sexta-feira, 23 de janeiro de 2009

Pinheiro Chagas (Astúcias de Namorada)

Namoro no Jardim (Cerâmica de Pombal)
PRÓLOGO

Este livro é um livro de verão. Fez-se para ser lido à sombra de uma árvore copada, à hora do meio dia, quando pode prestar-se apenas à leitura uma vaga atenção, e quando portanto se querem livros de enredo ligeiro e risonho, que nem resolvam problemas, nem arrepiem os nervos.

As Astúcias de Namorada estão escritas há largo tempo. As aventuras do seu manuscrito davam assunto a outro romance. Tem de curioso o ser o seu entrecho baseado sobre um fato sucedido realmente em Lisboa. Há de haver leitores que o taxem de inverossímil, pois saibam que é verdadeiro. Mais uma vez tem razão Boileau.

Le vrai peut quelquefois n’etre pas vraiseblable.

O romance que fecha o volume, e que se intitula Um melodrama em Santo Tirso, ponho-o aqui a título de curiosidade arqueológica. Foi a minha estréia no jornalismo. Fundara-se a Gazeta de Portugal. Eu tinha conhecimento pessoal do seu proprietário, Teixeira de Vasconcelos. Procurei-o para lhe ler o romance. Ele ia sair. -Deixe-me ver alguma coisa que lhe pareça melhor, disse-me ele. Li-lhe tremendo a cena em que Eduardo descreve as fisionomias dos literatos lisbonenses. Teixeira de Vasconcelos riu-se, e tirou-me das mãos o manuscrito.

-Il y a quelque chose lá, continuou ele, isto para estréia basta. O seu romance há de ser publicado.

E foi. Estava eu batizado folhetinista.

Hoje, relendo o romance, sorrio-me das ingenuidades do principiante, e, para conseguir desculpa do leitor, vejo que não tenho remédio senão dizer-lhe retrospectivamente com Alfredo de Musset.

Surtout considérez, illustres seigneuries

Comme l’auteur est jeune, et c’est son premier pas.

=====================

ASTÚCIAS DE NAMORADA

Havia baile, ou antes sarau dançante, numa casa em Almada.

Num pequeno jardim, que se espraiava até a beira dos rochedos pendurados sobre o rio, vinham os grupos dos convidados descansar um pouco das polcas e das valsas, respirar, e relancear os olhos pelo delicioso panorama do Tejo, em cujas águas traçava a lua como que uma estrada argêntea. De quando em quando enchia-se o jardim de risos, de segredinhos; a lua iluminava por entre as folhas roupas alvejantes, que passavam flutuando como o véu dos silfos; depois pelas janelas abertas da sala saía uma bafagem de baronia, proveniente dos primeiros compassos duns lanceiros, os grupos dispersavam-se e engolfavam-se em turbilhão pelas portas de vidraças, e o jardim ficava de novo solitário, mas não silencioso; porque nele se escutava o rumorejar da brisa, o eco da música do baile, e o murmúrio do rio que gemia docemente em baixo nas fragas.

Num dos intervalos das polcas, e quando o jardim se povoava de novo com os fugitivos do baile, um par, mais fatigado talvez que os outros, veio sentar-se numa espécie de caramanchão, que ficava na extremidade do jardim, mais próximo da orla do rochedo, e por conseguinte quase suspenso, como um ninho de gaivotas, sobre as águas. Devo retificar o que disse; não foram ambas as pessoas indispensáveis para formarem um par, não foram ambas as pessoas que se sentaram; só o fez uma senhora de vinte e cinco anos talvez, alta, elegante, morena e viva, de olhos rasgados e cabelos negros, que cintilavam como o ébano à luz brilhante da lua cheia.

O cavalheiro ficou de pé, apesar de sua gentil companheira lhe ter visivelmente proporcionado um lugar junto de si, como se podia deduzir do modo como aconchegou o vestido, fazendo ocupar à crinoline o menos espaço possível; mas essas piedosas intenções foram perdidas, porque o seu braceiro não ousou percebê-las, e conservou-se, como dissemos, em pé, ainda que os seus olhos ardentes, cravados no rosto da sua companheira, quando esta o não podia ver, denunciavam que não era a indiferença que o impedia de aproveitar o favor que se lhe queria conceder.

E contudo esse tímido moço estava na idade em que esses favores se ambicionam com mais ardor do que aos trinta e cinco anos a pasta de ministro, estava na idade em que se devaneiam escadas de seda flutuando ao sopro das auras, serenatas interrompidas por um amante cioso, amores aventurosos, mil perigos a atravessar para se obter um sorriso, uma flor, uma palavra, na idade feliz em que se inveja Leandro só ao pensar quantas vezes se teria acendido o farol de Hero antes da terrível noite, em que a morte, envolta em horrendas vagas, segundo a admirável expressão de Bocage, arrojou um cadáver lívido aos pés da torre, em que ainda não expirara o eco dos beijos da antecedente noite.

E o tímido rapaz alisava a luva branca, e procurava com frenesi uma palavra qualquer, que lhe não ocorria em presença dessa formosa senhora, cujos pés desejava beijar; e pensava que imensa felicidade no seria a sua, se em vez de estar sem ânimo, embaraçado e vermelho, diante dela, estivesse na outra margem do Tejo, e tivesse que o atravessar a nado para cair ofegante e exânime junto desse adorado vulto. Então não seria necessário falar; a sua palidez, os seus olhos cheios de amor diriam tudo, e muito infeliz seria, se a nova Hero, vendo-o ensopado por causa dela, lhe não dissesse alguma coisa que lhe desembaraçasse a língua, e partisse o gelo, que se interpunha obstinadamente a dois corações, que ansiavam por se unir.

A gentil senhora esteve um instante olhando para ele com um sorriso meio despeitado, meio zombeteiro, e afinal, vendo que a malfadada luva branca ainda não parecia suficientemente alisada, meneou a cabeça com um gesto encantador, que fez ondular as suas tranças negras, e que espalhou na atmosfera um aroma inebriante, aspirado com delícias pelo tímido moço. Depois voltou os olhos para o rio, encostou a face à mão enluvada, e ficou-se a contemplar esse quadro magnífico.

A noite estava linda, uma destas noites de luar, como o cálido estio as envia aos países meridionais. No céu dum azul suavíssimo, algumas nuvens, volteando em torno da lua, recortadas em mil arabescos pela brisa noturna, embebidas todas no cândido fulgor do astro da noite, pareciam as maravilhosas ondas do véu luminoso que Febe arrasta pelo firmamento, em noites assim lânguidas e serenas. O Tejo desenrolava a sua imensa toalha líquida, prateada no centro pelo luar, e negra junto do cais, ou à sombra dos mastros dos navios imóveis nos ancoradouros. Ao longe Lisboa avultava, espraiando a sua casaria à beira do rio, e pelas faldas das suas sete colinas. As longas fileiras dos seus candeeiros de gás formavam à borda do Tejo como que uma fila de chamas. Alguns barcos de pescadores deslizavam silenciosamente, soltando ao sopro da brisa as suas velas brancas.

Este panorama, que só tem rivais na baía de Nápoles ou na enseada de Constantinopla, devia fascinar quem o contemplasse, como a gentil senhora em quem falamos, do caramanchão dum jardim, cheio de árvores, onde expiravam os últimos ecos duma valsa, onde o luar, coando-se por entre as folhas, lutava com os luminosos reflexos, que dimanavam dos lustres, cintilando nas salas.

Parecia ela efetivamente toda absorvida na sua contemplação, quando a voz trêmula e profundamente comovida do seu jovem companheiro a fez estremecer.

Essa voz, toda vibrante de paixão, dizia simplesmente estas palavras:

-Que... linda... noite! -Lindíssima, não é? respondeu ela, voltando para o seu interlocutor o rosto ainda encostado na mão, o que lhe permitiu erguer os olhos para ele sem levantar a face, dando assim às pupilas uma expressão voluptuosa, que encerra um encanto irresistível, um magnetismo fascinador... Como que parecem flutuar na atmosfera todos os sonhos dos poetas! Sabe no que eu pensava agora, vendo aquele bote, que resvala à flor das águas, como um cisne da noite? Pensava se seria esse o barco de Lamartine, e se levaria lambem dois amantes, que fossem murmurando um ao outro, com as mãos enlaçadas, as doces palavras que tanto nos encantam, quando o autor do Lago as traduz na melodiosa linguagem da sua poesia.

-Ah! bem sei, respondeu o desastrado: Ainsi toujours possés vers de nouveaux rivages...

-Oh! meu Deus, tornou a senhora visivelmente impacientada, conheço os versos, mas, como não quero privá-lo do prazer de os recitar, peço-lhe que me acompanhe à sala, e permito-lhe depois que venha de novo confiar à lua e ao Tejo as inspirações de Lamartine.

E a formosa menina, rubra de despeito levantou-se, e tomou o braço do seu interlocutor, que ficara fulminado por aquela inesperada apóstrofe, e que debalde tentava balbuciar umas palavras sem nexo.

Frederico era um moço esbelto de vinte e dois para vinte e três anos, duma gentileza verdadeiramente notável, dum espírito inteligente e cultivado, duma bondade proverbial, mas também duma timidez invencível. D. Lucinda, a gentil senhora que entra neste momento na sala, pudera apreciar as brilhantes qualidades de Frederico, ouvindo-o conversar desembaraçadamente em uma reunião íntima, onde o seu acanhamento não tivera motivo para se revelar. Deslumbrada por esse esplendido conjunto de predicados, Lucinda tentara fixar a atenção do gentil moço, e a coquete conseguira-o em breve, mas, quando se tratara de dar o passo decisivo, manifestara-se toda a timidez do espírito virginal de Frederico. Era o seu primeiro amor, e só os tolos conseguem atravessar afoitamente essas colunas d’Hercules. Lucinda, experimentada nessas questões, compreendera primeiramente o embaraço do mancebo, e, lisonjeando-se com isso, entendera também que o devia auxiliar. Mas o que animaria qualquer outro, acanhou ainda mais, se me permutem o termo, a timidez desconfiada de Frederico. Se Lucinda fosse uma tímida menina, que corasse como ele corava, que tremesse como ele tremia, os olhos de ambos falariam tanto, as pálpebras mesmo, abaixando-se a um tempo, teriam uma linguagem tão eloqüente, que afinal os lábios ver-se-iam obrigados a traduzir em palavras esse mudo idioma. Porém, como podia suceder semelhante coisa, se o olhar ardente de Lucinda deslumbrava aquele em quem se fitava, se a sua tranqüila superioridade assustava Frederico, e o fazia tremer a cada instante, com o receio de desempenhar o papel de criança ridícula diante dessa esplêndida mulher?!

O ridículo, que espera nos dois extremos da estrada da vida tanto os que avançam como fanfarrões, como os que recuam com demasiada fraqueza, assustando Frederico que temia vêlo diante de si, assaltava-o quando ele para lhe fugir retrogradava sem ter ânimo para obedecer ao fervido olhar, que lhe dizia: “Avante”. O pobre rapaz, vendo assim de súbito desfeitos em pó os seus planos estratégicos, preferiria um abismo abrindo-se-lhe debaixo dos pés a ouvir as palavras friamente zombeteiras de Lucinda.

Entretanto o baile findara, e os lisbonenses preparavam-se para atravessar o Tejo. Frederico e a família de Lucinda eram as únicas pessoas, que tinham de empreender essa excursão. Era pouco mais de uma hora quando Lucinda e sua mãe puseram as capas, e foram arrancar às delicias do whist o patriarca da tribo, que saiu furioso de ter de se embrulhar em dez mantas e de ter perdido dez rob consecutivos. Frederico, depois da cena do caramanchão, bem desejaria ficar, mas a mãe de Lucinda, sabendo que era ele o único dos cavalheiros presentes que regressava a Lisboa, reclamou sem cerimônia o auxílio do seu braço para descer a íngreme calçada. Assim, Frederico viu-se obrigado a pegar no chapéu, e a seguir, suportando o peso da sua volumosa braceira, o pai de Lucinda, que se apoderara desta para lhe explicar durante o caminho as infernais combinações que tinham dado em resultado a derrota memorável dessa noite, verdadeiro Waterloo nos seus anais de jogador de whist.

As circunstâncias conspiravam-se todas contra Frederico. Chegados ao cais de Cacilhas, notou-se que apenas um barco se balouçava nas águas negras, que batiam murmurando nos degraus da escadaria. Bradou-se pelos barqueiros, que dormiam no fundo do bote, e, quando estes se levantaram, reconheceu-se que eram os remadores de Frederico. Os venerandos progenitores de Lucinda protestaram, em alta voz, contra a insolência dos seus barqueiros, que os tinham posto inconsideradamente na dolorosa necessidade de atravessarem o Tejo a nado, ou de dormirem ao relento nas pedras úmidas do cais. Frederico ofereceu imediatamente o seu bote. Não era possível proceder de outro modo. Por infelicidade o barco era vasto bastante para que todos coubessem. Frederico viu-se obrigado a entrar e a sentar-se defronte de Lucinda. O pobre rapaz nem ousava levantar os olhos. Desfraldou-se a vela, e o barco resvalou silenciosamente à flor das águas.

Os dois velhos tinham-se sentado na popa do barco. O vento, sem ser forte, era suficiente para enfunar a vela e para dar ao bote um leve balanço, que foi suavemente acalentando os dois esposos. Estes principiaram a bocejar alternadamente; depois foram deixando pender as cabeças até que tocaram quase nos joelhos. Levantaram-se a um tempo, e olharam espantados. com os olhos meio abertos, para o céu azul. Depois os olhos fecharam-se de todo. e os cumprimentos recomeçaram. Pareciam dois mandarins d’étagére. Frederico e Lucinda a custo sofreavam o riso, e trocavam entre si olhares de inteligência, que pressagiavam uma reconciliação. Os dois velhos resmungavam palavras ininteligíveis, e recostavam a cabeça para trás, de forma que a cabeça, em vez de lhes descair de popa a proa, descaía-lhes de bombordo a estibordo, e de estibordo a bombordo, movimento bem combinado, que produziu um abalroamento, que os despertou a ambos.

-Senhor Azevedo, bradou a matrona indignada, não tem vergonha de vir a dormir no bote? Já me estragou as flores da cabeça.

- Senhora D. Leocádia, respondeu o velho com dignidade, veja se dorme com mais cautela para não amarrotar o chapéu das pessoas, que vão acordadas a cismar nos seus negócios. Estas apóstrofes promoveram a explosão das gargalhadas, já muito reprimidas, de Frederico e de Lucinda. O velho mirou-os com espanto, embrulhou-se mais na manta, encostou-se para trás e principiou a ressonar.

-Este Azevedo sempre foi assim, disse a velha esposa fazendo coro com os dois, dorme em toda a parte... Como ele ressona!

E dizendo isto, a boa senhora olhou com desprezo para seu marido, deixou descair a cabeça, e entrou no dueto ressonando igualmente.

A brisa refrescara, e, enfunando a vela, fazendo tombar o barco para um lado. Os marinheiros pediram a Frederico que se fosse sentar junto de Lucinda.

Já vêem que o acaso continuava a fazer das suas.

Foram calados um instante, com os olhos fitos na lua, que desdobrava a sua plácida luz pelo céu azulado e pelas águas do rio. A face formosa da antiga Diana refletia-se no espelho vacilante das ondas encrespadas pela vibração. Ouvia-se o chapinhar das águas batendo no costado de uma fragata imóvel; um bote de remos passou rente do barco onde iam os nossos heróis. Os remos, sulcando a água, erguendo-se e recaindo de novo, pareciam arrancar do seio do rio as palhetas luminosas com que o matizava a lua, e que depois lhe devolviam numa chuva de alvas pérolas. Um marinheiro, recostado ou antes deitado à popa, com os olhos vagamente embebidos no firmamento, dedilhava uma guitarra, e fazia-lhe vibrar nas cordas algumas dessas melancólicas toadas das nossas canções populares. Muito tempo a corda fremente da guitarra enviou de longe aos ouvidos de Frederico e de Lucinda, a sua melodia toda impregnada numa vaga tristeza, e expirou ao longe nuns quebros de indizível suavidade. Frederico suspirou.

-Pensa nos seus amores? perguntou Lucinda sorrindo.
-Amores, balbuciou ele, como, se os não tenho?
-Não os tem? Quem não tem amores aos vinte e dois anos?
-Eu que sou um deserdado da fortuna, eu para quem a natureza, mãe benéfica de todos, sempre se tem mostrado implacável madrasta, eu para quem as flores não tem aroma, nem luz brilhante o sol, nem suavidade melancólica o luar.

-Oh! meu Deus, exclamou Lucinda, quererá imitar esses Obermans da moda, que se declaram céticos, quando ainda não tiveram nem sequer uma ilusão, quanto mais as decepções que alardeiam?

-Não, minha senhora, tornou Frederico, tenho muitos ridículos, mas desse livrou-me Deus. Porém sou um destes entes malfadados, que nunca ousam levar aos lábios a taça que se lhes apresenta cheia a trasbordar; uma dessas abelhas, a quem as rosas mostram o cálice entre aberto, e que volteiam em torno delas, sem ousarem ir delibar o seu mel na redoma flagrante que se lhes apresenta. Sou como Rousseau, deitando as cerejas no avental de mademoiselle Galley, sem ousar ver os lábios mais vermelhos do que os frutos, convidando-o e atraindo-o. E o que fez mademoiselle Galley ao desastrado filósofo? Voltou-lhe as costas, e foi zombar dele com as suas companheiras, deixando esse Tântalo de amor a amaldiçoar a sua falta de audácia. Esse riso argentino, que Rousseau ouviu talvez trepado ainda na cerejeira, ouço-o eu a cada instante nos lábios, que poderiam matar com duas palavras meigas esta sede que me devora.

-E essas duas palavras ainda ninguém as proferiu?
-Ninguém, respondeu Frederico suspirando.
-E com tudo, tornou Lucinda, conheço eu uma pessoa em cujos lábios elas fremem.
-E quem é essa pessoa? perguntou ele ansioso.

Lucinda estacou. Decididamente o próprio selvagem Rousseau perceberia melhor.

-Alguém, cujo nome lhe não posso dizer.
-Oh! diga ao menos a primeira letra. Lucinda fez-se vermelha de cólera, e mordeu os lábios impaciente. Súbito uma idéia qualquer, travessa de certo, iluminou-lhe o espírito, porque os lábios, que mordera para ocultar o despeito, mordeu-os afinal para sufocar o riso. Depois respondeu com ar de misteriosa confidência:

-Diga-me; não passa freqüentes vezes pela rua de...?
-Por que? perguntou Frederico espantado
-E, levando os olhos baixos até ao meio do comprimento da rua, quando chega a este ponto não os levanta instintivamente, e não os crava numa varanda onde não há só flores nos vasos?

-Assevero-lhe, minha seu senhora... tornou Frederico estupefato a mais não poder ser.
-Oh! Eu sou discreta.
-Juro-lhe...
-Não jure, mas prometa-me apenas uma coisa.
-Qual é?
-Escolher-me para confidente dos seus primeiros amores.
-Mas, minha senhora... bradou Frederico, desesperado por ver fugir-lhe o momento que tanto ambicionara, e que julgara já tão próximo.

-Silêncio, respondeu Lucinda pondo-lhe a mão alva e tépida no braço, não vê que estamos em Lisboa?

Frederico não sabia se havia de beijar ou morder essa mão travessa, que lhe aproximava da boca a taça do filtro suave do amor, para lho furtar depois aos lábios calcinados. Afinal não fez nem uma nem outra cousa.

Mas efetivamente estavam em Lisboa. Nas águas negras do Tejo, aqui e ali ainda prateadas por um raio da lua, que se insinuava por entre a intrincada floresta dos mastros das embarcações, ondeava o reflexo trêmulo dos candeeiros do gás. Ao choque do barco parando de súbito, acordaram estremunhados os progenitores de Lucinda. Frederico ainda esperava ao menos poder sentir o doce peso da gentil menina, ajudando-a a saltar em terra. Mas a volumosa mamã ofereceu-lhe o braço, e em medos e tremores reteve-o tempo bastante, para que Lucinda, ligeira como uma gazela, saltasse para o cais, pousando apenas ao de leve os dedos finos e alvos no braço dum dos remeiros.

Frederico despediu-se pouco amavelmente dos seus companheiros de viagem, e teve vontade de mandar passear Lucinda, quando esta lhe disse ao ouvido:

-Não se esqueça do que prometeu.

É verdade que o pobre rapaz, voltando a cara com um gesto de amuo, não pode ver o longo olhar, apenas levemente malicioso, com que Lucinda o seguia.

Na véspera desse dia, em que se passara a cena que narramos recebera Lucinda duma sua amiga de colégio a seguinte carta:
-----------------------------------------------
Minha querida amiga

Que saudades eu tenho do nosso tempo de colégio! daqueles bons serões que passávamos juntas, quando todas já estavam adormecidas, enquanto nós deixávamos divagar a nossa imaginação por todos os assuntos, por todos os sonhos, por todas as fantasias deste mundo! como eu tenho impressa na memória a tua palavra eloqüente e colorida, e a audácia com que tu, com a superioridade da tua inteligência, julgavas tudo e te arrojavas aos devaneios mais longos, chegando a assustares-me a mim, pobre criança, tímida e frágil, que não ousava seguir-te nos teus vôos, e que ficava, pálida, vendo-te pairar por esses espaços desconhecidos, e contemplando na chama da tua pupila um reflexo do fogo íntimo, que te devorava.

Creio que foi mesmo essa diferença de gênio, que tornou mais forte a nossa ligação. Tu consagraste à pobre órfã a amizade protetora das mães, eu tive por ti a veneração e os extremos de filha. Eras o roble e eu o vime, ou antes a hera que me enroscava a ti.

Mais velha do que eu, saíste primeiro do colégio, e deixaste a pobre criança, isolada no meio de companheiras com as quais sempre me ligara pouco. Ah! como o colégio então me pareceu triste e sombrio, como a regente me pareceu insuportável, como olhei com raiva e frenesi para os altos muros do jardim, e que ódio tive à hora do recreio, outrora tão alegre, porque eu, fugindo às brincadeiras das meninas mais novas, tu às frívolas conversações das da tua idade, procuravam-nos uma à outra, e passávamos horas infinitas a contarmos as nossas impressões, e a explicarmos o sentido dos sonhos da nossa noite..

Depois, os meus dias de júbilo foram aqueles em que recebia as luas cartas: metia-as no seio, e esperava com impaciência a hora de descer ao jardim para as poder ler à vontade, longe do frívolo ruído dos jogos das educandas. Assim que ressoavam na pêndula as bem-aventuradas vibrações, aí descia eu toda jubilosa a escada, e ia esconder-me naquele caramanchão tão nosso favorito, que ficava junto daquela fresta gradeada por onde às vezes espreitávamos os raros passeantes que atravessavam a nossa rua solitária, tu achando sempre no teu espírito fértil um epigrama para arrojares aos pobres homens que passavam sem suspeitarem a rápida análise a que num dado instante ficavam sujeitos, eu rindo, como uma louca, das tuas chistosas malícias.

Aí lia pois, as tuas cartas, daí te seguia nesse mundo que me pintavas tão belo, como o espaço imenso assusta a avezinha apenas emplumada, que lança a cabeça fora do ninho, e que segue em parte com inveja, em parte com receio os graciosos vôos que a mãe descreve nos ares, para a convidar a segui-la. Mas a fascinação do teu espírito vencia, como sempre, os receios do meu, e ficava com a tua carta nas mãos, pensando nos bailes, de que tu eras rainha, nos amores, que voltejavam em torno de ti, como as borboletas em torno da luz, e a que ti, incorrigível coquete, te comprazias tanto em requeimar as asas.

Daí resultou que esperei ansiosa, bem que timidamente, a minha saída do colégio, e que os prismas das tuas cartas me fizeram sonhar um mundo cor de rosa, que está bem longe, devo confessá-lo, da realidade tal como ela se me tem mostrado nos quinze dias que já passei fora do ninho da nossa infância.

Efetivamente minha tia deu a minha educação por acabada, e levou-me para a sua companhia, muito contra vontade, segundo me parece. Não porque ela me não tenha afeto e pelo contrário; mas minha tia, ótima senhora no fundo, tem um terrível sestro; aos cinqüenta anos quer ainda inspirar amor, e combate, com uma energia desesperada, as asserções da sua certidão de batismo. Ora, uma sobrinha de dezenove anos, filha duma sua irmã mais nova, é um terrível documento, que protesta contra os cabelos dum ébano artificial, e contra a rebocada lisura do rosto de minha tia.

Ah! que vida vai ser a minha, se não acho jeito de diminuir a minha idade, e de usar de novo fato curto. Minha tia, que ainda aspira dançar com suficiente ligeireza, e que não deseja entrar no número das suplentes das contradanças, que só se convidam quando falta algum par para fazer a quadrilha completa, não me leva aos bailes, porque são, diz ela, perigosos para as meninas da minha idade, até contigo mesma, perdoa-lhe, minha boa amiga, se não quer relacionar, dando para isso razões frívolas, mas sendo o verdadeiro motivo os teus vinte e cinco anos que não podem ficar bem à amiga de colégio duma menina tão nova como eu devo ser, segundo os meus cálculos.

Aqui vivo, pois, nesta da rua de... mais triste do que no colégio, depois da tua partida, sem chegar uma única vez à janela lendo, bordando, desenhando, ou conversando com o meu piano, enquanto minha tia, preparada, enfeitada e auxiliada por todos os cosméticos imagináveis, passa o tempo à janela, travando cem namoros por dia, e apresentando, da altura do seu quarto no segundo andar, a cuja varanda se coloca de preferência, um rosto juvenil, que ilude um ou outro passeante ocioso, que anda procurando pelas janelas quem lhe aceite as homenagens.

O que me consola um pouco da minha vida insípida é um grande jardim, cheio de sombra e de mistério, de flores e de aromas, onde passo as tardes, e onde muitas vezes me esqueço e me esquecem à noite, ficando eu largas horas cismando ao luar, e deixando-me às vezes surpreender pelos primeiros clarões da alvorada.

Aí tens a vida que eu passo, minha querida Lucinda; não achas que tenho razão para me lembrar com saudades do colégio? Escreve-me tu ao menos, já que minha tia se obstina em me ter reclusa, e em não me permitir a doce consolação de te ver e de te abraçar; escreve-me, porque só as tuas cartas me ajudarão a suportar o fastio desta existência.

Tua boa amiga
Adelaide.
----------------------------------------
Comparem os leitores o que nesta carta se diz com as indicações dadas a Frederico por Lucinda, e perceberão qual era a travessa idéia da maliciosa rapariga.

Renunciemos a descrever o despeito de Frederico, quando teve uma prova da completa indiferença de Lucinda no desprendimento com que ela se fazia intérprete dum outro amor. Depois folgou de ter encontrado um pretexto para desculpar consigo mesmo a sua desastrada timidez, e louvou-se de não ter avançado a ponto de se ver colocado numa posição ridícula com pessoa que a aproveitaria com tão boa vontade. A todos estes sentimentos, que primeiro lhe tumultuaram no cérebro, sucedeu o amor próprio ofendido. Pois que! dizia ele, é de mármore esta mulher? Está junto de mim naquela noite voluptuosa, toda impregnada de lânguidas emanações, de vagos murmúrios, de maviosíssimos fulgores, sente a minha respiração abrasada, crava os seus olhos nos meus, aperta as minhas mãos trementes, deixa-se embalar comigo, comigo como uma crioula na rede, pelo movimento lascivo das ondazinhas do Tejo, e nada disso a comove, e lhe faz perder por um instante ao menos, os seus hábitos de coquetterie? A própria Leonora Falconieri de Feuillet sentiria uma vaga impressão amorosa naquele bote que resvalava ao lume d’água, todo banhado de luar, abrindo no rio um sulco fosforescente e Lucinda, depois de me ter abrasado toda a noite com o fogo infernal das suas pupilas, acaba por me fazer friamente a confidência do amor duma das suas amigas? Oh! coquette.

Pois bem, continuava ele, hei de lhe fazer a vontade, hei de namorar essa mulher desconhecida, e será Lucinda a minha confidente? Oh! então, quando não tiver o receio do ridículo que acomete um pretendente desastrado, então serei audacioso, então falarei com eloqüência, então, far-lhe-ei sentir bem tudo o que ela perdeu, torturá-la-ei se não com os espinhos do ciúme, pelo menos com os da vaidade ferida, triunfarei... e talvez conseguirei dessa forma atraí-la e fasciná-la, como ela me fascinou a mim.”

E o modesto moço, acabando este longo monólogo, vestiu-se, alindou-se, e saiu com uns modos conquistadores, para passar pela rua de...

Logo no principio da rua ele ergueu a cabeça, e principiou a revistar as janelas; o coração pulsava-lhe com violência, mas animou-se com a idéia de que se não veria obrigado a dizer uma só palavra, e um olhar não era coisa que muito custasse à sua timidez rebelde.

Efetivamente no sitio designado estava uma senhora à janela. Frederico fitou os olhos nela, e achou-a linda, apesar da distância ou por causa dela; voltou a cabeça depois de passar; e encontrou de novo os olhos da galante menina, que logo os desviou o mais depressa que pode, mas sem que pudesse evitar o ter sido surpreendida em flagrante delito. Frederico afastou-se triunfantemente.

Uns poucos de dias se repetiu esta manobra, sem que Frederico ousasse passar dessas demonstrações visuais, mas continuando com intrepidez o seu passeio diário. Afinal chegou a ocasião de ir contar a Lucinda os seus novos amores. A Sra D. Leocádia d’Azevedo encontrou-o na rua, e convidou-o para jantar.

À tarde desceram todos ao jardim, que tinha muro para a rua, e um pequeno mirante cercado de madressilvas. Os convidados dispersaram-se em grupos, e Lucinda e Frederico acharam-se sós no mirante.

A vista que dali se gozava era linda; via se uma parte da cidade baixa, e do lado do Ocidente a vista estendia-se desassombrada sobre uma porção do rio, que se prolongava até ao extremo horizonte.

Era ao cair da tarde; o sol atufava-se nas águas, e iluminava com um resplendor de ouro e púrpura o horizonte, semeando de áureas palhetas o Tejo, rodeando com um nimbo luminoso o vulto distante da Ajuda, e mais além uma sombra tênue, uma espécie de vapor doirado, que, pela posição, devia ser vago perfil da torre de Belém.

A brisa fresca da tarde, ondeando os cabelos de Lucinda, e meneando brandamente os ramos e as folhas da madressilva, enchia os ares de perfumes. Frederico cismava.

-Esqueceu-se da sua promessa? perguntou Lucinda.
-Ainda se lembra dela? tornou Frederico amargamente.

Um relâmpago de alegria iluminou os olhos da gentil senhora.

-Se lembro, tornou ela, sou uma credora inflexível.
-Pois bem, respondeu Frederico, corando muito, e fazendo um esforço sobre si mesmo deixe-me agradecer-lhe o ter feito a felicidade da minha existência.
-Sim? tornou ela ironicamente. Então ama-a loucamente?
-Se a amo! tornou ele cravando os olhos ardentes na formosa menina que tinha diante de si, tanto que nem eu supunha que se podia amar assim. Oh! mas é que também é uma criatura celestial, tão bela que os anjos a invejam.

Lucinda mal podia sofrear o riso.

-E essa beleza, é provavelmente como a de Marília, tornou ela, para a pintarem não bastam as tintas da terra, são necessárias as do céu. Por conseguinte nem ouso pedir-lhe que ma
descreva.

-Por que? Não a conhece! perguntou Frederico espantado. Lucinda embaraçou-se, mas prontamente recuperou o sangue-frio.

-Somos amigas íntimas, como sabe; contudo não desgostaria de poder apreciar o seu talento de pintor.

Frederico fitou os olhos nos dela, como se tentasse prescrutar o seu pensamento. Lucinda desviou os seus.

Uma idéia, que ele julgou louca, passou pela mente de Frederico.

- Vou tentar, disse o tímido rapaz, com mais animação do que a que lhe era habitual, e cravando pela primeira vez com firmeza e ardor os seus olhos no rosto de Lucinda; e para me ser mais fácil a tarefa, permita-me que lhe narre como e onde me senti verdadeiramente deslumbrado pela sua rara beleza, e como ousei dizer-lhe com os meus olhos o amor imenso que me enchia a alma. Era à hora do sol posto; ela estava com a face encostada à mão e como V. Exa. neste momento. Nos seus olhos negros parecia flutuar a vaga tristeza do crepúsculo; os cabelos, arfando suavemente com a brisa, enquadravam-lhe uma fronte alva e límpida, tão límpida, que de vez em quando parecia que nessa testa inundada de luz se via passar a vaga sombra do pensamento. Rodeava-se de flores, que formavam ao seu doce vulto uma profunda moldura. Ao vê-la assim, melancólica como o anjo da tarde, suave e meiga, como a anjo dos celestes amores, pensei que a ventura suprema seria viver a seus pés, e enviando-lhe a minha alma num olhar, votei-lhe um afeto, profundo e ardente como os seus negros olhos. Lucinda ouvia-o arrebatada; fora isso mesmo o que ela desejara, fora isso mesmo o que ela tivera em vista acenando-lhe com essa miragem de amor da velha tia, amor nada perigoso, porque, da mesma forma que a miragem, de longe podia fascinar, mas de perto conhecia-se o areal... dos cinqüenta anos.

Se Frederico se deixasse arrastar pelo demônio da inspiração, e levantasse um pouco mais o véu de gaze com que encobrira a sua declaração, Lucinda poderia auxiliá-lo, confessando-lhe o seu ardil, e quebrando dessa forma o gelo. Mas infelizmente a maliciosa rapariga, um instante docemente perturbada pela eloqüência de Frederico, pensou de súbito, quando ele findou o seu trecho, na fictícia inspiradora desse memorável discurso, e deu aos seus lábios uma expressão de riso reprimido, que bastou para que o espírito sensitivo de Frederico logo se retraísse, e tremesse de ter avançado tanto.

Lucinda percebeu o erro, e quis remediá-lo. Já era tarde. Frederico retirou-se desgostoso. Ela, vendo-o partir, bateu o pé com despeito. A coquete ia-se enleando nas suas próprias redes.

- É necessário que esta comédia acabe, murmurou ela com as lágrimas nos olhos, ainda que eu tenha de me lançar nos seus braços, como uma doida; porque sinto agora essa comoção desconhecida, de que tanto me falavam, e de que eu tanto zombava. Amo. Não conhecem os leitores o caráter de Lucinda, se supuseram que ela se importasse um instante só com o desejo que a tia de Adelaide manifestara de não se relacionar com a amiga de colégio de sua sobrinha. Foi ela mesma que tomou a iniciativa; apresentou-se em casa da sua antiga companheira, não pareceu reparar na frieza da dona da casa, lisonjeou-a na sua mania de combater a velhice, declarou alto e bom som que Adelaide era no colégio uma criancinha, de que ela fora não a companheira, mas a protetora, a segunda mãe. Esteve quase dizendo que a sua amiguinha entrara para o colégio ainda de mama. Estas asserções iluminaram num momento o rosto da tia, dissiparam como por encanto a sua frieza, e deram a Lucinda o lugar de amiga intima. Esta, afetava sempre tratar D. Mariana com familiaridade, fazia-lhe confidencias imagináveis, e pedia-lhe igual franqueza. A boa senhora caiu no laço, e, corando pudicamente, principiou a narrar aventuras não menos supostas, porque os namoros que obtinha desfaziam-se sempre à luz traidora do dia, quando o desgraçado pretendente, fazendo sentinela à porta da casa, via a dois passos de distância os encantos que o haviam fascinado da altura dum segundo andar.

D. Mariana devia ter sido formosíssima; e dessa formosura extinta conservava olhos, onde ainda se não apagara de todo o sacro fogo. Eram eles o núcleo em torno do qual se agrupavam os feitiços artificiais. Notava, contudo, Lucinda, uma extraordinária tristeza em Adelaide. Preocupada e melancólica, a loira criança, em vez de procurar a companhia da sua amiga de colégio, evitava-a pelo contrário, e parecia estar cada vez mais afeiçoada à solidão do seu jardim. Debalde Lucinda tentava penetrar o segredo desta preocupação. Adelaide era impenetrável. Lucinda, devemos confessá-lo, não insistiu muito, e, pensando unicamente no meio de deslindar a comédia, cuja teia imprudentemente urdira, depois de cismar alguns instantes na extraordinária melancolia da sua amiga, não fez mais esforços para penetrar o mistério.

Os seus amores é que progrediam maravilhosamente. Frederico falava-lhe do seu amor tão fervidamente, acompanhava as suas confidências com tão ardentes olhares, que não se podia duvidar que, apesar de toda a sua timidez, um levíssimo impulso bastava para quebrar os cordões da máscara, e transformar numa declaração franca e discreta, as confissões que se trocavam enigmaticamente, por meio dessas bem aventuradas confidências e que se comentavam e explicavam pelo fogo das pupilas.

Contudo o momento decisivo aproximava-se, estava já por tal forma retesada a corda do arco, que por muito que Frederico hesitasse em despedir a flecha inflamada, ela partiria espontaneamente, num instante de exaltação. Vinte vezes Lucinda julgara que esse momento cobiçado era chegado enfim, vinte vezes vira Frederico apertar-lhe a mão convulso, e mover os lábios como se fosse a proferir a palavra que rasgaria o véu transparente, que encobria esses amores, e vinte vezes a mão lhe descaíra gélida, e vinte vezes os lábios se tinham cerrado sem balbuciarem um som. E contudo não era a timidez de Frederico o obstáculo; nesses instantes estava ele nesse estado de ebriedade doida, em que se não pensa, em que os sentidos, o espírito, a imaginação, tudo se acha exaltado a tal ponto que o mais tímido se arroja a audácias que depois o fazem estremecer. E como esse instante rápido, em que nas batalhas o fumo da pólvora, o troar da artilharia, os gritos de vitória, o clangor das trombetas exaltam os próprios covardes e os arrojam, momentaneamente intrépidos, ao centro das fileiras inimigas. Lucinda estava também demasiadamente comovida para que pudesse gelar esse entusiasmo fervente com um sorriso irônico, uma palavra mordaz. Mas parecia que uma voz desconhecida, uma sombra fatal vinha murmurar ao ouvido de Frederico algumas palavras sinistras, e, remorso ou receio, Frederico ficava melancólico e sombrio, como os convivas de Lucrecia Bórgia, ouvindo no meio dos seus cantos bachicos ressoarem as notas fúnebres do coro dos monges.

Lucinda não percebia esta hesitação de nova espécie, e receando vagamente um novo perigo, resolvera dar à comédia o seu desenlace.

Duas palavras de Frederico decidiram-na de todo.

Um dia, depois de terem feito mil floreados sobre o amor a propósito ou antes a despropósito de intangível, da vaporosa Laura daquele Petrarca inconstante, Frederico deixou pender a fronte melancólica, e murmurou:

-Pobre criança!

Lucinda ia desatando a rir; a frase “pobre criança” aplicada à qüinquagenária tia era dum efeito
cômico, ainda realçado pelo tom sentimental do romântico mancebo.

Mas, mesmo tempo, Lucinda sentiu um inexprimível júbilo. Essa frase queria dizer “Pobre vítima, que julgas ser o alvo dos meus pensamentos, e que não és mais do que o escudo, que me serve para conquistar, com mais resguardo, o amor da mulher a quem adoro”. Assim, essas suas palavras eram uma confissão explicita do que se passava na sua alma; encerravam em si a chave do enigma.

Porém, Lucinda não desejava que esse sentimento de compaixão soasse indefinidamente no
peito de Frederico Nunes; julgara que apesar da distância, o seu namorado chegasse a tomar a
sério o amor de D. Mariana. A pretensiosa ia podia parecer uma galante senhora, bem
conservada nunca uma formosa rapariga. Lucinda sempre julgara Frederico cúmplice do seu
amoroso artifício. Vira que ele precisava dum meio, por mais tênue que fosse, para falar sem
receio, proporcionar-lhe a ocasião de o obter. Se ele a aceitasse, é porque realmente a amava.
Assim sucedeu, e como, nos termos a que tinham chegado, o véu, além de ser inútil, era
também prejudicial, tratou de o dilacerar.

Para isso dirigiu-se a D. Mariana, e disse-lhe que um mancebo elegante que nutria por dia a
mais violenta paixão, que se julgava correspondido, se podia acreditar nos ternos olhares com
que da janela o favorecera, sabendo a amizade que as ligava, e sendo da intimidade de
Lucinda, se dirigira a esta para que obtivesse da sua amiga uma entrevista, em que lhe pudesse
declarar o seu afeto e o desejo que alimentava de o ver coroado por um feliz himeneu. D.
Mariana caiu das nuvens. Tinha distribuído os seus olhares ternos com tanta prodigalidade que
não sabia qual dos felizes mortais contemplados na distribuição, queria dar ao crepúsculo da
sua vida uma ventura raras vezes reservada para essa idade, a dum casamento por amor.

Escusamos de dizer que, depois da resistência pudica e indispensável, D. Mariana consentiu na
entrevista. Marcou-se dia, ou antes noite, porque D. Mariana, alegando a maledicência das
vizinhas, mas na realidade para não ter que afrontar senão a luz mentirosa das velas, exigiu
obstinadamente que fosse a essa hora. Convencionou-se que Lucinda daria a chave do jardim
ao aventuroso namorado, e que passaria aquela noite em sua casa para entreter Adelaide, e
velar assim para que não fosse perturbada a amorosa entrevista.

Combinado por este lado o plano estratégico, Lucinda dirigiu-se a Frederico. Disse-lhe que a
sua amiga desejava ardentemente falar-lhe, que o encarregava de lhe dizer que era tão urgente
a necessidade duma entrevista que a obrigava a por de parte a modéstia feminina, e a dirigir-se
a ele, fiando-se na sua honra de cavalheiro. Demais uma senhora respeitável assistirá à
entrevista. Concluiu dizendo-lhe que era na seguinte noite que devia realizar-se a entrevista,
ensinando-lhe a topografia da casa e dando-lhe a chave do jardim.

Lucinda dissera isto com voz artisticamente suspensa, como se debalde tentasse reprimir os soluços. Estava preparando uma explosão. Podia ser esse o instante supremo. Frederico devia talvez cair-lhe aos pés, e o susto que teria, ele o tímido moço, de ter uma entrevista com uma mulher, apressaria o desenlace. Teria nesse caso a coragem do medo.

Efetivamente era esse o caminho que ia tomando as coisas. No primeiro ímpeto Frederico ia arrojar-se aos pés de Lucinda, atirando para longe de si a chave do jardim. Mas a reflexão sobreveio, e o estranho rapaz apanhou a chave, e passando a mão pela testa, disse com voz firme:

-Irei. É um dever de honra.

Lucinda amaldiçoou os escrúpulos do seu namorado. O destino obstinava-se; a comédia tinha de se representar até ao fim.

Chegou finalmente o dia marcado e esperado com impaciência por D. Mariana. Lucinda andava perturbada, e tanto que nem deu por um redobramento de tristeza que se tornava bem visível no rosto da sua amiga Adelaide, de quem ela se esquecia tanto. Adelaide primeiro fugira a escolhe-la para confidente, porque bem conhecia a sua índole sarcástica, e não queria expor os pobres passarinhos dos seus sonhos a terem a asa magoada por algum epigrama de Lucinda.

Mas pouco a pouco Adelaide sentiu-se despeitada, por ver que à sua boa amiga era tão completamente indiferente o estado do seu espírito. Adelaide, vendo isto, julgou-se a pessoa mais infeliz deste mundo; tinha na vida, negro o presente, o passado, e o futuro; o presente ensombrava-lho a ciosa preocupação da sua vida, o passado, onde ela se engolfava com júbilo quando a realidade da existência a torturava, enegrecera também com a indiferença de Lucinda, o futuro, esse devaneara-o ela bem dourado, e bem cheio de luz, um sonho rápido e fragrante atravessara-lhe, e perfumara-lhe o viver... mas esvaíra-se bem ligeiro como sonho que era, tornando apenas com a sua luz fugitiva mais espessas as trevas, que voltaram de novo a enlutar-lhe a mocidade.

A amizade, que votava à sua companheira de colégio, e a profunda tristeza que a salteara, venceriam a resolução em que estava de conservar secreto tudo o que se passava no seu espírito, e o receio que tinha dos sarcasmos de Lucinda, se a indiferença desta não a ferisse mais do que todos os seus motejos. Mas Lucinda andava preocupada, Lucinda nem reparava na palidez da sua amiga. Vir ela passar um dia a sua casa, prometer ficar à noite; e não lhe dirigir durante esse tempo todo, mais de quatro ou cinco palavras, era uma coisa que a pobre Adelaidezinha não podia perceber, e ainda menos, a intimidade súbita que se estabelecera entre sua tia e a sua amiga.

Nesse dia andou aquela toda azafamada a enfeitar-se, a pintar-se, a lustrar o cabelo, a dispor coquetemente a sala de visitas; Lucinda ajudava-a neste trabalho, e trocava com ela em voz baixa palavras misteriosas. Perguntou Adelaide, espantada de ver tantos preparativos, se esperava alguém nessa noite, recebeu uma resposta seca das duas senhoras e a pobre menina, sufocada em soluços, e não podendo conter as lágrimas, refugiou-se, levando um livro, no seu caramanchão favorito. Aí desafogou, derramou prantos copiosos, nomeou-se, por decreto próprio, a mais infeliz de todas as mulheres, e pensou que estava abandonada por todos, e que, órfã desde a infância, era destino seu caminhar solitária no mundo.

Entretanto, descia a noite, e dia não pensava em voltar para casa. Lucinda, vagamente inquieta, não se tirava da janela. Apesar das palavras que Frederico dissera, ao receber a chave do jardim, Lucinda conhecia bastante a sua timidez orgânica (se assim podemos dizer) para supor que ele não ousaria nunca transpor o limiar da porta. Embebida nesses pensamentos, esquecera-se completamente de Adelaide, e do encargo que recebera de a entreter, enquanto durasse a entrevista. D. Mariana, enebriada por aquela inesperada aventura, colocava as velas de modo, que se conservasse na sala a tíbia luz, aconselhada por Garrett, a penumbra tão útil aos amantes, e duplamente útil, a quem só dispõe desse recurso para combater, com mais ou menos vantagem, os inconvenientes duma certidão de batismo, que já podia entrar na classe honrosa dos documentos históricos.

Lucinda, encostada à janela do seu quarto, cravava os olhos na escuridão, procurando distinguir o vulto elegante de Frederico. De vez em quando ia espreitar à porta da sala e ria-se. D. Mariana, sentada no canapé, vestida com o fato mais fresco e juvenil, esperava majestosamente a visita daquele a quem os seus encantos tinham rendido. Afinal, Lucinda viu um homem que se dirigia, envolto numa capa escura, para a porta do jardim. As pulsações febris do seu coração indicaram-lhe, mais depressa do que a vista que era esse o vulto de Frederico.

A noite estava negra; mas um candeeiro de gás, iluminando em cheio a porta do jardim, permitia a Lucinda seguir todos os movimentos de Frederico. Viu-o hesitar, meter a chave na fechadura, tirá-la e afastar-se. Lucinda sorriu-se.

-Deita-a por cima do muro, e foge, murmurou ela.

Mas enganava-se: Frederico pareceu tomar uma resolução definitiva, tornou rapidamente a meter a chave na fechadura, abriu a porta e entrou no jardim.

-Está predestinado, murmurou Lucinda afastando-se da janela. Os seus tolos escrúpulos obrigam-no a enterrar-se até à cintura no tremedal do ridículo. E depois quem sabe? Talvez depois de reconhecer a qüinquagenária formosura da Calipso que vai abandonar, o punge mais os remorsos.

E Lucinda desatou a rir. Mas a reflexão veio, e uma sombra de melancolia se lhe espalhou no semblante.

-Esta minha índole zombeteira, murmurou ela, há de ser sempre um obstáculo à minha felicidade. Devo fazer penitência. O ridículo, a que expus os dois atores da cena que se vai passar na sala, é enorme. Eu não o perdoava. Perdoá-lo-á Frederico? Perdoa de certo, perdoa e com que júbilo, em sabendo o motivo que me guiou! Mas não devo deixar passar uma noite sobre o seu ressentimento. Agora mesmo, agora ando esse D. Quixote de donzelas cinqüentonas estar mal-ferido da sua justa cortês, farei como Altisidora, ousarei pôr de parte o pudor feminino para lhe dizer “Amo-te” e para o consolar com essa palavra só do encantamento da nova Dulcinéia.

E a travessa rapariga, desatando a rir, desceu a escada que ia ter ao jardim.

Não havia ainda luar como dissemos, porém, enquanto não surgia a rainha da noite no seu carro triunfal de madre-pérola, as estrelas cintilavam com vivíssima luz no céu azul, e insinuavam os seus raios d’ouro pálido por entre a folhagem das árvores, que a brisa meneava.

Lucinda esteve alguns instantes cismando tristemente. A coquette lamentava talvez o ter-se enleado, para conseguir o seu fim, nesse tão complicado enredo, que afinal a nada remediara, porque se via obrigada a dar o primeiro passo, exatamente como se não tivesse ideado tantas combinações maquiavélicas para obrigar esse tímido César, que podia chegar, ver e vencer, a passar o Rubicão.

Nisto um vulto de homem apareceu, vindo do lado da habitação, cosendo-se com os troncos d'árvores, mas fugindo ligeiramente. Devia ser Frederico.

Lucinda avançou para ele, com o coração a pulsar-lhe violentamente.

-Frederico! balbuciou ela.

O homem parou.

Sou eu, sou Lucinda, continuou a ousada menina nesse momento mais tímida do que ele, eu que venho expiar a minha culpa, e fazer-lhe a confissão que me absolve. Sim di-lo-ei, sem temer que me acusem de imodesta: “Amo-o”.

E as suas mãos procuravam as de Frederico. Mas coisa notável, ou mãos deste se lhe esquivavam, ou D. Mariana, arranjando uma variante à mulher de Putifar, em vez de lhe arrancar a capa, lhe arrancara as mãos.

Mas quando Lucinda passava do espanto à cólera, recebeu um impulso violento que a fez ir, cambaleando, segurar-se a um ramo de jasmineiro, e ouviu uma voz grosseira e avinhada, que lhe dizia;

-Você, além de ser descarada, é ladra também? Dize-me ternuras, minha Filis, mas larga os tímidos voláteis.

Lucinda soltou um grito terrível, e fugiu como louca na direção de casa. A esse grito somaram-se passos precipitados, que vinham do fundo do jardim. Um outro homem lançou-se às goelas do interlocutor de Lucinda, e uma outra voz juvenil de senhora começou a bradar por socorro.

A este barulho correram os criados e destrancaram-se as portas, o jardim inundou-se de luz. D. Mariana apareceu com esplendida toilette à porta de casa, o causador deste tumulto fugiu por cima do muro, deixando os seus despojos nas mãos do seu contendor, e Lucinda, que ficara ofegante à sombra de uma alta figueira que se aferrava ao muro, pode ver, com doloroso espanto, a seguinte cena.

Frederico vitorioso, mas vermelho de cólera e vergonha, tinha nas mãos, como troféus da sua glória, duas galinhas. A pouca distância estava Adelaide escondendo o rosto nas mãos. D. Mariana ficara como que petrificada, os criados riam e segredavam.

Voltemos agora ao instante em que vimos Frederico desaparecer no jardim.

Os cálculos de Lucinda pecavam pela base. A autora deste enredo não podia acostumar-se a considerar Adelaide,que tinha menos seis anos do que ela, como uma mulher capaz de amar e de ser amada, não suspeitara que por baixo da varanda do segundo andar, onde estava Mariana, havia uma janela de peitos, que nessa janela, por maior que fosse a reclusão em que Adelaide vivesse, ia esta espairecer por alguns instantes, que seria exatamente numa dessas ocasiões que Frederico passaria, e que o vulto elegante e nobre deste moço não produziria menos impressão na criança de dezenove anos, do que produzira na mulher de vinte e cinco.

Frederico amava realmente Lucinda, e aproveitara com avidez a ocasião que se lhe oferecia de vencer a sua timidez, e da ter com a esplendida coquette essas longas conversações de amor, que nunca ousaria encetar se esse pretexto se lhe não proporcionasse. Mas a suave figura de Adelaide não deixara de lhe fazer impressão, e a tristeza que principiava a ver na fisionomia dela, à medida que os dias iam correndo, sem que essa troca de olhares tivesse resultados, causara-lhe um vago remorso.

Parecia-lhe que essa formosa menina merecia mais do que servir de pretexto à poesia, de que era outra o objeto verdadeiro; parecia-lhe que ele cometia um crime, povoando de sonhos de ouro aquela juvenil imaginação, para depois só os esmagar com a massa brutal do desdém.

Portanto aceitara a entrevista, como se aceita o cálice da amargura, que um dever nobre e elevado nos impõe a obrigação de bebermos. Queria falar com Adelaide, confessar-lhe tudo, mostrar-lhe uma franqueza tal, humilhar-se tanto, que, senão lhe pudesse amortecer a dor, lhe lisonjeasse pelo menos o amor próprio e o impedisse de se ferir no doloroso espinho, que lhe ia fazer brotar na tenra haste dessa namorada flor da fantasia. No mesmo dia da entrevista (era um domingo) entrava ele numa igreja. Acabava a missa, e no templo solitário estavam apenas duas mulheres, uma, elegante e airosa, parecia absorvida numa prece fervente, a outra, que era uma criada velha, mostrava impaciência visível de se retirar.

Finalmente a devota senhora ergueu-se, e os seus olhos encontraram os olhos de Frederico, que reconheceu com espanto a mulher, cuja imagem o perseguia como um remorso. Estava pálida, os olhos azuis lânguidos e tristes denunciavam lágrimas enxutas de pouco. Fitou um longo olhar em Frederico; este pálido e trêmulo curvou-se respeitosamente levando a mão ao coração, como se uma dor súbita o ferisse, e desviando os olhos dela, afastou-se rapidamente.

Nessa noite, como vimos, estava ele à porta do jardim. Entrou, e, apenas dera dez passos numa pequena alameda, encontrou um vulto feminino, que se dirigia vagarosamente para casa. À luz do candeeiro de gás, que iluminava uma pequena porção da alameda, os dois reconheceram-se. Adelaide recuou um passo, soltou um pequeno grito.

- O senhor aqui! bradou ela com voz que debalde procurava tornar firme e austera. Ah! percebo, continuou ela como que ferida por uma idéia, e desatando a chorar, julga talvez que sou uma dessas mulheres levianas, com as quais basta empregar a audácia...

Não pôde dizer mais. Os soluços sufocaram-na. Audácia! Era a primeira vez que Frederico ouvia uma mulher dirigir-lhe semelhante acusação.

-Oh! juro-lhe que se engana; exclamou ele caindo-lhe aos pés e não reparando até no incompreensível espanto dessa mulher, que, segundo ele julgava, fosse a primeira a conceder-lhe um rendez-vous, a ninguém neste mundo merece mais respeito. Sou culpado, bem o sei, mas tudo vou resgatar corri a minha franqueza extrema e sem limites.

Adelaide não o ouvia; pendia-lhe desfalecida nos braços; não ousamos dizer que fosse completamente involuntário esse desfalecimento.

Frederico, consternado, olhou em torno de si, e viu um banco ao fundo da alameda. Segurando com o braço na cintura de Adelaide, foi-a levando para esse lado.

Adelaide caiu sentada no banco, e escondeu o rosto entre as mãos.

Frederico ficou silencioso junto dela. Sentia dele uma desconhecida perturbação. Aquele encontro inesperado, a solidão e a noite, o perfume das flores, combinado com essas vagas e voluptuosas emanações das noites de estio, esse vulto flexível e airoso de mulher que lhe pendera nos braços, tudo isso, sobrevindo dum modo tão imprevisto, o enebriava e entontecia.

Vendo aquela mulher tão linda, com o rosto banhado de lágrimas, o ânimo desfaleceu-lhe; como havia ele de dizer a essa criatura do céu, quando estava ele mesmo sujeito ao indizível magnetismo, à fascinação do seu olhar, como havia ele de lhe dizer: “Iludi-a, sacrifiquei-a a uma coquette, fiz do seu vulto gracioso e angélico, anteparo, que me resguardasse do fogo duns olhos audazes, que me fascinavam e me queimavam?”

Impossível! Completamente impossível!

Por isso Frederico pôde apenas balbuciar:

-Perdoa-me?...

Ela abaixou para ele os olhos, em que através das lágrimas transparecia um amor imenso, e com voz suave, tremente, doce e suavíssima, como vibração longínqua d'harpa eólia, murmurou:

- Perdoar-lhe! Como lhe não hei de perdoar, se por este momento ansiava, se o meu desejo era vê-lo ali onde está, e ouvir a sua voz? Oh! Meu Deus bem sei que me vai julgar mal, bem sei que o devia repelir, que devia estranhar o seu proceder? Que quer? Não tenho ânimo. Há tanto tempo que a ventura me foge, que não posso fugir-lhe agora que ela me surge de súbito! Depois eu sei que é cavalheiro, sei que me ama, li-o no seu olhar, e esse livro misterioso para nós outras mulheres não tem segredos. Confio na sua honra, e sequiosa há tanto desta suprema felicidade, ouso dizer-lhe: “Obrigada por ter vindo, obrigada por ter prevenido o meu secreto desejo, obrigada por ter lido nas minhas faces pálidas, nos meus olhos amortecidos a ansiedade que me devorava, por ter adivinhado que morria longe de si, como a flor, a que falta o orvalho, como a árvore a que falta o sol.”

Frederico, arrastado por esta eloqüência ardente, fascinadora, auxiliada por uma indescritível melodia de voz, pelos murmúrios dulcíssimos do jardim, sentia abrasar-se-lhe a imaginação, e o vulto de Lucinda, que por momentos flutuava diante dele, esvaía-se ao longe como um sonho ao romper da alvorada, e as palavras dela, que primeiro se haviam interposto ao seu ouvido, e à voz d'Adelaide, pareciam-lhe agora tão frias e descoradas, comparando-as com essas frases veementes, que lhe iam ferir o coração, porque do coração partiam!...

-Minha senhora... balbuciou ele.
- Oh! chame-me Adelaide, tornou ela, apertando-lhe as mãos com ímpeto febril, e diga-me o seu nome para que os meus sonhos o saibam, e mo venham repetir à noite, depois de eu adormecer balbuciando-o.
-Adelaide, que me enlouquece, bradou o mancebo com a cabeça em fogo.
-O seu nome, o seu nome!
-Frederico! murmurou ele e tão próximo dela, que os lábios de Adelaide pareceram aspirar essa palavra, assim que saiu da boca do seu amado, como se temesse que a surpreendesse a brisa. As árvores meneavam as suas folhudas copas impelidas pelo sopro da viração; a luz das estrelas tremia no céu azul, e os seus pálidos raios, coando-se por entre os ramos, iluminavam frouxamente a alva fronte de Adelaide.

Súbito soou um grito de mulher ansioso e dilacerante. Frederico levantou-se dum ímpeto, e correu para o sitio donde partia o brado; na escuridão topou um homem que fugia, estendeu as mãos a aferrou-se-lhe ao pescoço.

O resto sabem-no os leitores.
..............................................

D. Mariana, que, sentada no sofá, vestida, enfeitada, e colocada na sombra, debalde esperava a prometida visita, correu ao jardim, ouvindo o grito, e já lá encontrou os criados. Viu então o ladrão das galinhas fugir por cima do muro, deixando os seus despojos no campo de batalha, Frederico empunhando os voláteis, e junto dele Adelaide.

A tia ficou fula de cólera, notando que sua sobrinha estava num rendez-vous, enquanto ela esperava debalde o seu. Era possível mesmo que os dois não fizessem senão um.

-O que é isto? bradou ela. A menina com um homem no quintal!
-Minha senhora, disse Frederico abandonando as galinhas, confesso que fomos culpados ocultando a V. Exa os nossos amores, mas estamos a tempo de reparar essa culpa, porque tenho a honra de pedir a V. Exa a mão de sua sobrinha.

-O lugar é impróprio bastante, respondeu secamente D. Mariana, queira portanto sair. E a menina recolha-se ao seu quarto e seja mais prudente.

Debalde a pobre tia pedia explicações a Lucinda. Esta furiosa declarou-lhe que nada percebia, e no dia seguinte retirou-se para sua casa.

Daí a quinze dias recebia uma carta de Adelaide, a qual, como podem supor, ignorava tudo o que se passara.

A carta dizia o seguinte:

Minha boa amiga.
Caso-me daqui a um mês. Não podes imaginar como sou feliz. Quero falar contigo muito, muito e muito
.”

Lucinda rasgou a carta, e pisou-a aos pés com lágrimas de raiva. Ao outro dia tanto instou com seu pai, tão doente disse que estava que o resolveu, apesar da extrema repugnância da Sra D. Leocádia em deixar Lisboa, a irem passar o resto do verão numa quinta que possuíam no Ribatejo.

Fontes:
Revista CD Rom 156. Biblioteca Eletrônica.
Ceramica = http://www.oficinaceramica.com

Nenhum comentário: