sexta-feira, 16 de janeiro de 2009

Cicero Galeno Lopes (Enrestando)

Se o senhor toma mate, sirva-se. Se fuma crioulo, sirva-se. Mas esses assuntos não são do meu dia, não há com quem conversar. A gente não pratica, se é que aprendeu algum dia. Até acho que certas falas doem. São como manga de chuva de enxurrada: são de bonança como de malença.

Nessas coisas sou como peixe fora d'água, na terra plana. Não tenho nem como nem que lhe responder. Minha vida é dos arredores. Me esforço no arrimo, como faz o que joga a bocha. Mal sei das coisas que posso e faço. A ciência do saber de tudo é coisa pra estudado. A sabedoria duns como eu é o que disse o Martín Fierro: Deve saber mui poco aquel que no aprendió nada. É ver um bicho, um cachorro. Que pode saber o cachorro senão o que já lhe vem na cabeça, o que lhe está nos instintos, o que a vida da busca faz aprender, por força? O cachorro olha a pessoa passando de calça comprida e pensa que aquilo que se mexe é o próprio que se move. Ele pensa, lá no pensar dele: esse aí é mole, os lados abanando. Ele vê a pessoa passar hoje, amanhã... O mesmo cheiro. Vai preparando a ação, a experiência. Num certo dia, por alguma razão que só cada um é que sabe, ele avança, pega a calça, rasga, tira um pedaço. Pensa: aqui vou eu com um pedaço dele. Era mole mesmo, até mais do que dava pra ver. Aquilo não tem firmeza nenhuma. Aqui vou eu com um pedaço.

A mim me parece - ainda que mal compare - que a gente no mundão é mais ou menos isso. Acha, pensa, examina, confirma. Acha e então proclama: tal coisa é isso, por isso e por aquilo outro. Quem demove? Quem explica que a parte não é o todo?

Senhor deve de pensar: mas é claro que a roupa não é a pessoa. Nós sabemos, mas o cão diz que é. Eu retoco: e por que não seria? Mude a roupa, mude o jeito. Examine. Vá primeiro num auto desses que parece que nem tocam no chão. Depois, pegue uma carrocinha velha, um cavalinho magro suado, ponha roupas de desalinho com remendos e manchas, use chapéu velho desabado ou uma boina ruça ensebada do uso. Experimente os dois modos. Vá ao povo, vá aonde estão as pessoas da cidade, bem vestidas, com tratos de fala, de bancos, de sociedade. Aí o senhor vai confirmar. Ou não? Senhor deve de estar pensando: Claro, você está fazendo como o cachorro da sua história. Eu lhe confirmo: é pelo mesmo conseguinte. Assim é que os homens vêem o mundo, assim escorregamos por esse mundão sem limites. O senhor acha que tem limites? Então o senhor vai me dizer que tem, por isso e por aquilo e outros mais. Eu, querendo ser de acordo com o senhor, vou lhe responder - Sim, senhor. Mas não será. Vou é ficar pensando como o senhor está enganado. Vou ficar com pena do senhor, pensando que acha rastro de pereá no meio das chircas. Aí os rastros são tantos e as marcas tão iguais, que o senhor acaba pensando de novo e se perguntando por que as coisas são tão diversas. Aí eu vou pensar que o senhor é um homem maduro, já combinado com nosso mundo.

Desse modo é que penso. Comadre Matilde, também conhecida por Mazinha, e comadre Zildinha, dita também Ildinha, que tiveram casa montada, aqui do lado, estão sempre, nas tardes, no seu mate. No verão, na sombra das árvores, onde bate vento fresco da lagoa. No inverno, ao lado do fogão a lenha, uma olhando pra outra, conversando das pessoas. Sabe o que dizem? Dizem sempre quase as mesmas coisas. Uma confirma a outra. O senhor desejando, vá ali. Elas recebem bem, são de bom trato, acostumadas. Antes tinham muitos fregueses, bom comércio de divertimentos, bons bailes. Era uma casa alegre, de tangos e boleros, Nélson Gonçalves do Livramento e outros na vitrola, bem alto, até a madrugada. O mundo delas foi quase sempre o mesmo, não dava tempo pra outros pensares. Então isso ficou sendo o mundo pra elas. A perna da calça na boca. O senhor deve agora de estar pensando: Claro, pois só viram isso. Eu lhe afianço: assim também fui eu. Até acho que é assim qualquer que seja. Vou lhe dizer: elas nem são daqui, vieram do Cacequi, ainda moças, quando o trem fazia parada longa pra sopa quente no inverno e pro passeio na estação, nos tempos quentes. Foi aqui que encontraram seu modo de vida. Viram o mundo se mexendo, pararam pra ver melhor como era. O outro mundo, de lá, de antes, não é mais mundo, é como um sonho sonhado, que não se tem onde pegar, por onde se chegar. Sonho se desmancha no tempo. Falar dele como, agora? Falar de que agora? Elas falam das pessoas que foram, das pessoas que passaram, mais perto. É a perna da calça na boca, a confirmação. Demais, ver o que mais, agora? O cachorrinho com o pedaço de pano da calça vai se deitar, ruminar suas certezas, envelhecer sabendo das coisas, sem esperança de outros passantes, porque são todos iguais, todos moles, sem firmeza. Coisas que não importam mais agora, porque o sabido fica guardado, quando se vê na altura das pernas das calças. Se fixe nisso. Que mais vou lhe dizer? Meus pensares se encerram nessas coisas que vejo nos bichos. Neste lugar as pessoas são poucas. Aqui ficam os velhos, as mães e alguns poucos pais, os defeituosos de nascença e do trabalho. Esse pontão de mundo é quase arrodeado de água. O olhar da gente fica enrestado pra um lado só, pra lá da lagoa que se perde de vista. Até os cachorros aqui são por demais de dorminhocos, quem sabe porque vêem sempre as mesmas pessoas passarem e sabem que todos são o que parecem, pra eles.

Fonte:
http://www.msmidia.com/cicero/

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