Mesmo nos anos mais duros da guerra, quando os aviões da Luftwaffe despejavam bombas sobre Londres e outras cidades inglesas, Winston Churchill jamais dispensou uma garrafa de champanhe ao almoço e outra ao jantar; uma dose de uísque ao entardecer e duas ou três antes de deitar-se, às duas da manhã. Então metia-se na cama, dizia para si mesmo ''danem-se todos!'' e dormia tranqüilamente, sem sonhar. Alcançar objetivos concretos, na paz ou na guerra, constituía para ele algo melhor do que o sonho. E se a realidade incluísse garrafas de fermentados ou destilados, melhor.
Em agosto de 1942, quando Hitler estava na ofensiva na frente russa, Churchill empreende cansativa e perigosa viagem aérea de Londres até Moscou, com escala no Cairo e em Teerã, para explicar ao seu antigo inimigo e então novo parceiro na guerra, Josef Stalin, que os aliados não abririam logo uma segunda frente na Europa, operação que desde a invasão nazista os soviéticos exigiam desesperadamente para ontem. Antes disso, tropas britânicas e americanas invadiriam a África para expulsar Rommel do Egito e controlar o Mediterrâneo. A invasão pelo norte da França só viria depois.
Na primeira reunião dos dois líderes e seus assessores (Motolov e Alexander Cadogan), enquanto eles discutiam no Kremlin, tropas nazistas estavam próximas da capital. Impaciente, Stalin exigia a abertura da segunda frente na Europa.
- O que os ingleses esperam? - indagava o marechal, com a voz alterada - Estão com medo de combater os soldados nazistas?
A argumentação de Stalin encontrou resistência por parte de Churchill, que ignorou o insulto: os aliados nada fariam além do acertado com Rooselvelt. Invadir o norte da França antes de 1943 (o desembarque na Normandia só ocorreu em julho de 1944) seria um desastre militar que permitiria a Hitler consolidar seu poder na Europa. Enfurecido, Stalin não teve outro recurso senão conformar-se. Mas arrancou a promessa de que a RAF e os americanos bombardeariam a Alemanha - o que Churchill não precisava prometer: os aviões aliados já despejavam bombas sobre Hitler.
Na véspera de sua partida, depois de dois dias de discussões, Churchill vai ao Kremlin para despedir-se. Mais conformado, Stalin adota tom cordial, em diálogo traduzido por um poliglota chamado Pavlov, que nada conhecia de reflexologia:
- Você parte ao raiar do dia. Por que não vamos à minha casa para beber um pouco? Tenho lá boa adega, você não se arrependerá.
Churchill respondeu que apoiava a política dos drinques à tarde, mesmo em uma Moscou quase nas mãos dos nazistas. Detalhes sobre o encontro estão nas suas Memórias da Segunda Guerra Mundial, em tradução de Vera Ribeiro, com selo da editora Nova Fronteira. Vale a pena ler a descrição da insólita happy hour de dois líderes que, naquele momento decisivo e dramático, parecia o encontro casual de dois amigos no melhor dos mundos; jogavam conversa fora enquanto russos e alemães lutavam encarniçadamente bem perto do Kremlin. Os dois tinham consciência do que acontecia na desesperada linha de resistência soviética, mas precisavam se conhecer melhor. E também porque, como diria o inglês, que diabo, gostavam de beber.
Stalin jogava sua última carta naquele pôquer em que as fichas eram as vidas de milhões de soldados soviéticos: esperava embebedar Churchill e assim obter dele o compromisso de invadir a Europa nazista; com o monstro voltado para quem o atacasse no canal da Mancha ele teria um alívio nos Urais. Mas, diante da implacável firmeza do seu companheiro de copo, irritou-se:
- A Marinha britânica não tem senso de glória? Vocês eram os donos dos mares e agora têm medo de atravessar o Canal da Mancha?
- Você pode crer - respondeu Churchill - o que estamos fazendo é o certo. Eu entendo um bocado sobre marinha e guerra naval.
- O que significa então que eu não entendo nada? - respondeu, abrupto, Stalin, fingindo-se envolvido.
- A Rússia é animal terrestre - retrucou Churchill - enquanto os britânicos são animais marítimos. Nós conhecemos a nossa força naval, sabemos o que podemos e o que não podemos fazer. Não despreze a força dos submarinos nazistas, que já destroçaram boa parte da nossa frota.
Stalin permaneceu instantes em silêncio, contendo a raiva que sentia daqueles ingleses resistentes à bebida e de quem precisava desesperadamente. Enfim, meio conformado, disse:
- Vamos chamar o Motolov, ele também gosta muito de beber.
Churchill concordou e por sua vez convidou o embaixador Alexander Cadogan, que segundo ele, também era bom de copo. E a conversa continuou, agora a quatro, com o professor Pavlov dividindo-se entre eles, enquanto as garrafas iam sendo esvaziadas. E assim passavam as horas, contando histórias e anedotas, levantando brindes à vitória que sabiam estar tão longe quanto perto de Moscou estavam os alemães. Nas palavras de Churchill: ''Bebemos uma multiplicidade de vinhos excelentes. Motolov assumiu seus ares mais afáveis e Stalin, para animar a situação, caçoou dele implacavelmente''.
O encontro terminou às 2h30m da manhã, com as despedidas de Stalin, que foi ler os telegramas que chegavam do front; a situação estava ruim, mesmo. Churchill voltou à Residência Estatal nº 7, ainda encontrou forças para ouvir as queixas de um impaciente general polonês que o esperava, e não teve tempo para dormir. Quando chegou ao aeroporto, às 5h, sua cabeça estalava. E lá encontrou, para as despedidas, um cambaleante Motolov.
- Você achou que eu não viria? - perguntou o russo, estremunhado.
Churchill agradeceu a gentileza do ministro do Exterior soviético e embarcou, sem fazer idéia de onde Motolov arranjaria forças para passar aquele dia. Quanto a ele, confessou: dormiu durante toda a viagem.
Mesmo na hipótese improvável de Stalin conseguir de Churchill embriagado o compromisso de invadir a França, dificilmente Roosevelt embarcaria nessa canoa. E por falar em Roosevelt: mesmo doente, o presidente americano jamais dispensou dois ou três martínis antes do jantar. Não era uma esponja do calibre de Churchill ou de Stalin, mas também entornava bem. O Times, os tablóides londrinos ou o The New York Times jamais informaram aos seus leitores londrinos que a guerra contra os nazistas era conduzida por três líderes que bebiam todas.
E que no final venceram Adolf Hitler, um ditador sanguinário e... abstêmio.
Fontes
Jornal do Brasil (Rio de Janeiro - RJ) 26/05/2004. In Academia Brasileira de Letras.
Em agosto de 1942, quando Hitler estava na ofensiva na frente russa, Churchill empreende cansativa e perigosa viagem aérea de Londres até Moscou, com escala no Cairo e em Teerã, para explicar ao seu antigo inimigo e então novo parceiro na guerra, Josef Stalin, que os aliados não abririam logo uma segunda frente na Europa, operação que desde a invasão nazista os soviéticos exigiam desesperadamente para ontem. Antes disso, tropas britânicas e americanas invadiriam a África para expulsar Rommel do Egito e controlar o Mediterrâneo. A invasão pelo norte da França só viria depois.
Na primeira reunião dos dois líderes e seus assessores (Motolov e Alexander Cadogan), enquanto eles discutiam no Kremlin, tropas nazistas estavam próximas da capital. Impaciente, Stalin exigia a abertura da segunda frente na Europa.
- O que os ingleses esperam? - indagava o marechal, com a voz alterada - Estão com medo de combater os soldados nazistas?
A argumentação de Stalin encontrou resistência por parte de Churchill, que ignorou o insulto: os aliados nada fariam além do acertado com Rooselvelt. Invadir o norte da França antes de 1943 (o desembarque na Normandia só ocorreu em julho de 1944) seria um desastre militar que permitiria a Hitler consolidar seu poder na Europa. Enfurecido, Stalin não teve outro recurso senão conformar-se. Mas arrancou a promessa de que a RAF e os americanos bombardeariam a Alemanha - o que Churchill não precisava prometer: os aviões aliados já despejavam bombas sobre Hitler.
Na véspera de sua partida, depois de dois dias de discussões, Churchill vai ao Kremlin para despedir-se. Mais conformado, Stalin adota tom cordial, em diálogo traduzido por um poliglota chamado Pavlov, que nada conhecia de reflexologia:
- Você parte ao raiar do dia. Por que não vamos à minha casa para beber um pouco? Tenho lá boa adega, você não se arrependerá.
Churchill respondeu que apoiava a política dos drinques à tarde, mesmo em uma Moscou quase nas mãos dos nazistas. Detalhes sobre o encontro estão nas suas Memórias da Segunda Guerra Mundial, em tradução de Vera Ribeiro, com selo da editora Nova Fronteira. Vale a pena ler a descrição da insólita happy hour de dois líderes que, naquele momento decisivo e dramático, parecia o encontro casual de dois amigos no melhor dos mundos; jogavam conversa fora enquanto russos e alemães lutavam encarniçadamente bem perto do Kremlin. Os dois tinham consciência do que acontecia na desesperada linha de resistência soviética, mas precisavam se conhecer melhor. E também porque, como diria o inglês, que diabo, gostavam de beber.
Stalin jogava sua última carta naquele pôquer em que as fichas eram as vidas de milhões de soldados soviéticos: esperava embebedar Churchill e assim obter dele o compromisso de invadir a Europa nazista; com o monstro voltado para quem o atacasse no canal da Mancha ele teria um alívio nos Urais. Mas, diante da implacável firmeza do seu companheiro de copo, irritou-se:
- A Marinha britânica não tem senso de glória? Vocês eram os donos dos mares e agora têm medo de atravessar o Canal da Mancha?
- Você pode crer - respondeu Churchill - o que estamos fazendo é o certo. Eu entendo um bocado sobre marinha e guerra naval.
- O que significa então que eu não entendo nada? - respondeu, abrupto, Stalin, fingindo-se envolvido.
- A Rússia é animal terrestre - retrucou Churchill - enquanto os britânicos são animais marítimos. Nós conhecemos a nossa força naval, sabemos o que podemos e o que não podemos fazer. Não despreze a força dos submarinos nazistas, que já destroçaram boa parte da nossa frota.
Stalin permaneceu instantes em silêncio, contendo a raiva que sentia daqueles ingleses resistentes à bebida e de quem precisava desesperadamente. Enfim, meio conformado, disse:
- Vamos chamar o Motolov, ele também gosta muito de beber.
Churchill concordou e por sua vez convidou o embaixador Alexander Cadogan, que segundo ele, também era bom de copo. E a conversa continuou, agora a quatro, com o professor Pavlov dividindo-se entre eles, enquanto as garrafas iam sendo esvaziadas. E assim passavam as horas, contando histórias e anedotas, levantando brindes à vitória que sabiam estar tão longe quanto perto de Moscou estavam os alemães. Nas palavras de Churchill: ''Bebemos uma multiplicidade de vinhos excelentes. Motolov assumiu seus ares mais afáveis e Stalin, para animar a situação, caçoou dele implacavelmente''.
O encontro terminou às 2h30m da manhã, com as despedidas de Stalin, que foi ler os telegramas que chegavam do front; a situação estava ruim, mesmo. Churchill voltou à Residência Estatal nº 7, ainda encontrou forças para ouvir as queixas de um impaciente general polonês que o esperava, e não teve tempo para dormir. Quando chegou ao aeroporto, às 5h, sua cabeça estalava. E lá encontrou, para as despedidas, um cambaleante Motolov.
- Você achou que eu não viria? - perguntou o russo, estremunhado.
Churchill agradeceu a gentileza do ministro do Exterior soviético e embarcou, sem fazer idéia de onde Motolov arranjaria forças para passar aquele dia. Quanto a ele, confessou: dormiu durante toda a viagem.
Mesmo na hipótese improvável de Stalin conseguir de Churchill embriagado o compromisso de invadir a França, dificilmente Roosevelt embarcaria nessa canoa. E por falar em Roosevelt: mesmo doente, o presidente americano jamais dispensou dois ou três martínis antes do jantar. Não era uma esponja do calibre de Churchill ou de Stalin, mas também entornava bem. O Times, os tablóides londrinos ou o The New York Times jamais informaram aos seus leitores londrinos que a guerra contra os nazistas era conduzida por três líderes que bebiam todas.
E que no final venceram Adolf Hitler, um ditador sanguinário e... abstêmio.
Fontes
Jornal do Brasil (Rio de Janeiro - RJ) 26/05/2004. In Academia Brasileira de Letras.
Pintura = http://cariricult.blogspot.com/
Nenhum comentário:
Postar um comentário