Sucesso em Hollywood depende menos de talento e mais de estar no lugar certo na hora certa, dizia William Henry Pratt, ator inglês que emigrou para os Estados Unidos em 1913, adotou o nome de Boris Karloff e tornou-se mundialmente conhecido ao interpretar o monstro no filme Frankenstein, do diretor James Whale. O lugar certo para Karloff alcançar o sucesso foi a lanchonete do estúdio da Universal, em Hollywood, onde o diretor Whale tomava chá gelado e, ao vê-lo, impressionou-se com seu rosto.
O primeiro trabalho de James Whale para a Universal seria uma adaptação do romance de Mary Shelley e ele procurava um ator com o physique du rôle para encarnar o monstro. Quando viu Boris na lanchonete do estúdio, chamou-o e, comentou:
- Seu rosto tem possibilidades surpreendentes... Você gostaria de fazer um teste para o papel da criatura do doutor Frankenstein?
Boris espantou-se com a proposta, mas aceitou o teste e, logo na primeira cena, demonstrou que, se alguém poderia interpretar a criatura imaginada por Mary Shelley, era ele e ninguém mais. Começou a trabalhar obedientemente sob as ordens de um tirânico Whale. O ''escultor'' da face horrível e insondável foi Jack Pierce, o chefe de maquiagem do estúdio. E, desde a primeira tomada, a persona do monstro impressionou a todos. Em pouco tempo ninguém tinha dúvidas de que a figura desengonçada e maligna seria a principal atração do filme.
Não foi necessário passar muito tempo para Whale perceber que a grotesca figura permaneceria para sempre no imaginário de todos, enquanto ele, o diretor do filme, seria esquecido. E tinha razão. Só mesmo os cinéfilos guardaram seu nome, enquanto o monstro construído por Pierce a partir do corpo de Karloff tornou-se um dos ícones do terror do século 20, popularizando a obra de Mary Shelley. E a tal ponto que quando Bill Condon faz um filme para mostrar os dias finais de Whale, quem aparece na última cena é o ator Brandon Fraser imitando Karloff na pele do monstro. A criatura mais uma vez vencera o criador.
Lançado em 1931, com produção de US$ 250 mil, Frankenstein rendeu US$ 12 milhões à Universal e salvou a empresa da falência. Descoberto o filão, Carl Laemmle, o chefão do estúdio, queria mais filmes de terror com a dupla Whale/Karloff, mas o diretor resistiu a um novo confronto com aquela força da natureza, que eletrizava as audiências assim que sua figura disforme aparecia na tela. Só em 1935 Whale sentiu-se com forças para enfrentar o monstro novamente e consentiu fazer uma continuação da história de Mary Shelley: A noiva de Frankenstein, com Elsa Lanchester. Submetida ao mesmo tratamento de Pierce, Elsa (que também interpreta Mary Shelley no prólogo do filme) servia de contrapeso à presença de Karloff.
Boris Karloff prosseguiu então em sua carreira, muito marcado pela figura do monstro. Por excessiva modéstia, costumava dizer que não podia se comparar com os grandes atores ingleses da época, a exemplo de Laurence Olivier, Leslie Howard e John Gielguld. Talvez não fosse mesmo grande como eles, mas o sistema patronal de exploração, vigente em Hollywood, o condenava aos filmes de horror. E, quando ele conseguia escapar, era para interpretar gângsteres ou índios, ou então paródias de si mesmo, como no filme The seven lifes of Walter Mitty, com Danny Kaye.
Na vida real, segundo conta Cynthia Lindsay no livro Dear Boris, uma biografia, ele era tímido, cordial e excessivamente modesto. Apesar da fama, raramente conseguia bons papéis em filmes que não fossem de terror. E, tal como o monstro que ansiava pela liberdade e por uma vida ''humana'', ele também tentou livrar-se do estereótipo para mostrar sua capacidade de interpretar outros tipos que não apenas vilões ou monstros. Mas quase nada conseguiu. Peter Bogdanovitch contou um pouco do seu drama em Targets, de 1968, no qual Boris Karloff interpreta Byron Orlok, ator de filmes de horror que deseja fazer outro tipo de cinema, que não os filmes de violência.
Pouco se vê de Boris Karloff no filme Deuses e monstros, de Bill Condon, no qual a interpretação magistral de Yan McKellen no papel de James Whale, nos seus últimos dias, domina a história do começo ao fim. Mas nas sombras da tela - e na mente do Whale personagem - a presença do monstro, tal como criado por Karloff, é intensa. E repercute até hoje, nas imagens do terror produzido para o consumo das multidões, permanecendo no imaginário de todos e na iconografia do século 20. Quem, em criança, não sentiu medo do monstro Frankenstein, dos filme de Whale e seus epígonos, ou, mais tarde, não riu do jovem Frankenstein da comédia de Mel Brooks, ou ainda, entre nós, não se divertiu com o fascinante Frankenstein punk, curta-metragem de Cao Hamburguer?
O monstro está entre nós. E não apenas por sua figura aterrorizante. Segundo o filósofo francês Jean-Jacques Leclerc, o romance de Mary Shelley permite várias leituras. A que ele fez no seu livro Frankenstein, mito e filosofia apresenta o monstro na condição de metáfora das massas exploradas, que reagem de forma ''monstruosa'' na Revolução Francesa, ou nas manifestações da mob londrina. Para Leclerc, Mary Shelley construiu o seu monstro com pedaços do proletariado nascente (uma espécie de Prometeu acorrentado), influenciada pelos acontecimentos históricos da época e pelas idéias libertárias de seu marido, o poeta Percy Shelley, cujo codinome, na polícia política, era Red Shelley.
Mas, se no filme de Whale sobra muito pouco do texto de Mary Shelley, muito menos fica, é claro, da leitura ideologizada que Jean-Jacques Leclerc fez. No entanto, não se pode ser muito rigoroso com as versões filmadas. E, no caso de Frankenstein, de Whale, seu filme sobreviveu exatamente por aquilo que ele mais temia: a fixação de um mito criado no século 19, na aterrorizante figura do monstro, interpretado por Boris Karloff.
E, quando ele aparece na tela, patético e selvagem, podemos até pensar que, em relação ao Brasil de hoje, Leclerc talvez tenha um pouco de razão. Aqui, tal como no ancien régime na França ou durante a Revolução Industrial na Inglaterra, os donos do poder vêem e tratam as dezenas de milhões de excluídos da economia do mercado como seres monstruosos, ameaçadores e perigosos, quando são apenas sub-empregados, explorados, desempregados e desesperados em busca de um mínimo de condição humana. E muitos deles incapazes de articular palavras de defesa, tal como a criatura imaginada por Mary Shelley, o monstro cujas cordas vocais só emitiam grunhidos.
Fonte:
Jornal do Brasil (Rio de Janeiro - RJ) 04/08/2004. In Academia Brasileira de Letras.
O primeiro trabalho de James Whale para a Universal seria uma adaptação do romance de Mary Shelley e ele procurava um ator com o physique du rôle para encarnar o monstro. Quando viu Boris na lanchonete do estúdio, chamou-o e, comentou:
- Seu rosto tem possibilidades surpreendentes... Você gostaria de fazer um teste para o papel da criatura do doutor Frankenstein?
Boris espantou-se com a proposta, mas aceitou o teste e, logo na primeira cena, demonstrou que, se alguém poderia interpretar a criatura imaginada por Mary Shelley, era ele e ninguém mais. Começou a trabalhar obedientemente sob as ordens de um tirânico Whale. O ''escultor'' da face horrível e insondável foi Jack Pierce, o chefe de maquiagem do estúdio. E, desde a primeira tomada, a persona do monstro impressionou a todos. Em pouco tempo ninguém tinha dúvidas de que a figura desengonçada e maligna seria a principal atração do filme.
Não foi necessário passar muito tempo para Whale perceber que a grotesca figura permaneceria para sempre no imaginário de todos, enquanto ele, o diretor do filme, seria esquecido. E tinha razão. Só mesmo os cinéfilos guardaram seu nome, enquanto o monstro construído por Pierce a partir do corpo de Karloff tornou-se um dos ícones do terror do século 20, popularizando a obra de Mary Shelley. E a tal ponto que quando Bill Condon faz um filme para mostrar os dias finais de Whale, quem aparece na última cena é o ator Brandon Fraser imitando Karloff na pele do monstro. A criatura mais uma vez vencera o criador.
Lançado em 1931, com produção de US$ 250 mil, Frankenstein rendeu US$ 12 milhões à Universal e salvou a empresa da falência. Descoberto o filão, Carl Laemmle, o chefão do estúdio, queria mais filmes de terror com a dupla Whale/Karloff, mas o diretor resistiu a um novo confronto com aquela força da natureza, que eletrizava as audiências assim que sua figura disforme aparecia na tela. Só em 1935 Whale sentiu-se com forças para enfrentar o monstro novamente e consentiu fazer uma continuação da história de Mary Shelley: A noiva de Frankenstein, com Elsa Lanchester. Submetida ao mesmo tratamento de Pierce, Elsa (que também interpreta Mary Shelley no prólogo do filme) servia de contrapeso à presença de Karloff.
Boris Karloff prosseguiu então em sua carreira, muito marcado pela figura do monstro. Por excessiva modéstia, costumava dizer que não podia se comparar com os grandes atores ingleses da época, a exemplo de Laurence Olivier, Leslie Howard e John Gielguld. Talvez não fosse mesmo grande como eles, mas o sistema patronal de exploração, vigente em Hollywood, o condenava aos filmes de horror. E, quando ele conseguia escapar, era para interpretar gângsteres ou índios, ou então paródias de si mesmo, como no filme The seven lifes of Walter Mitty, com Danny Kaye.
Na vida real, segundo conta Cynthia Lindsay no livro Dear Boris, uma biografia, ele era tímido, cordial e excessivamente modesto. Apesar da fama, raramente conseguia bons papéis em filmes que não fossem de terror. E, tal como o monstro que ansiava pela liberdade e por uma vida ''humana'', ele também tentou livrar-se do estereótipo para mostrar sua capacidade de interpretar outros tipos que não apenas vilões ou monstros. Mas quase nada conseguiu. Peter Bogdanovitch contou um pouco do seu drama em Targets, de 1968, no qual Boris Karloff interpreta Byron Orlok, ator de filmes de horror que deseja fazer outro tipo de cinema, que não os filmes de violência.
Pouco se vê de Boris Karloff no filme Deuses e monstros, de Bill Condon, no qual a interpretação magistral de Yan McKellen no papel de James Whale, nos seus últimos dias, domina a história do começo ao fim. Mas nas sombras da tela - e na mente do Whale personagem - a presença do monstro, tal como criado por Karloff, é intensa. E repercute até hoje, nas imagens do terror produzido para o consumo das multidões, permanecendo no imaginário de todos e na iconografia do século 20. Quem, em criança, não sentiu medo do monstro Frankenstein, dos filme de Whale e seus epígonos, ou, mais tarde, não riu do jovem Frankenstein da comédia de Mel Brooks, ou ainda, entre nós, não se divertiu com o fascinante Frankenstein punk, curta-metragem de Cao Hamburguer?
O monstro está entre nós. E não apenas por sua figura aterrorizante. Segundo o filósofo francês Jean-Jacques Leclerc, o romance de Mary Shelley permite várias leituras. A que ele fez no seu livro Frankenstein, mito e filosofia apresenta o monstro na condição de metáfora das massas exploradas, que reagem de forma ''monstruosa'' na Revolução Francesa, ou nas manifestações da mob londrina. Para Leclerc, Mary Shelley construiu o seu monstro com pedaços do proletariado nascente (uma espécie de Prometeu acorrentado), influenciada pelos acontecimentos históricos da época e pelas idéias libertárias de seu marido, o poeta Percy Shelley, cujo codinome, na polícia política, era Red Shelley.
Mas, se no filme de Whale sobra muito pouco do texto de Mary Shelley, muito menos fica, é claro, da leitura ideologizada que Jean-Jacques Leclerc fez. No entanto, não se pode ser muito rigoroso com as versões filmadas. E, no caso de Frankenstein, de Whale, seu filme sobreviveu exatamente por aquilo que ele mais temia: a fixação de um mito criado no século 19, na aterrorizante figura do monstro, interpretado por Boris Karloff.
E, quando ele aparece na tela, patético e selvagem, podemos até pensar que, em relação ao Brasil de hoje, Leclerc talvez tenha um pouco de razão. Aqui, tal como no ancien régime na França ou durante a Revolução Industrial na Inglaterra, os donos do poder vêem e tratam as dezenas de milhões de excluídos da economia do mercado como seres monstruosos, ameaçadores e perigosos, quando são apenas sub-empregados, explorados, desempregados e desesperados em busca de um mínimo de condição humana. E muitos deles incapazes de articular palavras de defesa, tal como a criatura imaginada por Mary Shelley, o monstro cujas cordas vocais só emitiam grunhidos.
Fonte:
Jornal do Brasil (Rio de Janeiro - RJ) 04/08/2004. In Academia Brasileira de Letras.
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