Todos os anos eram assim: o Cacimbo chegava a Maio e ia até ao fim de Agosto. Eram quatro meses e meio que não deixavam saudades, porque tudo o que tinha vida (as pessoas, os animais e as plantas) parecia ficar suspenso, como que à espera de recomeçar.
A mil e setecentos metros de altitude, Nova Lisboa evidenciava especialmente os efeitos desse período: as madrugadas frias de enregelar os ossos, o céu limpo de nuvens, o ar seco que soprava por todo o lado.
Junho era o mês pior. Do solo nu que abundava ainda por muitos sítios, a poeira subia e tomava conta das ruas, entrava em casa pelas frinchas das portas e das janelas, deixava a sua marca nas superfícies dos móveis.
Quem viera do Minho ou do Algarve, de Trás-os-Montes ou do Alentejo, dizia que o Inverno tinha chegado. Mas à parte as madrugadas frias, a comparação devia-se apenas à saudade trazida da terra natal, porque a limpeza do céu, a secura do ar, a poeira que subia do solo e tomava conta das ruas não aconteciam de fato em Portugal naquela estação.
Depois de Junho, Julho; depois de Julho, Agosto; depois de Agosto, Setembro.
Em Setembro, o tempo mudava: as madrugadas não eram mais frias, o ar não era mais seco, o céu cobria-se de nuvens densas e cinzentas, a poeira assentava. Cada dia mais elevada, a temperatura subia, até que numa manhã (ou numa tarde, ou numa noite), quase de repente, de um minuto para o outro, relâmpagos aos ziguezagues e trovões retumbantes traziam consigo a primeira chuva.
A água caía em bátega, como que despejada lá de cima de um alguidar imenso: alagava tudo (os quintais, os jardins, as ruas, os passeios); a caminho das valetas, avançava em cachão, veloz e rumorosa. Envolta em espuma, arras-tava no percurso o lixo depositado.
Outra vez de repente, também de um minuto para o outro, a chuva parava: tão depressa vinha, tão depressa ia.
Mas depois... Ah!, mas depois..., depois deixava no ar um cheiro à terra úmida, que entrava nas narinas e despertavam nas pessoas lembranças adormecidas; um cheiro que se sentia uma vez e não se esquecia mais; um cheiro forte, bom, promissor, de reinício; um cheiro de capim verde quase a brotar.
Para além dos limites da cidade, lá para os lados da Sacaála, do Cambiote ou da Quissala, à beira da estrada, esse cheiro mandava as mulheres espalmar os filhos nas costas, pegar nos cabos em V do etemo, dobrar os rins na lavra horas a fio, armar as bipangas e semear o milho.
Depois de Setembro, Outubro; depois de Outubro, Novembro; depois de Novembro, os meses seguintes até Abril.
Depois de Abril, Maio: o Cacimbo estava aí outra vez.
Depois Junho, Julho, Agosto e Setembro: a chuva de novo, o cheiro a terra úmida (tão forte, tão bom, tão promissor, tão de reinício como no ano anterior), o cheiro de capim verde quase a brotar.
====================
Sobre o autor

obras:
- Saudade do Huambo (para uma evocação do poeta Ernesto Lara Filho e da Coleção Bailundo).
- Quando o Huambo era Nova Lisboa.
- O sabor doce das nêsperas amargas.
- Aconteceu em agosto.
- Na babugem do êxodo.
- A mulata do engenheiro.
- Os pecados do diabo e as virtudes de Deus.
- O pecado maior de Abel
- Parábolas em português
- Mãe Loba
- Revisitações no Exílio
- Passageiro sem bilhete
- Adeus Macau, Adeus Oriente
Fontes:
- ANDRADE, Inácio Rebelo. Quando o Huambo Era Nova Lisboa. Lisboa, Portugal: Vega, 1998.
- UEA (União dos Escritores de Angola)
Fontes:
- ANDRADE, Inácio Rebelo. Quando o Huambo Era Nova Lisboa. Lisboa, Portugal: Vega, 1998.
- UEA (União dos Escritores de Angola)
- Foto = http://huambino.blogs.sapo.pt/
- Informações adicionais e correções fornecidas pelo autor.
Nenhum comentário:
Postar um comentário