terça-feira, 6 de janeiro de 2009

Antonio Facci (Alípio e Isabel)

Vindo do distante Portugal, juntamente com tantos outros imigrantes, aportou no Brasil ainda jovem, de compleição física avantajada, disposto a, nestas paragens, mesmo que enfrentando as maiores dificuldades que se lhe apresentassem, vencer na vida. Não importava que, para isso, tivesse que exaurir-se fisicamente.

Aqui chegando, levado por amigos e companheiros, foi logo agregar-se aos mais vigorosos e, mercê de sua força física e disposição de luta, encontrou trabalho como madeireiro. Trabalho duro. O trançador, empunhado inicialmente meio sem jeito, a ser empurrado de lá para cá com rapidez e energia, provocava uma transpiração exagerada, regando o chão com seu suor. Outras vezes, empunhando o machado, sangrando árvores, deitando ao chão perobas, cedros, pau-d' alhos, alecrins e tantas outras, que tombavam vencidas pela força daquele jovem português, disposto a vencer sem reclamar e nem em sonho fraquejar.

Passados os tempos, já com algumas pequenas economias, pensou: "Ora, pois, não está na hora de encontrar uma rapariga que me faça companhia?"

Assim pensando, encontrou, na vila próxima ao seu trabalho, uma formosa jovem brasileira, filha de espanhóis, que lhe agradava os olhos. Procurou conhecê-la melhor. Percebeu que não apenas "lhe agradava aos olhos", mas enchia também seu coração endurecido pela labuta diária. Aproximou-se, conheceu sua família.

A cada dia mais se apaixonava.

Ela, moça simples, embora brasileira, falava com o sotaque próprio de filhos de imigrantes que conservavam a tradição de, em casa, manter o idioma de sua pátria. Ela gostou muito do português. A família se afeiçoou a ele. Era trabalhador, dedicado e, acima de tudo, honesto. Ah, sim, honesto. Essa era a condição primordial para ser recebido naquela família.

Casaram-se. Com o passar dos anos, vieram os filhos. Foram quatro. Todos educado na forma rude que o ambiente cultural impunha. Mas o desenvolvimento na região veio trazendo escolas, comércio, energia elétrica, estradas, enfim o progresso chegou de mansinho, mudando a vida e os costumes daquele casal. Os filhos cresceram. Tornaram-se adultos. Um novo ambiente cultural fizera-se presente e, às vezes mesmo a contra gosto, os filhos encaminharam-se para outras profissões. Mais modernos, estudados, cada um buscando a realização pessoal, mas sempre ouvindo, obedecendo, procurando aplicar nas suas novas áreas de atuação os ensinamentos daquele rude casal que lhes dera a vida.
Os filho também encontraram seus companheiros e companheiras, formando novos lares. Os netos apareceram.

O português, antes forte e ativo, agora já via encanecer seus cabelos. A espanholita, outrora alegre e falante, sentia o peso dos anos. Não tinha mais as faces rosadas, o corpo perfeito, os cabelos sedosos. Mantinha, isto sim, a fé inabalável e a certeza de ter cumprido e seu dever e, principalmente, a missão de mulher, mãe, esposa e agora avó. Dura sim, às vezes. Mas, mesmo quando ralhava com os filhos e consciência fazia que aplicasse os castigos, mas o coração sangrava. O tempo, inexorável, marcava aqueles corpos.

Ela, de vez em quando, sentia algumas dores nas pernas. Algumas tonturas. Ele, embora sempre atencioso, poucas palavras de amor pronunciava. Nada de gestos carinhosos na presença de outras pessoas, mesmo que estas fossem as mais íntimas. Jamais um beijo em público. Jamais um afago, por mais simples na presença dos filhos. Agora velho, mantinha a tradição cultural em que fora educado. "Beijo é sinal de amor? Ora, lembre-se que Judas também beijou".

Já septugenário, o português ouviu da companheira:

-Não estou me sentindo bem. Minhas pernas doem muito.

-Ele, rapidamente, procurou um médico, internou-a no melhor hospital da cidade. Acompanhou todos os exames. Não entendia nada do que estava escrito naqueles papéis, mas ouvia dos médicos, estes seus amigos, as explicações para o terrível drama que se avizinhava. A conselho médico, transferiu a esposa para um hospital onde os recursos eram maiores em uma cidade vizinha. Não entendia bem o que estava acontecendo, mas assinou uns papéis que autorizavam a cirurgia.

Alguns dias depois, veio a alta médica. Finalmente voltaram para casa. Todos estavam bem? Sim. Tudo como antes, a não ser que a formosa espanholinha chegava de volta a casa, rodeada por todos os filhos e amigos, amparada pelo marido, com uma das pernas amputada!

Passaram-se os dias, meses. O português sempre à cabeceira da companheira, cuidava a seu modo de tudo. Ia buscar alimentos na cozinha, ministrava medicamentos, mudava as roupas do leito.

Para atender necessidades comerciais, viajou. Distante, sofreu um acidente de automóvel. Ganhou algumas fraturas, escoriações diversas. Foi internado. Na cama, perguntava sempre:

- Avisaram minha mulher?

Informado de que não, ficava satisfeito. Era preciso evitar que qualquer notícia desagradável viesse a perturbar a pessoa que o acompanhara por toda a vida. Melhorou, voltou para casa. Lá estava, no mesmo leito, a companheira.

Certa noite, fortes dores na outra perna da companheira. Os mesmos hospitais. Os mesmos médicos. O mesmo resultado. A mesma volta. Os mesmos amigos. Os mesmos familiares. Apenas uma pequena diferença: não tinha mais a perna que restava. Mais uma amputação se concretizara.

O português continuou ali, o pensamento em Deus. Os filhos iam e vinham amorosos. Os amigos diariamente a lhes prestar solidariedade. Ele ali, ao lado da companheira.

Certo dia, apenas para a regularização de documentos, foram visitados por um notário público. Este velho amigo da família, encontrou o encanecido português sentado à sala. Trocaram cumprimentos. Falaram sobre tudo, problemas econômicos, filhos, saúde. Jamais qualquer alusão ao sofrimento foi ouvido pelo notário, vindo dos lábios do rude português. Mais tarde adentraram o quarto onde permanecia, onde permanecia a espanholinha. Explicaram o motivo da visita. Ela sentou-se auxiliada pelo companheiro, que, solícito, improvisou uma mesa, onde foi apoiado o livro. Algumas palavras simples foram trocadas. Depois, naturalmente tendo já acomodado docilmente a companheira em seu leito, dirigiram-se ao companheiro e o notário à sala. Ele sentou-se à mesa. Apanhou uma caneta da mão do visitante. Debruçou-se sobre o livro. Demorou-se muito além do tempo necessário para apor a assinatura.

O notário percebeu que ele já havia assinado, mas silencioso e respeitoso, nada disse. Sabia que aquele ato agora firmado, nada continha que se referisse à situação da saúde da companheira. Mas ela entenderia? Por isso, o silêncio e a demora. A dor interior pe;a possibilidade de estar fazendo sofrer a companheira estava, naquele momento, simbolizada na figura encanecida e septuagenária que, de cabeça baixa, demorava-se sobre o livro.

Levantou-se, não limpou os olhos. Nenhuma lágrima aparecia. O notário apanhou o livro e, ao fechá-lo, encontrou duas gotas d'água no rodapé da página, ao lado das assinaturas de Alípio e Isabel. Sutilmente, apanhou o lenço, enxugou-as; porque tinha documento. Mas seu desejo era deixá-las ali. Conservá-las para sempre. Derramadas pelo anteriormente rude português , forte e destemido, chefe de família, pai e avô extremoso, estava ali a mais sublime prova de amor que jamais presenciara.

Não era o amor externado por gestos estudados, novelescos. Era o amor marcado pelo sentimento puro. Do homem que se debruça ao lado da companheira mutilada e, mesmo não fazendo carinho em seus cabelos brancos ou lhe osculando as faces com seus rudes lábios, olha-a com firmeza e pureza de coração e alma. E ela retribui o olhar com a mesma intensidade, emoção e pureza.

É o verdadeiro amor.

Naquele momento, esquecem-se da dor física. Não percebem nem mesmo que os anos se passaram. Voltam a ser os jovens que pela primeira vez se encontraram na festa da roça, quando seus olhos se cruzaram e nunca mais seus corações deixaram de transmitir um ao outro a esperança, o respeito, a emoção e o verdadeiro amor dos que têm almas gêmeas e pensamentos absolutamente puros.

Aquelas lágrimas. Aquele olhar. Aquele ambiente. Tudo faz transformar o que seria um quarto de dor em exemplo de amor e fé para qualquer pessoa que tenha a ventura de aproximar-se dali.

Por certo, quando Deus os chamar para o seu reino, os anjos bons os farão novamente se encontrar para a continuidade desse dílio tão terno e puro.

Fonte:
FACCI, Antonio. Do Cio ao Sombrio. Disponivel em http://www.afacci.com.br/

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