Todos os dias, com sábados e domingos neles, ele aguarda as 17h e sai do Bairro Antonina, no município fluminense de São Gonçalo, numa viagem de dois ônibus até a praia de Gragoatá, em Niterói. Escolhe uma posição aleatória no grande calçadão que separa as praias de Boa Viagem e Gragoatá, sempre o ponto mais vazio da noite. Em seguida, lança sua linha de mão – pois jamais gostou de varas de pesca – e aguarda acontecer.
Nunca entendeu o motivo de tal extravagância do Universo, mas, que importa?
Na primeira vez foi assustador, e ele se acreditou morto. Era a terceira ida até o calçadão do Gragoatá, depois de anos pescando apenas na gonçalense Praia da Luz, local que se tornara inviável pela violência. A pesca de linha era sua forma de descontrair as noites, de embriagar – ele que nunca bebia – e engabelar sua solidão. O filho se fora para Anápolis, trabalhar no agro, mas isso era da vida e para tal fora criado. Mas ela... Ela a partida, ela a finada, ela era a sua dor.
Ia pras 20h quando a linha acusou retorno, rompendo a sonolenta divagação do velho solitário.
Ele puxou, e a dádiva do mar e da noite foi uma bela e inesperada raia viola. Susto imediato, pescar uma raia ali na costa, na potência da simples linha!
Ao apanhar o peixe, com cuidado pois jamais manuseara um daqueles, o velho Onório surpreendeu-se sorrindo – sim, sorrindo, depois de três anos de um luto travestido de eternidade.
Ao abrir cerimoniosamente a boca do peixe para remover o anzol, aconteceu.
Sua visão pareceu escurecer, como sucede quando se está prestes a um desmaio, mas logo foi inundada por um clarão oceânico. Três ou quatro segundos foram necessários para ele voltar a abrir os olhos, e agora já não havia noite nem mar.
Sentado num banco da praça Carlos Gianelli, no concorrido bairro de Alcântara, em São Gonçalo, sua primeira sensação foi daquela mão macia e aquecida segurando a sua. Olhou para o lado, e era ela, Amária. Não era possível! Antes que pudesse falar alguma coisa, ela se antecipou:
– Fique calmo, Onório. Eu estou aqui, eu estou aqui. – Ela disse, deitando a cabeça em seus ombros. Ele respondeu reclinando sua cabeça de encontro a dela, apertando ainda mais aquela mão, e só então fixando o olhar na paisagem, banhada pelo mais aconchegante dos sóis.
Um Fiat Tempra, retinindo de novo, cruzava a rua. Na outra mão, um ônibus da empresa Santa Isabel parava para o embarque de passageiros. Ele trabalhara naquela empresa que já não era, desfeita que fora em 2006. Só então ele deu-se conta: Aquela praça também já não existia; dera lugar a um obtuso shopping. Amária estava bem mais jovem do que quando partira, e isso tinha motivo, legível na paisagem e nas memórias: ele voltara até os anos 1990.
– Eu te amo tanto, Onório. Essa dor, ela é tanta, mas pra que isso? A vida acontece, e morrer foi da vida. Você precisa ser forte, precisa continuar.
– Eu sei. Eu sei! Mas não consigo, não consigo... De dia fico enfurnado naquela casa, ainda ouço a Rádio Tupi, só pra lembrar de quando ficávamos ouvindo as notícias e causos, eu consertando televisores, você na costura... Mas quando a tarde vai caindo eu não aguento, e preciso esquecer. Saio para pescar, e tentar esquecer você, mas não funciona muito bem. Por tantas vezes pensei em me jogar no mar!
– Nem tem pra que disso, Onório! Te conheci macho, macho te escolhi, então honre o que você foi e é. Tenha brios, homem!
– Ô minha fortuna... Só de estar aqui e falar com você, meu Deus, nunca tive um sonho tão doce, e tão real. Cê voltou dos mortos pra estar comigo!
– Ninguém volta dos mortos, meu carneirinho... E nem tem outra vida além dessa que vivi, que você vive. E sonho não tem cheiro. Sente esse cheirinho de angu à baiana, vindo daquela barraca? Aqui não é sonho nem realidade, é uma outra coisa, não tem nome pra isso. Seu amor que fez esse milagre, Onório.
– Mas é lindo, Amária, é lindo. E como você está linda. Esse vestido azul, nem me lembrava.
– Está na hora de você voltar, meu amor.
– Não, não! Que é isso, meu doce, aqui é meu lugar, que voltar o quê!
– Aqui nem é lugar, nem é nosso, Onório. Mas aqui estamos, isso foi uma piscadela do Universo, uma graça de Deus. Mas o Universo já está abrindo os olhos.
– Não, não, meu amor, eu te imploro!
– Vai. Amanhã o Universo vai piscar de novo.
Outro clarão acometeu aos olhos do viúvo, seguido por um escuro manso – processo do início da visão, mas ao revés.
Onório ainda estava com a raia nas mãos – peixe raro, de estranho nome científico, Zapteryx brevirostris, tão ameaçado de extinção quanto o amor. Nativo da Baía de Guanabara, sua pesca era proibida. O velho o lançou de volta ao mar.
E todos os dias, com sábados e domingos e tempestades neles, religiosamente o velho sai de seu agora já não tão mal cuidado casebre, situado numa travessa sem saída no Bairro Antonina, e vai até aquele calçadão niteroiense para pescar a mesma raia, em cuja boca o Universo pisca – ressuscitando, noite após noite, o moribundo Onório e seu amor.
Nunca entendeu o motivo de tal extravagância do Universo, mas, que importa?
Na primeira vez foi assustador, e ele se acreditou morto. Era a terceira ida até o calçadão do Gragoatá, depois de anos pescando apenas na gonçalense Praia da Luz, local que se tornara inviável pela violência. A pesca de linha era sua forma de descontrair as noites, de embriagar – ele que nunca bebia – e engabelar sua solidão. O filho se fora para Anápolis, trabalhar no agro, mas isso era da vida e para tal fora criado. Mas ela... Ela a partida, ela a finada, ela era a sua dor.
Ia pras 20h quando a linha acusou retorno, rompendo a sonolenta divagação do velho solitário.
Ele puxou, e a dádiva do mar e da noite foi uma bela e inesperada raia viola. Susto imediato, pescar uma raia ali na costa, na potência da simples linha!
Ao apanhar o peixe, com cuidado pois jamais manuseara um daqueles, o velho Onório surpreendeu-se sorrindo – sim, sorrindo, depois de três anos de um luto travestido de eternidade.
Ao abrir cerimoniosamente a boca do peixe para remover o anzol, aconteceu.
Sua visão pareceu escurecer, como sucede quando se está prestes a um desmaio, mas logo foi inundada por um clarão oceânico. Três ou quatro segundos foram necessários para ele voltar a abrir os olhos, e agora já não havia noite nem mar.
Sentado num banco da praça Carlos Gianelli, no concorrido bairro de Alcântara, em São Gonçalo, sua primeira sensação foi daquela mão macia e aquecida segurando a sua. Olhou para o lado, e era ela, Amária. Não era possível! Antes que pudesse falar alguma coisa, ela se antecipou:
– Fique calmo, Onório. Eu estou aqui, eu estou aqui. – Ela disse, deitando a cabeça em seus ombros. Ele respondeu reclinando sua cabeça de encontro a dela, apertando ainda mais aquela mão, e só então fixando o olhar na paisagem, banhada pelo mais aconchegante dos sóis.
Um Fiat Tempra, retinindo de novo, cruzava a rua. Na outra mão, um ônibus da empresa Santa Isabel parava para o embarque de passageiros. Ele trabalhara naquela empresa que já não era, desfeita que fora em 2006. Só então ele deu-se conta: Aquela praça também já não existia; dera lugar a um obtuso shopping. Amária estava bem mais jovem do que quando partira, e isso tinha motivo, legível na paisagem e nas memórias: ele voltara até os anos 1990.
– Eu te amo tanto, Onório. Essa dor, ela é tanta, mas pra que isso? A vida acontece, e morrer foi da vida. Você precisa ser forte, precisa continuar.
– Eu sei. Eu sei! Mas não consigo, não consigo... De dia fico enfurnado naquela casa, ainda ouço a Rádio Tupi, só pra lembrar de quando ficávamos ouvindo as notícias e causos, eu consertando televisores, você na costura... Mas quando a tarde vai caindo eu não aguento, e preciso esquecer. Saio para pescar, e tentar esquecer você, mas não funciona muito bem. Por tantas vezes pensei em me jogar no mar!
– Nem tem pra que disso, Onório! Te conheci macho, macho te escolhi, então honre o que você foi e é. Tenha brios, homem!
– Ô minha fortuna... Só de estar aqui e falar com você, meu Deus, nunca tive um sonho tão doce, e tão real. Cê voltou dos mortos pra estar comigo!
– Ninguém volta dos mortos, meu carneirinho... E nem tem outra vida além dessa que vivi, que você vive. E sonho não tem cheiro. Sente esse cheirinho de angu à baiana, vindo daquela barraca? Aqui não é sonho nem realidade, é uma outra coisa, não tem nome pra isso. Seu amor que fez esse milagre, Onório.
– Mas é lindo, Amária, é lindo. E como você está linda. Esse vestido azul, nem me lembrava.
– Está na hora de você voltar, meu amor.
– Não, não! Que é isso, meu doce, aqui é meu lugar, que voltar o quê!
– Aqui nem é lugar, nem é nosso, Onório. Mas aqui estamos, isso foi uma piscadela do Universo, uma graça de Deus. Mas o Universo já está abrindo os olhos.
– Não, não, meu amor, eu te imploro!
– Vai. Amanhã o Universo vai piscar de novo.
Outro clarão acometeu aos olhos do viúvo, seguido por um escuro manso – processo do início da visão, mas ao revés.
Onório ainda estava com a raia nas mãos – peixe raro, de estranho nome científico, Zapteryx brevirostris, tão ameaçado de extinção quanto o amor. Nativo da Baía de Guanabara, sua pesca era proibida. O velho o lançou de volta ao mar.
E todos os dias, com sábados e domingos e tempestades neles, religiosamente o velho sai de seu agora já não tão mal cuidado casebre, situado numa travessa sem saída no Bairro Antonina, e vai até aquele calçadão niteroiense para pescar a mesma raia, em cuja boca o Universo pisca – ressuscitando, noite após noite, o moribundo Onório e seu amor.
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Texto enviado pelo autor.
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