatro evitavam falar dos bens da moça, que eram um dos feitiços dela, e uma das causas prováveis da desconsolação de uns e dos sarcasmos de todos. E dizia-me: - Este relógio, por exemplo. Combatamos pela nossa Quintília, minha ou tua, mas provavelmente minha, porque sou mais bonito que tu.

- Conselheiro, a confissão é grave; foi assim brincando...?

- Foi assim brincando, cheirando ainda aos bancos da academia, que nos metemos em negócio de tanta ponderação, que podia acabar em nada, mas deu muito de si. Era um começo estouvado, quase um passatempo de crianças, sem a nota da sinceridade; mas o homem põe e a espécie dispõe. Conhecíamo-la, posto não tivéssemos encontros frequentes; uma vez que nos dispusemos a uma ação comum, entrou um elemento novo na nossa vida, e dentro de um mês estávamos brigados.

- Brigados?

- Ou quase. Não tínhamos contado com ela, que tinha nos enfeitiçado a ambos, violentamente. Em algumas semanas já pouco nos falávamos de Quintília, e com indiferença; tratávamos de enganar um ao outro e dissimular o que sentíamos. Foi assim que as nossas relações se dissolveram, no fim de seis meses, sem ódio nem luta, nem demonstração externa, porque ainda nos falávamos, onde o acaso nos reunia; mas já então tínhamos banca separada.

- Começo a ver uma pontinha do drama...

- Tragédia, diga tragédia; porque daí a pouco tempo, ou por desengano verbal que ela lhe desse, ou por desespero de vencer, Nóbrega deixou-me só em campo. Arranjou uma nomeação de juiz municipal lá para os sertões da Bahia, onde definhou e morreu antes de acabar o quatriênio. E juro-lhe que não foi o inculcado espírito prático de Nóbrega que o separou de mim; ele, que tanto falava das vantagens do dinheiro, morreu apaixonado como um simples Werther.

- Menos a pistola.

- Também o veneno mata; e o amor de Quintília podia dizer-se alguma coisa  parecido com isso; foi o que o matou, e o que ainda hoje me dói... Mas, vejo pelo seu dito que o estou aborrecendo...

- Pelo amor de Deus. Juro-lhe que não; foi uma graçola que me escapou. Vamos adiante, conselheiro; ficou só em campo.

- Quintília não deixava ninguém estar só em campo, - não digo por ela, mas pelos outros. Muitos vinham ali a tomar um cálix de esperanças, e iam cear a outra parte. Ela não favorecia a um mais que a outro; mas era lhana, graciosa e tinha essa espécie de olhos derramados que não foram feitos para homens ciumentos. Tive ciúmes amargos e, às vezes, terríveis. Todo argueiro me parecia um cavaleiro, e todo cavaleiro um diabo. Afinal acostumei-me a ver que eram passageiros de um dia. Outros me metiam mais medo, eram os que vinham dentro da luvas das amigas. Creio que houve duas ou três negociações dessas, mas sem resultado. Quintília declarou que nada faria sem consultar o tio, e o tio aconselhou a recusa, - coisa que ela sabia de antemão. O bom velho não gostava nunca da visita de homens, um receio de que a sobrinha escolhesse algum e casasse. Estava tão acostumado a trazê-la ao pé de si, como uma muleta da velha alma aleijada, que temia perdê-la inteiramente.

- Não seria essa a causa da isenção sistemática da moça?

- Vai ver que não.

- O que noto é que o senhor era mais teimoso que os outros...

- ... Iludido, a princípio, porque no meio de tantas candidaturas malogradas, Quintília preferia-me a todos os outros homens, e conversava comigo mais largamente e mais intimamente, a tal ponto que chegou a correr que nos casávamos.

- Mas conversavam de quê?

- De tudo o que ela não conversava com os outros; e era de fazer pasmar que uma pessoa tão amiga de bailes e passeios, de valsar e rir, fosse comigo tão severa e grave, tão diferente do que costumava ou que parecia ser.

- A razão é clara: achava a sua conversação menos insossa que a dos outros homens.

- Obrigado; era mais profunda a causa da diferença, e a diferença ia-se acentuando com os tempos. Quando a vida cá embaixo a aborrecia muito, ia para o Cosme Velho, e ali as nossas conversações eram mais frequentes e compridas. Não lhe posso dizer, nem o senhor compreenderia nada, o que foram as horas que ali passei, incorporando na minha vida toda a vida que jorrava dela. Muitas vezes quis dizer-lhe o que sentia, mas as palavras tinham medo e ficavam no coração. Escrevi cartas sobre cartas; todas me pareciam frias, difusas, ou inchadas de estilo. Demais, ela não dava ensejo a nada; tinha um ar de velha amiga. No princípio de 1857 adoeceu meu pai em Itaboraí; corri a vê-lo, achei-o moribundo. Este fato reteve-me fora da Corte uns quatro meses. Voltei pelos fins de maio. Quintília recebeu-me triste da minha tristeza, e vi claramente que o meu luto passara aos olhos dela...

- Mas que era isso senão amor?

- Assim acreditei, e dispus a minha vida para desposá-la. Nisto, adoeceu o tio gravemente. Quintília não ficava só, se ele morresse, porque, além dos muitos parentes espalhados que tinha, morava com ela agora, na casa da rua do Catete, uma prima, D. Ana, viúva; mas, é certo que a afeição principal ia-se embora e nessa transição da vida presente à vida ulterior podia eu alcançar o que desejava. A moléstia do tio foi breve; ajudada da velhice, levou-o em duas semanas. Digo-lhe aqui que a morte dele lembrou-me a de meu pai, e a dor que então senti foi quase a mesma. Quintília viu-me padecer, compreendeu o duplo motivo, e, segundo me disse depois, estimou a coincidência do golpe, uma vez que tínhamos de o receber sem falta e tão breve. A palavra pareceu-me um convite matrimonial; dois meses depois cuidei de pedi-la em casamento. D. Ana ficara morando com ela e estavam no Cosme Velho. Fui ali achei-as juntas no terraço, que ficava perto da montanha. Eram quatro horas da tarde de um domingo. D. Ana, que nos presumia namorados, deixou-nos o campo livre.

- Enfim!

- No terraço, lugar solitário, e posso dizer agreste, proferi a primeira palavra. O meu plano era justamente precipitar tudo, com medo de que, cinco minutos de conversa, me tirassem as forças. Ainda assim, não sabe o que me custou; custaria menos uma batalha, e juro-lhe que não nasci para guerras. Mas aquela mulher magrinha e delicada, impunha-se-me, como nenhuma outra, antes e depois...

- E então?

- Quintília adivinhara, pelo transtorno do meu rosto, o que lhe ia pedir, e deixou-me falar para preparar a resposta. A resposta foi interrogativa e negativa. Casar para quê? Era melhor que ficássemos amigos como dantes. Respondi-lhe que a amizade era, em mim, desde muito, a simples sentinela do amor; não podendo mais contê-lo, deixou que ele saísse. Quintília sorriu da metáfora, o que me doeu, e sem razão; ela, vendo o efeito, fez-se outra vez séria e tratou de persuadir-me de que era melhor não casar. - Estou velha, disse ela; vou em trinta e três anos. Mas se eu a amo assim mesmo, repliquei, e disse-lhe uma porção de coisas, que não poderia repetir agora. Quintília refletiu um instante; depois insistiu nas relações de amizade; disse que posto que mais moço que ela, tinha a gravidade de um homem mais velho, e inspirava-lhe confiança como nenhum outro. Desesperançado, dei algumas passadas, depois sentei-me outra vez e narrei-lhe tudo. Ao saber da minha briga com o amigo e companheiro da academia, e a separação em que ficámos sentiu-se, não sei se diga, magoada ou irritada. Censurou-nos; não valia a pena que chegássemos a tal ponto. - A senhora diz isso, porque não sente a mesma coisa. - Mas então é um delírio? - Creio que sim; o que lhe afianço é que ainda agora, se fosse necessário, separar-me-ia dele uma e cem vezes; e creio poder afirmar-lhe que ele faria a mesma coisa. Aqui olhou ela espantada para mim, como se olha para uma pessoa cujas faculdades parecem transtornadas; depois abanou a cabeça, e repetiu que fora um erro; não valia a pena. - Fiquemos amigos, disse-me, estendendo a mão. - É impossível; pede-me coisa superior às minhas forças, nunca poderei ver na senhora uma simples amiga; não desejo impor-lhe nada; dir-lhe-ei até que nem mais insisto, porque não aceitaria outra resposta agora. Trocamos ainda algumas palavras, e retirei-me... Veja a minha mão.

- Treme-lhe ainda ...

- E não lhe contei tudo. Não lhe digo aqui os aborrecimentos que tive, nem a dor e o despeito que me ficaram. Estava arrependido, zangado, devia ter provocado aquele desengano desde as primeiras semanas; mas a culpa foi da esperança, que é uma planta daninha , que me comeu o lugar de outras plantas melhores. No fim de cinco dias saí para Itaboraí, onde me chamaram alguns interesses do inventário de meu pai. Quando voltei, três semanas depois, achei em casa uma carta de Quintília.

- Oh!

- Abri-a alvoroçadamente: datava de quatro dias. Era longa; aludia aos últimos sucessos, e dizia coisas meigas e graves. Quintília afirmava ter esperado por mim todos os dias, não cuidando que eu levasse o egoísmo até não voltar lá mais, por isso escrevia-me, pedindo que fizesse dos meus sentimentos pessoais e sem eco uma página de história acabada; que ficasse só o amigo, e lá fosse ver a sua amiga. E concluía com estas singulares palavras: "Quer uma garantia? Juro-lhe que não casarei nunca." Compreendi que um vínculo de simpatia moral nos ligava um ao outro; como a diferença que o que era em mim paixão específica, era nela uma simples eleição de caráter. Éramos dois sócios , que entravam no comércio da vida com diferente capital: eu, tudo o que possuía; ela, quase um óbulo. Respondi à carta dela nesse sentido; e declarei que era tal a minha obediência e o meu amor, que cedia, mas de má vontade, porque, depois do que se passara entre nós, ia sentir-me humilhado. Risquei a palavra ridículo já escrita, para poder ir vê-la sem este vexame; bastava o outro.

- Aposto que seguiu atrás da carta! É o que eu faria, porque essa moça, ou eu me engano ou estava morta por casar com o senhor.

- Deixe a sua fisiologia usual; este caso é particularíssimo.

- Deixe-me adivinhar o resto; o juramento era um anzol místico; depois, o senhor, que o recebera, podia desobrigá-la dele, uma vez que aproveitasse com a absolvição. Mas, enfim, correu à casa dela.

- Não corri; fui dois dias depois. No intervalo, respondeu ela à minha carta com um bilhete carinhoso, que rematava com esta ideia: "não fale de humilhação, onde não houve público." Fui e voltei uma e mais vezes e restabeleceram-se as nossas relações. Não se falou em nada; ao princípio, custou-me muito parecer o que era dantes; depois o demônio da esperança veio outra vez pousar no meu coração; e, sem nada exprimir, cuidei que um dia, um dia tarde, ela viesse a casar comigo. E foi essa esperança que me retificou aos meus próprios olhos, na situação em que me achava. As boatos de nosso casamento correram o mundo. Chegaram aos nossos ouvidos; eu negava formalmente e sério; ela dava de ombros e ria. Foi essa fase da nossa vida a mais serena para mim, salvo um incidente curto, um diplomata austríaco ou não sei quê, rapagão, elegante, ruivo, olhos grandes e atrativos, e fidalgo ainda por cima. Quintília mostrou-se-lhe tão graciosa, que ele cuidou estar aceito, e tratou de ir adiante. Creio que algum gesto meu, inconsciente, ou então um pouco da percepção fina que o céu lhe dera, levou depressa o desengano à legação austríaca. Pouco depois ela adoeceu; e foi então que a nossa intimidade cresceu de vulto. Ela, enquanto se tratava, resolveu não sair, e isso mesmo lhe disseram os médicos. Lá passava eu muitas horas diariamente. Ou elas tocavam, ou jogávamos os três, ou então lia-se alguma coisa; a maior parte das vezes conversávamos somente. Foi então que a estudei muito; escutando as suas leituras vi que os livros puramente amorosos achava-os incompreensíveis, e, se as paixões aí eram violentas, largava-os com tédio. Não falava assim por ignorante; tinha notícia vaga das paixões, e assistira a algumas alheias.

- De que moléstia padecia?

- Da espinha. Os médicos diziam que a moléstia não era talvez recente, e ia tocando o ponto melindroso. Chegámos assim a 1859. Desde março desse ano a moléstia agravou-se muito, teve uma pequena parada, mas para os fins do mês chegou ao estado desesperador. Nunca vi depois criatura mais enérgica diante da iminente catástrofe; estava então de uma magreza transparente, quase fluida; ria, ou antes, sorria apenas, e vendo que eu escondia as minhas lágrimas, apertava-me as mãos agradecida. Um dia, estando só com o médico, perguntou-lhe a verdade; ele ia mentir; ela disse-lhe que era inútil, que estava perdida. - Perdida, não, murmurou o médico. - Jura que não estou perdida? - Ele hesitou, ela agradeceu-lhe. Uma vez certa que morria, ordenou o que prometera a si mesma.

- Casou com o senhor, aposto?

- Não me relembre essa triste cerimônia; ou antes, deixe-me relembrá-la, porque me traz algum alento do passado. Não aceitou recusa nem pedidos; casou comigo à beira da morte. Foi no dia 18 de Abril de 1859. Passei os últimos dois dias, até 20 de Abril, ao pé da minha noiva moribunda, e abracei-a pela primeira vez, feita cadáver.

- Tudo isso é bem esquisito.

- Não sei o que dirá a sua fisiologia. A minha, que é de profano, crê que aquela moça tinha ao casamento uma aversão puramente física. Casou meia defunta, às portas do nada. Chame-lhe monstro, se quer, mas acrescente divino.

Fonte:
Machado de Assis. Várias histórias. Publicado originalmente em 1896.

Julia Martins e Grant Faulkner (Como Escrever uma História de Fantasia Convincente) Parte 4, final: Escrevendo a história


1. Esquematize a história para desenvolvê-la melhor.

As histórias de fantasia costumam trazer várias reviravoltas; por isso, é melhor você esquematizar todo o enredo em tópicos antes de começar a escrever a versão final.

Você pode dividir esse esquema do enredo em títulos e subtítulos. Os títulos são separados por
algarismos romanos, enquanto os subtítulos são distribuídos entre letras minúsculas ou números.

Por exemplo: "I. Apresentar Ramona; a. Ramona está no campo, trabalhando; b. Ela é abordada pelo espírito de Janaína, sua tia".

2. Apresente o problema central.

Fale do problema principal no início do enredo para já colocar o herói no conflito (e ajudá-lo a superá-lo aos poucos).

Por exemplo: em Jogos Vorazes, Katniss Everdeen se oferece como tributo no início do enredo; em Buffy, a Caça-Vampiros, Buffy entende que precisa aceitar o seu papel de caçadora de vampiros quando os seus amigos são atacados.

O ponto-chave de muitas histórias acontece quando o personagem principal sai de casa — talvez para embarcar em uma jornada. Por exemplo: o protagonista pode ficar sabendo que a sua mãe, que vive em outro país, está doente. Então, ele tem que cruzar todo um deserto com o remédio de que ela precisa escondido antes que seja tarde.

3. Desenvolva a personalidade do herói com conflitos mais simples.

Todo evento do enredo tem que servir para desenvolver o herói.

Use cada conflito para testar a força, as habilidades e os talentos dele — e tudo virá a calhar quando for hora de enfrentar o vilão.

Preste atenção ao que acontece nas suas histórias de fantasia favoritas. Por quais situações Harry Potter passa até aceitar o seu destino de "menino que sobreviveu"? Como Katniss aceita que ela vai liderar a revolução?

Insira conflitos menores e que levem ao problema central do enredo para testar a força, as habilidades e os poderes do personagem. Por exemplo: ele pode ter que enfrentar um grupo rival depois de tentar roubar o remédio para a mãe doente.

"Apesar de esses conflitos estarem ligados ao problema central, o protagonista nem sempre está a par do que acontece nos bastidores do enredo".

4. Escolha um fim adequado para a história.

Pense no clímax da história.

Geralmente, isso acontece quando o herói enfrenta o vilão. Amarre todas as pontas emocionais soltas, pois os leitores querem ver o quanto o protagonista cresceu ao longo do processo.

Por exemplo: talvez ele se reúna com a família e não se sinta mais abandonado.

Uma história fantástica pode ter um final feliz ou triste, com o herói vencendo ou perdendo. Você também pode encerrar o enredo com parte dos conflitos ainda no ar — ainda mais se quiser escrever uma sequência com os mesmos personagens.

Dicas

Leia várias obras de fantasia enquanto cria a sua própria. Essa é a melhor forma de melhorar a sua escrita. Se necessário, peça dicas e recomendações aos seus amigos e conhecidos.

Fonte:
Wikihow

domingo, 20 de março de 2022

A. A. de Assis (Saudade em Trovas) n. 35: Reinaldo Moreira de Aguiar

 

Sílvio Romero (O Caboclo namorado)


(Folclore do Sergipe)


HAVIA UMA MOÇA CASADA muito bonita. Por sua porta passava sempre um caboclo e numa ocasião virou-se para ela e disse-lhe: “Adeus, meu cravo.” A moça fez que não ouviu e calou-se.

No outro dia o caboclo passou e tornou a dizer a mesma coisa. A moça, não podendo mais chegar à janela, porque todas as vezes que o caboclo passava, dizia-lhe: “Adeus, meu cravo”, queixou-se ao marido. 
 
Este disse-lhe: “Não te importes, e quando ele te disser ‘adeus, meu cravo’, tu responde-lhe ‘adeus, minha rosa’, e deixa o resto por minha conta.”

No dia seguinte o caboclo passou e repetiu: “Adeus, meu cravo.” 
 
Ela virou-se para ele e respondeu: “Adeus, minha rosa.” 
 
O caboclo saiu rindo-se de contente e no outro dia já não disse “Adeus, meu cravo”, e sim perguntou à moça se ela dava licença a ele ir à casa dela à noite.

A senhora ficou incomodadíssima e não deu-lhe resposta. Chegando o marido, ela participou-lhe o ocorrido, ao que ele respondeu: “Amanhã dize-lhe que eu fiz uma viagem e que tu dás licença para ele vir conversar contigo à noite.”

Quando o caboclo passou dirigiu à moça a mesma pergunta, esta respondeu-lhe tudo quanto o marido tinha lhe dito. À noite chegou o caboclo, indo muito cheiroso e bem vestido. Já o marido da moça tinha munido dois criados, cada qual com um chicote de couro cru, e mandado deitar debaixo da cama grande porção de cansanção*.

O caboclo logo que foi chegando disse à moça que queria ir para o quarto e que ela apagasse a luz que o estava incomodando. Depois tirou toda a roupa com que estava vestido e deitou-se dizendo que estava com muito sono. Nisto o marido da moça fingiu ter chegado da viagem e esta disse ao caboclo que se escondesse debaixo da cama. O moço entrou e deitou-se, alegando que vinha muito cansado.

De espaço a espaço ele ouvia como que uma espécie de grunhido sair debaixo da cama. Passado um bom pedaço e o rapaz ouvindo sempre a mesma coisa, perguntou:

“Quem está aí?”

Responde-lhe o caboclo: “Sou eu, cachorro.”

Diz o moço: “Oh, e cachorro fala?”

Replica-lhe o caboclo: “Falo eu.”

Aí o moço levantou-se e com uma luz na mão olhou para debaixo da cama e viu o caboclo no meio dos cansanções, inchado como uma pipa e todo se coçando. O moço chamou os criados que já estavam preparados e ordenou: “Empurrem-lhe o chicote”.

O caboclo depois de ter levado uma tunda, saiu que mal acertava o caminho de casa. Levou muito tempo se tratando da grande surra que levou.

Depois de muito tempo e quando já estava bom, passou de novo o caboclo pela porta da moça, mas muito desconfiado e de cabeça baixa.

Esta para bulir com ele disse-lhe: “Adeus, meu cravo.”

Ele virou-se para ela e respondeu muito zangado: “Adeus, seu diabo!”
= = = = = = = = = = = = =
* Cansanção = planta comum no Nordeste, cuja principal característica é o fato de provocarem, assim como a urtiga, a sensação de queimadura ao toque com a pele. Ao contrário da urtiga, porém, seu efeito urticante e vesiculante (causador de bolhas) é maior e mais agudo, bastando para tanto o simples contato com seus pelos, ao pé dos quais há uma cápsula com o líquido agressivo.

Fonte:
Sílvio Romero. Contos populares do Brasil. Coleção Acervo Brasileiro vol. 3.  Jundiaí/SP: Cadernos do Mundo Inteiro, 2018. Publicado originalmente em 1954.
Livro enviado por Sammis Reachers.

Laurindo Rabelo (Estragos de Amor) Parte primeira

I
Miseráveis insensatos,
Escravos da formosura,
Curvados a seu aceno,
Buscais vida no veneno
Que vos leva à sepultura!

II
Nos seus braços reclinados,
Beijando em ternos carinhos
Divinas faces mimosas,
Livrais o néctar das rosas
Sem reparar nos espinhos!

III

“Oh! loucos, vede a verdade,
“Conhecei essa ilusão,
“Por que viveis seduzidos?”
Embalde contra os sentidos
Aflita brada a razão!...

IV
Nada alcança: tudo cede
Ao amoroso desmaio: —
Lumiando o par gentil,
Brilha amor como um fuzil,
Mas ao fuzil segue o raio.

V
Lá do monte da esperança
Cresta o fogo as verdes fraldas;
E de quanto possuía
Só conserva a fantasia
Secas, dispersas grinaldas.

VI
Suspeitas, tiranias serpes*,
Nos peitos cravando os dentes,
Com seu sangue se alimentam;
Das chagas chamas rebentam,
Das chamas novas serpentes.

VII
Em furor e desespero
Começa o triste a chorar,
Vendo a estrada que seguiu;
Morde o laço em que caiu,
Mas não pode-o desatar!...

VIII
A razão, para vingar-se,
Mais aumenta o seu flagício*,
Com semblante inexorável,
Muda, surda, imperturbável,
Assistindo ao sacrifício.

IX
Tudo é dor, tudo agonia,
E queixumes contra o fado;
Suspiros e pranto ardente,
Desespero no presente,
Saudades pelo passado!...

X
‘Té que vai desabrochando,
Pelo pranto d’aflição
Regada continuamente,
Do desengano a semente
Nas cinzas do coração.

XI
Ergue a planta a fronte altiva,
Mas de tristonha aparência;
Folhas, tronco, é toda luto;
Tem mirrado raro fruto;
Esse fruto — é a experiência.
= = = = = = = = = = = = = 
* Flagício - aflição, tortura.
* Serpes = muito velhas e muito feias.
 
continua... parte final

Fonte:
Laurindo Rabelo. Poesias completas. Ministério Da Cultura. Fundação Biblioteca Nacional

sábado, 19 de março de 2022

Carina Bratt (Como me esquecer de você e desse dia?!)


HOJE, 19 DE MARÇO, quero dedicar meu texto em caráter ‘excepcional’, ao senhor APARECIDO RAIMUNDO DE SOUZA, meu patrão (ou simplesmente APA), como carinhosamente o chamo, desde que passei a ser a sua ‘Secretária Particular’. Me sinto honrada.

Estou com esse ‘Velho Moço’ há muito tempo, desde quando não passava de uma menininha simples, ingênua e inexperiente, nada sabendo da vida adulta. Meu pai (que já não está mais entre nós), atendendo aos meus apelos, me permitiu viajar mundo afora em sua companhia, embora mamãe achasse tal ideia uma tremenda loucura.

Todavia, entre tapas e beliscões, e, claro, depois de muita relutância, ambos cederam aos meus anseios e assinaram as Autorizações para que eu saísse da gaiola, batesse asas e fosse atrás do meu sonho.

E eu fui, sem pensar duas vezes, sem ao menos saber como seria a nossa convivência no dia a dia de duas criaturas que até então pouco se conheciam e nada sabiam, um do outro.

Aqui estou, viva, realizada. Por assim, nesse dia que é dedicado à São José, o Apa completa 69 anos (19.03.1953). Um amigo para todas as horas, bom pai (depois do falecimento do meu, praticamente me adotou) ajudando na vida pessoal e, igualmente, nos estudos até o término da faculdade.

Se nesse momento em que redijo essa simples dedicatória, se sou o que sou, agradeço a ele, ao Apa, que me fez ser uma pessoa honesta, trabalhadora, com uma visão beatificante voltada para um futuro promissor.

Apa, meu lindo, que Deus o proteja e guarde, concedendo à você uma estrada longa e tranquila; uma vida do mesmo modo benfazeja e repleta de muito Amor e Felicidade. Você é o cara, além de meu herói preferido.

Que as Graças do Onipotente continuem a me dar em abundância, Força, Fé, Coragem, Discernimento e Saúde, para estar sempre a seu lado. Saiba que o meu amor é único e incondicional.

Meu coração está dentro de você, guardado, eu sei, num lugarzinho secreto, batendo no mesmo ritmo e o melhor de tudo: fazendo de nós dois, uma só pessoa, uma só alma em festa constante. PARABÉNS, MUITOS E INFINDOS ANOS DE VIDA.

Carina Bratt (Ca)
de Vila Velha, no Espírito Santo.
 
Fonte:
Texto enviado pela autora 

Silmar Böhrer (Croniquinha) – 49


Os versos acharam interessante como esta forma de escrita - a crônica - entrou em nossa vida. Na verdade, ela sempre andou junto a nós, versejares, embora pouco lembrada. Jamais desprezada.

As delícias da vida devem ser sempre cultivadas. O mel dos dias está em todo lugar. E nós, na condição de abelhas, devemos ensalivar o melífluo da existência, repassando doçuras em doses homeopáticas.

Os pensares, os versos, os viveres, as crônicas, são unidades que entremeiam constantemente. E deslindam, e cantam, e semeiam vozes perenes que Gaia oferece nas incendiárias manhãzinhas, nas tardes ventaneiras, nas silentes madrugadas.

Vozes vívidas vivenciando viveres.

Fonte:
Texto enviado pelo autor

Estante de Livros (“Fernão Capelo Gaivota”, de Richard Bach)


Fernão Capelo Gaivota é um romance de Richard Bach, publicado em 1970. Publicado originalmente nos Estados Unidos com o título de "Jonathan Livingston Seagull — a story", foi lançado neste mesmo ano no Brasil como "A História de Fernão Capelo Gaivota".

Uma gaivota de nome Fernão decide que voar não deve ser apenas uma forma para a ave se movimentar. A história desenrola-se sobre o fascínio de Fernão pelas acrobacias que pode modificar e em como isso transtorna o grupo de gaivotas do seu clã. É uma história sobre liberdade, aprendizagem e amor .

A primeira parte do livro mostra o jovem Fernão Capelo Gaivota frustrado com o materialismo e o significado da conformidade e da limitação da vida de uma gaivota. Ele é confrontado com paixão pelos voos de todos os tipos, e a sua alma descola com as suas experiências e emocionantes triunfos de ousadia e feitos aéreos. Eventualmente, a sua falta de conformismo à limitada vida de gaivota leva-o a entrar em conflito com o seu bando e virarem-se contra ele. Ele torna-se um banido. Não obstante disso, Fernão continua os seus esforços para atingir objetivo e voos mais altos, muitas vezes bem sucedidos, mas eventualmente sem o conseguir tanto quanto desejaria. Em seguida ele é encontrado por duas radiantes gaivotas que lhe explicam que ele já aprendeu muito e agora elas estão lá para ensinar-lhe mais. Ele então passa a segui-las.

Na segunda parte, Fernão transcende a uma outra sociedade onde todas as gaivotas desfrutam da paixão pelo voo. Ele só é capaz de praticar essa habilidade após duras horas de muito treino de voo. Nesta outra sociedade, o respeito real surge em contradição com a força coercitiva que estava mantendo o antigo bando junto. O processo de aprendizagem, que liga os professores altamente experientes aos alunos dedicados, é aumentado a quase um nível sagrado, sugerindo que esta pode ser a verdadeira relação entre homem e Deus. O autor considera que certamente humano e Deus, independentemente de todas as enormes diferenças, estão compartilhando algo de grande importância que podem vincula-los juntos: "Você tem de compreender que uma gaivota é uma ilimitada ideia de liberdade, uma imagem da Grande Gaivota ". Ela sabe que você tem que ser fiel a si mesmo.

A introdução à terceira parte do livro é composta pelas últimas palavras do professor de Fernão: "Fernão, continua a trabalhar no amor". Nesta parte Fernão entende que o espírito não pode ser verdadeiramente livre sem a capacidade de perdoar e o caminho do progresso passa pela capacidade de tornar-se um professor - e não somente pelo trabalho árduo como um aluno. Fernão volta para o antigo bando para compartilhar suas ideias, suas descobertas recentes e sua grande experiência. Pronto para a difícil luta contra as atuais normas da referida sociedade, a capacidade de perdoar parece ser uma obrigatoriedade para a condição de passagem.

"Vocês querem voar tão alto a ponto de perdoar o bando, aprender e voltar a eles um dia e trabalhar para ajudá-los a se conhecerem?"

Fernão pergunta ao seu primeiro estudante antes de iniciar o aprendizado. A ideia de que os mais fortes podem atingir mais por deixar para trás os mais fracos amigos parece totalmente rejeitada. Daí o amor e o perdão merecem respeito e parecem ser igualmente importantes para libertar-se da pressão de obedecer às regras apenas porque são comumente aceitas.

Nos anos 70, o selo Continental, produzido pela Transbrasil lançou um LP com a gravação da adaptação do livro, narrado pelo consagrado radialista Moacyr Ramos Calhelha com a participação de Hebe Camargo que cantou a música "Pai Nosso", e participações de Wilson Miranda que cantou as músicas "No Infinito Azul", "O Voo Solitário" e "Ave".

Fonte:
Wikipedia

sexta-feira, 18 de março de 2022

Adega de Versos 74: Gislaine Canales

 

Carlos Leite Ribeiro (A Raiz do Dente)

"Não há mal que sempre dure "- diz o povo e com razão!

Eram 16:15 horas quando do consultório dentário me telefonaram a dizer que era o próximo cliente...

Quando entrei no consultório, vi que não era a dentista que eu pensava que fosse. Perguntei pela dentista "brasileira" e a simpática dentista que me atendeu, disse-me que  já não trabalhava lá, pois tinha ido para o Algarve. Perguntou-me se eu tinha preferência por "brasileiras dentistas" o que logo respondi:

- Adoro brasileiras!

Sorriu ao responder-me:

- Pois, desta vez terá de se contentar com uma dentista portuguesa!

- Claro que eu como grande patriota adoro as mulheres portuguesas! Nadinha de confusões, porque as portuguesas são as mais "belas" do mundo! - retorqui-lhe eu. Abriu ainda mais o sorriso:

- Pois, pois, estou a ver. Pode sentar-se na cadeira.

Sentou-me e a sua ajudante (muito jovem) perguntou-me se a posição estava cômoda, se eu queria ficar com a cabeça mais baixa, pondo-me depois um babete (babador). Para meter conversa, perguntei à dentista qual o seu nome, ao que ela me respondeu:

- Dulce Maria. - enquanto preparava a ferramenta.

Também quis saber se existia alguma santa Dulce. Mas ela não sabia, melhor, só sabia que tinha "mãos de fada" para tratar de dentes. - Deus a ouça - pensei logo eu. Disse-me que me conhecia há muito tempo, pois o meu filho mais novo (o João) tinha sido colega de liceu da irmã mais nova. Aproveitei a deixa para logo a avisar:

- Se a Dra. me fizer doer, faço queixa ao meu filho João!

Aproximou-se de mim com uma ferramenta de cabo fino tendo na ponta uma espécie de espelho redondo.

- Abra a boca, por favor...

Tão enervado estava que até disse alto:

- Abrir a boca?!

Ela atirou uma gargalhada, dizendo:

- Se não abrir a boca, vai ser muito difícil para mim examiná-lo!

Já com a boca aberta, começou a bater na raiz com o tal espelho. Pensei logo: - Esta será mesmo dentista ou será tocadora de tarimba?

Quando terminou o exame, mandou-me bochechar com um líquido e deitar fora. Seguidamente, pegou numa seringa metálica, e eu pedi-lhe que tivesse calma, pois sofria do coração.

- "Você é cardíaco?" - perguntou ela.  

- Não Sra. Dra., mas apaixono-me com muita facilidade!  

A resposta chegou pronta:

- Pois, pois. Já tinha notado!

Pôs-me um spray e disse-me:

- Não vai doer mesmo nada... só vai sentir as picadinhas...

Mas atrás das picadinhas, começaram umas picadonas que me magoaram. Mas aquela "mamífera" sabia que me estava a magoar e continuava. Meu queixo ficou insensível!

Foi buscar outra ferramenta, tipo chave parafusos dizendo que ia "descarnar" a raiz. Comecei a sentir o sabor do sangue e pensei:

- Seria incapaz de ser vampiro, pois não gosto do sabor do sangue.

Colocou-me um tubinho para tirar a saliva e o sangue e, uns pedacinhos de algodão (que sensação horrível, pois parecia que tinha comido algum dióspiro [caqui] ainda não maduro).

- Está a ver que não dói mesmo nada?

Com aquele tubinho na boca, mais o algodão e o queixo dormente, não lhe pude responder, mas pensei:

- "Oh, sua "mamífera", a você é que não está a doer, mas a mim, está!"

Foi ao tabuleiro buscar um alicate, que quando o vi, senti um arrepio em todo o corpo...

- Não lhe vai doer nada... só vai sentir muita força... muita força...

E eu sentia a força e também a dor! E nunca mais parava de puxar. Pensei que talvez a raiz estivesse presa nalgum dos meus pés.

- Tenha calma que já está... já está...

Mas ainda foi lá torcendo com o alicate mais um bocadinho. Por fim, como quem mostra um troféu ganho com grande esforço, mostrou-me o enorme pedaço de dente (retangular) que esteve debaixo da placa mais de nove anos!

- Bocheche, não com muita força e deite fora.

Deu-me (?) quatro enormes drágeas para tomar de 8 em 8 horas e marcou para voltar no dia seguinte junto à noite, para ver como estava a boca. Acompanhou-me à porta, pondo-me à vontade no que diz respeito ao pagamento.  

– Muito obrigado, mas não, eu quero pagar já. Quanto lhe devo?

- O tratamento e extração são 50 euros!"

Quase que tive um desmaio: 50 €... Paguei sem reclamar, mas pensando:

- “Isto foi muito caro! E a "mamífera" que diz que tem "mãos de fada... Deve ser uma "fada" com a carteira muito funda”!

E aqui estou eu com o queixo parcialmente insensível. Já me estava a esquecer: Tenho que ir tomar uma drágea daquelas que ela me deu (?)...

Fonte:

Hinos do Brasil (Rio de Janeiro e Espírito Santo)

RIO DE JANEIRO

Hino 15 de Novembro
Letra por Antônio José Soares de Souza Júnior
Melodia por João Elias da Cunha
O Hino do Estado do Rio de Janeiro, intitulado Hino 15 de Novembro, foi composto em 1889 pelo maestro da banda da Força Militar do Estado do Rio de Janeiro (atual Polícia Militar) João Elias da Cunha (1850-1918) e oferecido ao primeiro Governador após da proclamação da República, Dr. Francisco Portela, por ele. A letra do hino é do poeta fluminense Antônio José Soares de Souza Júnior. Foi instituído como hino oficial em 29 de dezembro do mesmo ano


Fluminenses, avante! Marchemos!
Às conquistas da paz, povo nobre!
Somos livres, alegres brademos,
Que uma livre bandeira nos cobre.
Fluminenses, eia! Alerta!
Ódio eterno à escravidão!
Que na Pátria enfim liberta
Brilha à luz da redenção!
Nesta Pátria, do amor áureo templo,
Cantam hinos a Deus nossas almas;
Veja o mundo surpreso este exemplo,
De vitória, entre flores e palmas.
Fluminenses, eia! Alerta!...

Nunca mais, nunca mais nesta terra
Virão cetros mostrar falsos brilhos;
Neste solo que encantos encerra,
Livre Pátria terão nossos filhos.
Fluminenses, eia! Alerta!...
Ao cantar delirante dos hinos
Essa noite, dos tronos nascida,
Deste sol, aos clarões diamantinos,
Fugirá, sempre, sempre vencida.
Fluminenses, eia! Alerta!...
Nossos peitos serão baluartes
Em defesa da Pátria gigante;
Seja o lema do nosso estandarte:
Paz e amor! Fluminenses, avante!
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

ESPÍRITO SANTO

Letra por Peçanha Póvoa
Melodia por Artur Napoleão

Hino oficializado em 24 de julho de 1947.


Surge ao longe a estrela prometida,
Que a luz sobre nós quer espalhar;
Quando ela ocultar-se no horizonte,
Há de o sol nossos feitos lumiar.

Nossos braços são fracos, que importa?
Temos fé, temos crença a fartar;
Supre a falta de idade e de força,
Peitos nobres, valentes, sem par.

Salve o povo espírito-santense!
Herdeiro de um passado glorioso,
Somos nós a falange do presente,
Em busca de um futuro esperançoso.

Saudemos nossos pais e mestres,
A Pátria, que estremece de alegria,
Na hora em que seus filhos, reunidos,
Dão exemplos de amor e de harmonia.

Venham louros, coroas, venham flores,
Ornar os troféus da mocidade;
Se as glórias do presente forem poucas;
Acenai para nós posteridade!

Salve o povo espírito-santense!
Herdeiro de um passado glorioso,
Somos nós a falange do presente,
Em busca de um futuro esperançoso.

Hans Christian Andersen (A Borboleta)


Era uma vez uma borboleta macho que buscava uma noiva. Como vocês podem imaginar, ele queria a mais bonita das flores. Com olhos clínicos, ele analisou todos os canteiros e percebeu que as flores estavam sentadas bem quietas e comportadas em seus caules, como as mocinhas devem se sentar. Mas eram muitas, e ele percebeu que chegar a uma decisão seria uma tarefa muito demorada. A borboleta não gostava de coisas trabalhosas, então partiu dali para visitar as margaridas.

Os franceses chamam a margarida de Marguerite e dizem que ela é capaz de fazer adivinhações. Os enamorados puxam as pétalas e, a cada puxada, fazem uma pergunta: “Ela ou ele me ama? Muito? Só um pouco? Profundamente? Nem um tiquinho?” e assim por diante. Cada um faz as perguntas no próprio idioma.

A borboleta também foi até a Marguerite para fazer uma pergunta, mas não arrancou nenhuma pétala; em lugar disso, deu um beijo em cada uma, pois acreditava que se consegue muito mais com gentileza.

– Querida senhorita Marguerite, você é a mulher mais sábia de todas. Por favor, diga qual das flores devo escolher como esposa. Qual deve ser minha noiva? Quando eu souber, voarei direto até ela e farei o pedido.

Mas a Marguerite não respondeu. Ela havia se ofendido por ele chamá-la de mulher quando ela era só uma menina, e a diferença é grande. Ele perguntou pela segunda vez e depois uma terceira, mas ela permaneceu muda, sem oferecer nenhuma resposta. Então ele decidiu que não iria esperar mais, e saiu voando para começar de uma vez a fazer seus cortejos. Era o começo da primavera, quando as flores de açafrão e de galanto estavam no auge da florescência.

“São encantadoras”, a borboleta pensou, “mas um pouco rígidas e formais demais”.

Então, como rapazes jovens costumam fazer, ele foi procurar meninas mais velhas. Voou para as anêmonas, mas as achou muito amargas para seu gosto. A violeta era exageradamente sentimental; as flores de lima eram muito pequenas e, além disso, a família delas era imensa. A flor da macieira, embora parecesse uma rosa, podia desabrochar em um dia e cair no outro, com o primeiro vento que soprasse, e a borboleta achou que um casamento assim poderia durar muito pouco. A flor da pera era a que mais o agradava; era branca e vermelha, delicada e esguia, e pertencia àquele grupo de senhoritas que, além de serem bonitas, podem ser aproveitadas na cozinha. Estava prestes a fazer a proposta quando, perto dela, ele viu uma vagem com uma flor murcha dependurada.

– Quem é ela?

– É a minha irmã – a flor de pera respondeu.

– Ah, sério? Então, um dia você vai ficar como ela – a borboleta macho exclamou e fugiu voando, chocado.

Uma madressilva totalmente desabrochada pendia de uma cerca viva. Ah, mas havia tantas garotas como aquela, com rostos compridos e pálidos! Não, ele não gostava dela. Mas de qual ele gostava?

A primavera passou e o verão se aproximava do fim. Veio o outono, e a borboleta ainda não tinha feito sua escolha. As flores se exibiam agora em seus mais lindos trajes, mas era tudo em vão; elas não mais possuíam o ar fresco e perfumado da juventude. O coração pede perfume mesmo quando já não é jovem, e há bem pouco perfume a ser encontrado nas dálias e nos crisântemos secos. Assim, a borboleta se voltou para o canto onde estava plantada a menta. Esta planta, como vocês sabem, não tem flores, mas é toda doçura: exala fragrância da cabeça aos pés, com perfume floral em cada folhinha.

– Vou ficar com ela – a borboleta disse, e logo fez o pedido.

Mas a menta permaneceu muda e rígida enquanto o escutava, até que por fim respondeu:

– Posso lhe oferecer amizade se você quiser, nada mais que isso. Eu sou velha e você é velho, mas podemos nos dedicar um ao outro mesmo assim. Quanto a casar, contudo, não! Seria ridículo na nossa idade.

E foi assim que a borboleta macho acabou sem esposa nenhuma. Passou tempo demais escolhendo, o que é sempre uma má ideia, e se tornou o que chamamos de solteirão.

O outono chegava ao fim, e o tempo estava nublado e chuvoso. O vento soprava nas costas encurvadas dos salgueiros, curvando-os ainda mais. Não era o clima ideal para se voar por aí em roupas de verão, mas a borboleta não estava ao ar livre. Por uma feliz coincidência, ele tinha conseguido um abrigo. Era uma sala aquecida por um forno, quentinha  como um dia de verão. Ele poderia viver ali muito bem.

– Mas simplesmente existir não basta. – ele concluiu. – Preciso de liberdade, dos raios de sol e de uma florzinha como companheira.

Ele então saiu voando, mas se chocou contra o vidro da janela, onde foi notado pelas pessoas que estavam na sala. Elas o capturaram e guardaram em uma caixa de curiosidades. Não poderiam ter feito nada melhor por ele.

– Agora estou espetado como uma flor. – ele disse. – Certamente não é muito agradável. Estou amarrado aqui, imagino que seja parecido com ser casado.

E com esse pensamento ele se consolou um pouco.

– Parece um consolo bem fraco. – disse uma das plantas da sala, que vivia em um vaso.

“Ah”, pensou a borboleta, “não se pode confiar muito nessas plantas que vivem em vaso, elas tiveram contato demais com os seres humanos”.

Fonte:
Hans Christian Andersen. Publicado originalmente em 1860.

Julia Martins e Grant Faulkner (Como Escrever uma História de Fantasia Convincente) Parte 3: Definindo os personagens


1. Crie criaturas não humanas para dar mais variedade ao enredo.

Essa variação dá um tom ainda mais fantástico à história — e a parte da criação em si é bastante divertida. Use criaturas míticas tradicionais, como elfos, fadas, ogros e vampiros, ou pense em algo completamente novo.

Se você usar criaturas míticas tradicionais, como vampiros ou sereias, descreva como eles são na sua história. Por exemplo: em Crepúsculo, os vampiros podem optar por não tomar sangue humano e brilham na luz do sol; em Buffy, por sua vez, a maioria deles não consegue controlar as tendências para o mal e morre quando é exposta à luz do dia.

Esse passo não é obrigatório em toda história fantástica. Pense bem no que faz sentido para você e o seu enredo. Você não precisa seguir à risca as convenções que já existem, afirma a escritora Julia Martins. "Os seus ogros são inteligentes? As fadas são criaturas perversas? O sol não afeta os seus vampiros?"

2. Pense nas motivações dos personagens.

Os personagens precisam de motivações próprias e pessoais para que o enredo tenha conflitos e resoluções: objetivos, influências de outras pessoas ou valores internos, por exemplo. O importante é dar pontos fortes e fracos que tornem essas pessoas (ou criaturas) tridimensionais.

Por exemplo: imagine que houve um tsunami no seu mundo fantástico e que o protagonista está em busca da família.

Pense no que o personagem quer. Por exemplo: talvez a protagonista Ramona tenha sido abandonada pela mãe e, agora, quer fazer parte de uma família. Por isso, ela acaba sendo apegada demais aos amigos — um defeito, mas que nesse caso é compreensível.

3. Conquiste os leitores com um herói que tenha uma motivação pura.

Toda história de fantasia tem um herói. Dê a ele traços únicos, bem como a determinação necessária para avançar o enredo. Coloque-o para lutar contra o antagonista e, assim, resolver o conflito central.

Geralmente, o herói não percebe que é especial logo de cara. Luke Skywalker não sabia que podia usar a força até conhecer Obi-Wan Kenobi; Harry Potter não sabia que era bruxo até conhecer Hagrid etc.

Use um personagem "comum" como herói. Os leitores vão se identificar mais com alguém que tenha uma vida relativamente normal (pelo menos no início).

Dê sinais de que o herói vai ser importante. Para isso, você pode contar a história da perspectiva dele.

4. Inclua um mentor para dar mais profundidade à história.

Muitas histórias fantásticas incluem a figura do mentor: ObiWan Kenobi em Star Wars, Hagrid e Dumbledore em Harry Potter e assim por diante. Use-o para orientar o progresso do herói.

No geral, o mentor é um personagem mais velho que o herói e está familiarizado com as regras e convenções da sociedade, além de saber desde o início que o herói é especial e importante.

Usar a figura do mentor é uma ótima forma de explicar as convenções do mundo de maneira que não pareça forçada. Pense só: não seria estranho se, em Star Wars, Luke explicasse como a força funciona diretamente para os telespectadores? O fato de que ObiWan fala do assunto deixa todo o roteiro mais crível.

5. Inclua um vilão memorável para tornar a história cativante.

O vilão é um dos principais elementos de toda história fantástica, já que funciona como um contraponto ao herói. Dê motivações claras ao personagem para torná-lo realista.

Por exemplo: em O Rei Leão, Scar quer governar o Reino e se sente menos importante que o irmão, Mufasa. Essa fome de poder guia todas as atitudes que ele toma ao longo do enredo.

Os leitores vão simpatizar mais com o vilão se entenderem a motivação dele. Por exemplo: pense em uma história trágica que explique por que ele se voltou para o lado do mal.
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continua... Parte 4: Escrevendo a história

Fonte:
Wikihow

quinta-feira, 17 de março de 2022

Aparecido Raimundo de Souza (Parte 50) Serviço completo


O TELEFONE TOCA insistentemente e Carlos acorre atender:

— Bom dia, Carlos Mangueira falando!

— Oi, Seu Mangueira, digo, seu Carlos, tudo bem? Desculpe estar ligando a essa hora.

— Tudo bem. Quem é?

— Nossa! Já esqueceu?

— Desculpe. Tanta gente...

— O senhor ficou de passar aqui em casa...

— Na sua casa?

— Sim.

— Meu Deus. Quem está falando?

— Silvia.

— Silvia?

— Isso. O senhor tratou comigo de vir antes de ontem.

— Minha nossa. Estou ficando meio perdido.

— Meio?

— Eu diria inteiramente...

Risos.

— Tudo bem, diga lá dona Silvia, o que eu tratei exatamente com a sua pessoa?

— Não se recorda?

— Sinceramente? Não! E creia, estou sendo honesto.

— O senhor deve ser muito bom naquilo que faz.

— Modéstia à parte, sou mesmo...

— Por isso o belo sexo não lhe dá sossego?

— É uma pergunta? — Por certo. (Mais risos) Toda hora o telefone me faz voltar à realidade...

— Imagino. Por causa dessa sua popularidade acabei ficando na mão...

— Desculpe. Diga exatamente o que foi que marcamos?

— O senhor ficou de vir aqui em casa tapar um buraquinho.

— Um... um o quê? Buraquinho?!

— É. E não veio.

— Que descuido o meu. Me perdoa. Não foi por querer.

— Perdoado. Como lhe falei, esse buraquinho aberto está me tirando o sono. E pinga. Pinga desesperadamente. Não consigo dormir, não me concentro, sem contar que meu esposo, assim que se deita, pega no sono e ronca destrambelhadamente. Agora venho tendo graves seções de pesadelos...

— Ah, me lembrei! Espera ai: a senhora não disse que seu marido...? Pelo nosso papo, entendi que ele tomaria a frente da questão e acabaria com a sua dor de cabeça...

— Eu sei o que eu disse seu Carlos Mangueira. Todavia, meu ilustre companheiro não se incomoda. Não está nem ai para a coisa. Conclusão: o desgraçado do buraquinho continua desguarnecido... e vazando. Ao acordar, de manhã, o meu colchão... deixa claramente evidenciado o tamanho do desarranjo... sinceramente, seu Carlos? Vou acabar tendo um piripaque repentino. É muita coisa para se encaixar de uma vez só na minha mente conturbada.

— Que coisa!

— Não sei se o senhor sabe, mas uma mulher em meio a esse martírio noturno com um buraquinho porejando e precisando ser tapado, obstruído, entupido, sei lá, a coisa pega...

— Entendo. Desculpe mais uma vez ter lhe deixado a ver navios. Repete seu endereço, por gentileza.

— De novo? Já é a segunda vez que lhe passo.

— Não voltará a acontecer. Sairei agora, assim que desligar e cuidar desse buraquinho com o carinho que a senhora merece.

— Vou me beliscar. Ai, esse doeu! Virá mesmo, com certeza, cuidar do infeliz?

— Sem mais demora. E o material?

— O senhor ficou de trazer. Que euzinha não me preocupasse.

— Ok. Se eu disse. Manda por favor, seu endereço.

— Conjunto dos Prazeres, rua dos Aconchegos, número 89.

— Ummmmmm!... agora, dona Silvia, caiu a ficha. Lembrei. O buraquinho fica nos aposentos!

— Sim senhor...

— Sob a sua cama?

— Não, em cima dela.

— Em cima?

— Exatamente. Por isso a minha agonia. O treco me irrita. Veja o senhor. Assim que me recolho, garro a subir pelas paredes. Me assemelho a uma bêbada galopando uma mula. Imagine a cena...

— Bem hilária. Pois bem, dona Silvia. Estou indo.

— Agora?

— Só o tempo de pegar o material.

— O senhor me disse que possui uma maleta com toda a parafernália engatilhada?

— O homem esperto carece andar prevenido. Tenho sim. É só passar a mão...

— Posso esperar então?

—Tranquila. Se não for pedir muito...

— Diga?

— Um cafezinho depois do batente pegaria de bom tamanho.

— De pleno acordo, seu Mangueira. Porei a chaleira no fogo.

— Para seu governo, me pego saindo agora. Hoje cuido desse buraquinho, ou deixo de me chamar Carlos Mangueira.

— Leva quanto tempo?

— Para vedar o buraquinho?

— Não, para o senhor chegar aqui.

— Coisa de meia hora.

— Preciso fazer alguma coisa?

— Deixar a área limpa.

— Quanto a isso, limpíssima, desde que marcamos pela primeira vez...

— Perfeito, dona Silvia. Estou enroscado na sua proa. Pode dizer adeus ao buraquinho. Hoje eu entupo seu desconforto de massa e ponho fim à sua angústia.

Faz uma breve parada para se livrar de uma tosse repentina:

— Perdão. Como ia dizendo, usarei munição total dentro dessa fortaleza. Tenho certeza que a senhora gostará do meu serviço...

— O senhor também pinta?

— Sim.

— Meu marido — sabe-se lá por qual cargas d'água, justo hoje levou o pincel para o trabalho.

— Não se preocupe dona Silvia. Se precisar usar tinta para a caiação, eu tenho pincel preparado. E tinta também é o que não falta. Para onde vou executar algum procedimento, jamais deixo de de levar aquilo que preciso juntamente com os demais apetrechos necessários, tudo na caixa de ferramentas. Até daqui a pouco.

— Até.

O problema do tal buraquinho não ia além de uma minúscula e quase imperceptível rachadura no estuque do quarto, sob a cama do casal. Originava da boia da caixa d’água velha e desregulada. Sempre que esse reservatório ultrapassava o limite (notadamente a noite, pelo volume dispendido em torneiras e chuveiro) o mecanismo, não vedando o nível de resguardo, esborrava e descia pelo forro, pingoteando.

Fonte:
Texto enviado pelo autor

Daniel Maurício (Poética) 25

 

Dorothy Jansson Moretti (Antes Tarde)

Na infância tive algumas aspirações extravagantes que nunca foram realizadas. Hoje, quando me lembro delas, rio-me; mas naquele tempo eram para mim motivo de certa tristeza e frustração.

Para começar, meu nome não era absolutamente o que eu teria escolhido para mim. Meu grande desejo era chamar-me Adelina. Contribuía grandemente para isso o fato de eu ser admiradora fanática da "Adelina da Pernambucanas", como nós a chamávamos. Era irmã de Seu Nequinha e uma das moças mais elegantes que já conheci. Vestia-se rigorosamente na moda, e eu achava-a maravilhosa. Quando ela vinha ao ateliê para uma fotografia, eu ficava por ali, rodeando-a e admirando-a de perto.

Anos mais tarde, quando já adulta, tive o prazer de desfrutar de sua amizade e até ser sua professora de inglês. Foi uma das pessoas mais meigas e bondosas que tive o privilégio de conhecer. Nos meus guardados conservo um cartão postal de aniversário em que aparece uma linda menina em traje de festa, com um buquê de flores na mão. Eu achava que a menina era eu, e escrevi embaixo o meu querido nome de mentirinha: Adelina de Almeida. (Almeida era também o sobrenome de minha preferência.)

A minha irmã Linéa também não estava contente com o próprio nome, e vivia insistindo com mamãe para que o mudasse para Terezinha de Jesus…

Os rituais católicos nos fascinavam. As procissões com as belas imagens em andores enfeitados, as meninas vestidas de branco, com a tradicional faixa cor-de-rosa e o véu na cabeça... como eu as invejava! E os anjos, então! Que maravilha me parecia poder sair de anjo na procissão!

Esse desejo mais ou menos satisfazíamos em casa, brincando de religião. Célia, Odette e Norma nos ensinavam as rezas, e não raro fazíamos nossas procissões no quintal. Como não dispúnhamos de filó para o véu, servia uma camiseta velha de papai, de malha furadinha (que naquelas alturas estava mesmo era furadona). Linéa recortava as partes aproveitáveis e debruava artisticamente as pontas com linha torçal vermelha. Ficava um estouro! Que emoção colocar na cabeça um véu tão requintado e sair pelo quintal afora, cantando "Ave, ave, ave Maria"...

Agora, a capela é que era realmente original. Naquele tempo, apesar das casas possuírem banheiro completo dentro, todo mundo tinha, para eventuais emergências, uma instalação sanitária um tanto primitiva no fundo do quintal. Davam-lhe nomes diversos: escritório, telégrafo, gabinete, casinha... Pois era esse exatamente o recinto que nos servia de capela. Cravos-de—estudante, esporinhas, cravos-de-defunto e outras flores que tínhamos em profusão pelo quintal (além das mandiocas, milhos e hortaliças de mamãe), enfeitavam aquele exótico e profaníssimo altar.

Lá pelas tantas, Linéa, a mais velha e chefona da turminha, verdadeiro manda-chuva, já enjoada de brincar de católica, dava a palavra de ordem:

"Agora vamos brincar da minha religião!"

E a capela virava Escola Dominical, com professoras e alunas estudando catecismo e cantando os tradicionais hinos infantis protestantes: "Brilhando qual doce luz", "Deus dá às criancinhas", "Deitado em mangedoura"...

Na casa da Odette o gabinete também tinha uma função nobre: era a "diretoria de uma escola", cuja "diretora" era eu. Enfurnava-me lá dentro em meio a um montão de velhos livros de escrita da farmácia que Seu Victorino ali depositava. A Odette era "professora", e de vez em quando vinha perguntar-me alguma coisa sobre "problemas de classe". Eu, muito compenetrada, consultava os velhos livros para poder dar-lhe uma resposta adequada e criteriosa. (Na vida real nunca cheguei a ser diretora de escola: mas de ser professora confesso que já ando um tanto cheia...)

Houve, contudo, um desejo que de certo modo consegui realizar. Na escola, uma das coisas que eu achava mais interessante era quando aparecia um menino ou menina com o braço na tipóia, Ai que vontade que me dava de também quebrar o braço para botá-lo na tipóia! Apesar de todas as minhas molecagens e macaquices pelo alto das árvores, isso nunca me aconteceu.

Agora, porém, poucos anos atrás, em visita à Dona Rosinha de Dr. Oscar, na calçada da casa dela, enfiei o pé num buraco e torci-o para a frente. Em plena Lins de Vasconcelos e com todo o barulhão daquele trânsito infernal, ouvi o tremendo "crrroc" do osso se partindo. Foi uma dor horrorosa e o pé imediatamente ficou um "pão" de tão inchado. Não pude ficar nem cinco minutos na visita, e Dona Rosinha e uma neta, amparando-me de cada lado, levaram-me até o táxi para eu voltar para casa e ir a um hospital.

Fiquei dez dias com a perna engessada, sem poder levantar-me da cama, e depois de trocado o gesso, mais vinte dias andando de "saltinho". Não era exatamente o que eu queria, muito menos quando eu queria, mas... antes tarde que nunca! De alguma forma, depois de velha, eu finalmente realizava um sonho antigo, já quase esquecido, perdido entre as brumas das lembranças do meu tempo de menina,

(Tribuna de Itararé — 28/08/1986)

Fonte:
Dorothy Jansson Moretti. Instantâneos. São Paulo: Dialeto, 2012.
Livro enviado pela escritora.

Professor Garcia (Poemas do Meu Cantar) Trovas – 16 –


A chuva em seu acalanto,
não causa ofensa ao sertão!
Mata a sede e acaba o pranto
dos olhos tristes do chão!
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Ainda espero o teu regresso,
se é que ainda esperas por mim;
pedir que voltes, não peço,
mas te espero até o fim!
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Andando não sei por onde,
nas asas da soledade,
toda tarde o sol se esconde
pintando o céu de saudade!
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Ao lembrar dos tempos idos,
na vida, quanta lembrança!...
Contando os sonhos perdidos,
vi meus sonhos de criança!
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A vida, com seus desvãos,
dá-me alguns sorrisos francos,
com os netos, passando as mãos
nestes meus cabelos brancos!
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Busco a esmo, mundo afora,
rastros de um velho andarilho,
que se fez raio de aurora
no coração de seu filho!
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Cercada de lenda e encanto,
teu poço nunca secou...
Meu Caicó canta o canto
que o Seridó lhe ensinou!
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Dentre as estrelas brilhantes,
no céu, repletas de luz...
Cinco estrelas faiscantes
lembram-me o sinal da cruz!
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Eis que esse gesto de amor,
comparo às forças do além:
Que a planta que oferta a flor
perfuma as mãos de outro alguém!
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Esses teus lábios, menina,
lembram-me os lábios da flor,
na cor rubra mais divina
da embriaguez de um terno amor!
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Grita poeta, e o medo vence-o,
que a tua voz, que é teu grito,
rompe os grilhões do silêncio
e abre as portas do infinito!
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Levem-me tudo, no entanto,
não levem minha viola;
que essa voz dela é meu canto
e esse canto me consola!
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Na solidão da clausura.
reza um monge solitário,
buscando a paz, na ternura
das contas do seu rosário!
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Não quero o bem que se alcança
com fama e falsos lauréis;
mas manter viva a esperança
ó Pai, que tenho aos teus pés!
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No sacrário dos meus dias,
cópias de antigas andanças,
são marcas das alegrias,
das verdadeiras lembranças!
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Num mosteiro, entre os aflitos,
que exemplo de gratidão...
Um monge pede em seus ritos
pelos sem teto e sem pão!
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Quando a lua arranca as vendas
e sobre as ondas vagueia,
ficam mais lindas as rendas
que as ondas bordam na areia!
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Quando escuto as tuas palmas
meus sonhos, são sonhos vãos,
por sentir que há duas almas
presas, às mãos de outras mãos!
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Quando o entardecer persiste
sem querer dizer adeus...
Deixa a tarde menos triste
no ocaso dos olhos teus!
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Reguei meu jardim com calma,
à espera que ele florisse,
para perfumar minha alma,
na solidão da velhice!
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Se a saudade é um mal sem cura
e, à solidão nos conduz...
Entre a saudade e a ternura,
há sinais de treva e luz!
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Se a velhice, é um bem sem dono,
não me sinto entre os sozinhos!...
Sei que os caminhos do outono,
são sempre os mesmos caminhos!
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Se o teu olhar, não me acalma,
nem prendo mais tua voz...
Sinto que há mãos em minha alma
puxando os laços dos nós!
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Velha fonte, o vosso canto,
desvenda bem quem sois vós;
Maestrina do acalanto
do pranto que há entre nós!
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Velhice, se não te importas,
permite-me outras saídas...
Um outono sem folhas mortas,
mas só com folhas caídas!

Fonte:
Professor Garcia. Poemas do meu cantar. Natal/RN: Trairy, 2020.
Livro enviado pelo autor.

Samuel C. da Costa (São flores no asfalto)

De frente para a praia de São Miguel da Boa Vista, a poetisa olha com esplendor a vastidão oceânica como se fosse a última vez que a apreciava ou como se fosse pela primeira. De uns dois anos passados para até aquele momento, as coisas mudaram por completo na vida dela. A bem da verdade, tudo mudou de forma radical na vida das jovens artesãs das belas-letras. Um renascer depois de anos, de sobrevida, na pequena cidade interiorana e praieira. As correntes por fim se quebraram e mil pedaços, depois de há muito enferrujam. E aquela velha vida limitada, de marasmos não cabia mais nela. Um novo livro iniciado e, ainda com muitas páginas em brancos a serem preenchidas em negras linhas.

O olhar perdido de Clarisse Cristal, para a infinitude do oceano a faz ignorar o enorme estrago das ondas quebrando, com fúria titânica, na orla na praia e as aves marinhas que gorjeiam estridentemente a poucos metros acima da cabeça efervescente da jovem escritora.

— Vamos embora amor! Está passando da hora. — Antônio tinha colocado a mão no ombro esquerdo da namorada, com terno carinho, na vã esperança de trazê-la de volta para a realidade, em que ambos vivem, pois o tempo urge e ruge para o jovem casal.

— Mais um pouco amor, mais um pouquinho e já vamos embora! Pode ir, amorzinho! Eu te encontro lá em cima, não demoro. Vai ligar a moto que eu já vou indo.

O rapaz assim o fez, deixou a jovem namorada sozinha na orla da praia. A moça foi para mais próximo de onde as ondas quebram, se abaixa e pega um punhado de grãos de areia. Olha para a areia molhada, aperta bem forte e joga a areia de volta para o mar. Era hora de voltar para a realidade e enfrentar o mundo real na realidade liquefeita. Ao cruzar a areia morna da praia, naquele começo da manhã, subir o pequeno elevado e encontrar o namorado. Antônio a espera em cima da motocicleta e com os dois capacetes nas mãos esperando por ela com um sorriso nos lábios. E ela não pensou duas vezes ao ver cena e se adiantar e dar um beijo ardente no namorado para depois subir no veículo, mas Clarisse hesitou e desembarca lentamente da motocicleta importada último modelo.

— Toninho, quem vai pilotar a tua lata velha hoje vai ser eu mesmíssima da silva!

Antônio não gostava quando a namorada chamava a novíssima motocicleta dele de lata velha. Espantado, o jovem músico estranha o inusitado pedido da namorada, que aliás não se cansava das muitas surpresas que ela vinha trazendo em turbilhões para a monótona vida dele.

— Desde quando tu tens habilitação, para dirigir motos, minha querida lady Cristal?

— Desde a semana passada, tirei carteira de moto e carro, agora é oficial, tu não és mais o meu chofer pessoal, meu querido!

De fato, Antônio era o motorista oficial do jovem casal. Quando o jovem, branco e classe média alta apareceu na luz do dia com a namorada negra e pobre, foi um choque para ambas as alas da cidade. A elite, branca e teuta e para a empobrecida e negra ala, não isto já não tenha acontecido antes, não há luz do dia.

Jovens rebeldes faziam isso vez ou outra, para chocar a sociedade local, mas geralmente são breves enlaces, pequenos flertes que não sobreviviam mais poucas horas, ou um dia ou dois. Mas aquele encontro de jovens almas, livres e leves que romperam as barreiras das horas e dos dois dias, desfilavam pelas ruas da cidade como um casal, que apesar de ainda jovem, se comporta de forma madura, integrado e mais que interligado.

— Não me olhe assim, meu vampirão lindo, me dá logo a chave da lata velha e vamos correr as estradas, tenho fome de vida, temos muito o que fazer antes que o dia termine!

O jovem Toninho não teve alternativa, senão repassar a chave do veículo para a esfuziante Clarisse Cristal. Ele sai da posição de condutor da motocicleta para dar espaço para ela. Dali foram os dois a ganharem as estradas para ver as provas do livro Flores no asfalto, o mais novo Clarisse Cristal.

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

quarta-feira, 16 de março de 2022

Solange Colombara (Portfólio de Spinas) 19

 

Carlos Drummond de Andrade (Trem de Contos) Vagões 53, 54 E 55


ALMA PERDIDA


Sigefredo botou anúncio classificado, dizendo que perdera sua alma, com promessa de gratificar quem a encontrasse. Não explicou — nem podia — como a tinha perdido.

Apareceram algumas pessoas trazendo pacotes com almas, e nenhuma era a dele. Não se ajustavam a seu corpo, e mesmo que ele quisesse fazer experiência, era evidente que não combinavam com o jeito de Sigefredo. E ele era muito ocupado. Não tinha tempo a perder.

Já se resignara a viver mesmo sem alma, quando uma noite encontrou a desaparecida, à porta de um bar, com aparência de pobreza, mas tranquila.

Seu primeiro impulso foi recolhê-la, mas pensando melhor achou que não valia a pena. A alma de Sigefredo também não manifestou interesse em voltar para ele. Dir-se-ia que aprendera a viver por conta própria, e mesmo naquele estado era independente.

Sigefredo passou por sua alma sem cumprimentá-la, entrou no bar e pediu o drinque habitual. Ao sair, viu a alma, a pequena distância, dar alguns passos e lhe saírem dos ombros duas asas, com que ela se alteou, voando para a Zona Norte.
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A MESA FALANTE

Entre os móveis que pertenceram ao médium Aksakovo Feitosa, leiloados após o seu falecimento, estava a mesa falante que durante vinte anos serviu a seus trabalhos. Aparentemente não se distinguia de qualquer outra mesa, porém o longo hábito de prestar-se a experiências acabara por lhe conferir poderes independentes de iniciativa humana.

Convertida em mesa de jantar na casa do funcionário do Lloyd Brasileiro que a arrematara, começou a levitar quando a família festejava o aniversário da filha mais nova do casal, a menina Leonarda. O susto dos comensais foi imenso, e embargou-lhes a voz. Pálidos, ansiosos por fugir, e atados às cadeiras, todos acompanhavam os movimentos da mesa sem que pudessem detê-los.

Durou cinco minutos o fenômeno. A família voltou a mexer-se, mas os copos estavam trincados e o vinho escorria deles sobre a toalha. Junto ao prato de Leonarda, a mancha rubra formava uma cruz, que foi interpretada como presságio lúgubre.

O pai da menina desfez-se do móvel, doando-o a um asilo de velhos. A menina cresceu e casou-se com o nobre italiano Papavincini, cujo brasão encerrava uma cruz cor de sangue, e foram muito felizes. É a primeira vez em que uma história dessas acaba em casamento e felicidade.
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A ORQUESTRA ODIOSA

É uma orquestra desarmônica por excelência. O maestro faz o possível para lançar a discórdia entre os instrumentos, e extrai disso um belo efeito. A trompa e o fagote não se cumprimentam, e ambos vivem de implicância com o oboé, que por sua vez trata o clarinete com soberano desdém. A flauta doce desmente seu nome, recusando o diálogo com o corne inglês. E os violinos planejam sequestrar o contrabaixo. Trompas e tímbalos têm ar feroz. O mais, nessa mesma linha de agressividade.

Como pode uma orquestra assim povoada de desavenças alcançar tamanho êxito em suas audições? O público ouve-a em religioso silêncio. Sucedem-se as turnês pelos estados, e há convites do exterior, que ainda não puderam ser atendidos.

Devo afirmar, a bem da verdade, que a execução dos concertos é impecável, e como cada instrumento deseja não apenas suplantar, como até expulsar os demais do conjunto, há competição acirrada em torno de quem é capaz de tocar melhor. O rancor conduz a resultados sublimes, que a crítica não sabe como explicar. A orquestra apura cada vez mais suas ambições, e teme-se que no auge de seu esplendor ocorra um assassinato nas cordas.

Fonte:
Carlos Drummond de Andrade. Contos plausíveis. Publicado em 1981.

Fernando Pessoa (Caravela da Poesia) XXXVII

DO MEIO DA RUA  


Do meio da rua
(Que é, aliás, o infinito)
Um pregão flutua,
Música num grito...

Como se no braço
Me tocasse alguém
Viro-me num espaço
Que o espaço não tem.

Outrora em criança
O mesmo pregão...
Não lembres... Descansa,
Dorme, coração !...
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DORME, CRIANÇA, DORME  

Dorme, criança, dorme,
Dorme que eu velarei;
A vida é vaga e informe,
O que não há é rei.
Dorme, criança, dorme,
Que também dormirei.

Bem sei que há grandes sombras
Sobre áleas de esquecer,
Que há passos sobre alfombras
De quem não quer viver;
Mas deixa tudo às sombras,
Vive de não querer.
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DORMIR! NÃO TER DESEJOS NEM 'SPERANÇAS  

Dormir! Não Ter desejos nem 'speranças
Flutua branca a única nuvem lenta
E na azul quiescência sonolenta
A deusa do não-ser tece ambas as tranças.

Maligno sopro de árdua quietude
Perene a fronte e os olhos aquecidos,
E uma floresta-sonho de ruídos
Ensombra os olhos mortos de virtude.

Ah, não ser nada conscientemente!
Prazer ou dor? Torpor o traz e alonga,
E a sombra conivente se prolonga
No chão interior, que à vida mente.

Desconheço-me. Embrenha-me futuro,
Nas veredas sombrias do que sonho.
E no ócio em que diverso me suponho,
Vejo-me errante, demorado e obscuro.

Minha vida fecha-se como um leque.
Meu pensamento seca como um vago
Ribeiro no verão . Regresso , e trago
Nas mão flores que a vida prontas seque.

Incompreendida vontade absorta
Em nada querer... Prolixo afastamento
Do escrúpulo e da vida no momento...
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DO SEU LONGÍNQUO REINO COR-DE-ROSA  

Do seu longínquo reino cor-de-rosa,
Voando pela noite silenciosa,
A fada das crianças vem, luzindo.
Papoulas a coroam, e , cobrindo
Seu  corpo todo, a tornam misteriosa.

À criança que dorme chega leve,
E, pondo-lhe na fronte a mão de neve,
Os seus cabelos de ouro acaricia  -
E sonhos lindos, como ninguém teve,
A sentir a criança principia.

E todos os brinquedos se transformam
Em coisas vivas, e um cortejo formam:
Cavalos e soldados e bonecas,
Ursos e pretos, que vêm, vão e tornam,
E palhaços que tocam em rabecas...

E há figuras pequenas e engraçadas
Que brincam e dão saltos e passadas...
Mas vem o dia, e, leve e graciosa,
Pé ante pé, volta a melhor das fadas
Ao seu longínquo reino cor-de-rosa.
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DOURA O DIA. SILENTE, O VENTO DURA

Doura o dia. Silente, o vento dura.
Verde as árvores, mole a terra escura,
Onde flores, vazia a álea e os bancos.
No pinal erva cresce nos barrancos.
Nuvens vagas no pérfido horizonte.
O moinho longínquo no ermo monte.
Eu alma, que contempla tudo isto,
Nada conhece e tudo reconhece.
Nestas sombras de me sentir existo,
E é falsa a teia que tecer me tece.  

Fonte:
Fernando Pessoa. Poesias Inéditas (1930 – 1935).

terça-feira, 15 de março de 2022

Versejando 104

 

A. A. de Assis (“Sou muito orgulhoso”)

Rico ele era, mas muito chato. Sabia disso. Herdara do pai algumas terras, uma rede de lojas e outras coisinhas e coisonas. Cheio de etiquetas à mesa. Habitualmente embrulhado em terno e gravata. Exigia ser chamado de doutor. Soberbo e arrogante eram adjetivos com que costumavam carimbá-lo os que a seu redor lidavam.

Certo dia – há coisa de uns vinte anos –, enquanto fazia sua caminhada domingueira no parque, num súbito acesso de autocrítica decidiu que precisava desabafar com alguém. Já não aguentava saber que era olhado com tanta antipatia. Parou, olhou em volta, viu sentado num tronco à beira do lago um homem com jeito de sábio, longas grisalhas barbas, cachimbão fumegando. Pediu licença, acomodou-se ao lado. O velhinho percebeu de pronto o clima. Perguntou sereno: “O que é que o aflige, filho? Brigou com a mulher? Está com alguma dificuldade financeira? Alguma complicação de saúde?

Não era nada disso, explicou o pancudo. A esposa era um anjo de paciência e bondade, os negócios iam de vento em popa, a saúde perfeita. “Meu problema, vô (posso chamá-lo de vô?...), meu problema é que sou muito orgulhoso, orgulhoso demais”.

– Ah, sim. Então talvez não seja coisa deveras grave. Se o amigo se sente tão orgulhoso, há de haver alguma justa razão. Quem sabe o guapo mancebo seja um grande empresário como o Ermírio de Morais, que além de bem-sucedido criou milhares de empregos e ajudou a manter diversas instituições assistenciais.

Não era. Só pensava nos próprios interesses e achava que não tinha nada a ver com os dramas sociais do mundo. O governo que cuidasse disso.

Quem sabe então ele fosse um físico como o César Lattes, um médico como o Dr. Zerbini, um político do porte de um Juscelino, um jurista como Nélson Hungria, um craque como Pelé ou Garrincha, um piloto como Ayrton Senna, um paisagista como Burle Marx, um pintor como Portinari...

– Que nada. O vô deve estar brincando.

– Mas para justificar tamanho orgulho há de haver, pelo menos, em sua família, alguém muito famoso e de especial valor: um músico como Pixinguinha, um cantor como Roberto Carlos, um compositor como Tom Jobim, um ator como Paulo Autran, um poeta como Bandeira ou Quintana...

Ou quem sabe alguma das suas tias ou irmãs ou primas teria o brilho de uma Tarsila do Amaral, de uma Raquel de Queiroz, de uma Cecília Meireles, de uma Tônia Carreiro, de uma Bibi Ferreira, de uma Eva Wilma, de uma Ruth de Souza, de uma Dalva de Oliveira, de uma Maria Esther Bueno...

Ou talvez seja você um grande líder religioso, um grande professor, um grande engenheiro, um grande orador, um grande estilista, um grande cozinheiro, um medalhista olímpico...

– Pare, vô. Não sou nada disso.

– Então, meu filho, fique tranquilo. Você não é orgulhoso coisa nenhuma... é apenas um rapaz bobinho. Sua doença tem cura fácil: basta um pouco de humildade. Baixe a crista e siga em paz.
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(Crônica publicada no Jornal do Povo – Maringá – 03.3,2022)

Fonte:
Texto enviado pelo autor.