domingo, 25 de janeiro de 2009

Bicentenário de Edgar Allan Poe



Depois de anos de miséria e infortúnio, parecia que Edgar Allan Poe finalmente teria a paz e a estabilidade financeira tão sonhadas. No dia 17 de outubro de 1849, iria se casar com Sarah Elmira Royster, que, agora viúva, chamava-se A. B. Shelton. Ela se encontrava em boas condições monetárias e estava disposta a se tornar sua esposa; haviam noivado antes, mas ambos eram muitos jovens, e seus parentes se opuseram ao casamento. Quis o destino fazê-los se reencontrar 23 anos depois. Apesar de prometer não mais tocar na bebida, que tantos dissabores lhe trouxera, o autor continuava bebendo, mas, segundo relatos da época, tinha partido de Richmond (EUA) no dia 23 de setembro sóbrio. Era de manhã quando deixou a cidade e foi de navio até Baltimore, chegando em 29 de setembro. Os acontecimentos lá ocorridos permanecem nebulosos até hoje. O que se averiguou posteriormente foi que o escritor bebeu muito e caiu na mão de uma quadrilha. Esta, ao que tudo indica, misturou alguma droga em sua bebida para ele não poder votar nas eleições que estavam ocorrendo naquela ocasião. Foi encontrado no dia 3 de outubro numa taverna suspeitíssima da região, pelo Dr. James E. Snodgrass, velho amigo, num estado lastimável, moribundo e semiconsciente. Quando Sondgrass o levou para o hospital da cidade, já estava inconsciente. Permaneceu internado por três dias, apresentando pequenos intervalos de lucidez. E nesses períodos sempre chamava por um tal de “Reynolds”. Suas últimas palavras foram “Senhor, ajudai minha pobre alma”. Com essa sombria tragédia final, quase que imitando certos mistérios de sua ficção, nascia o mito de tantas Histórias extraordinárias.

Poe é considerado o “pai” do romance policial, tendo influenciado autores em todo o mundo ao traçar as regras e os princípios do gênero, que pouco mudou até nossos dias, e dos contos de terror, mistério e morte, que ajudou a renovar, trazendo novo frisson para eles. Com seus contos filosóficos e humorísticos, houve ainda espaço para o sarcasmo e o satírico, como reflexo de alguns períodos menos turbulentos e miseráveis de sua vida pessoal, ou simplesmente como forma de rir das próprias mazelas em sua curta existência de quatro décadas, que teve ainda poemas seminais, como O corvo. Os delírios e o desespero só se acalmaram na manhã de 7 de outubro de 1849. Morria o homem que levou para as letras norte-americanas o respeito e o reconhecimento universais.

SIMBIOSE ENTRE VIDA E OBRA

Ele pertence ao panteão de autores que exigem, para entender a obra, conhecer a vida. Nasceu Edgar Poe, a 19 de janeiro de 1809, filho dos atores amadores e medíocres Davi e Isabel. O pai alcoólatra abandonaria os filhos, incluindo o primogênito, William Henry Leonard, e a filha caçula, Rosália Poe, provavelmente nos idos de 1810. Um ano depois, sua mãe morreria em situação de miséria extrema. A pobreza e a morte iriam espreitar sua existência, como um corvo a repetir sempre “Nunca mais!”, palavras pronunciadas pelo personagem de seu poema mais famoso e que o tornou conhecido e respeitado mundialmente, O corvo, publicado originalmente em 29 de janeiro de 1845 na revista Evening Mirror. Seu irmão morreu anos depois e sua irmã faleceria louca numa instituição de caridade. Além disso, sua prima e depois esposa, Virgínia, morreria de tuberculose em situação material lastimável, em 1847, dois anos antes da morte do próprio escritor.

Órfão, Poe foi criado por um próspero comerciante escocês, John Allan, e sua esposa, Frances Allan. Incluiu o “Allan” em seu nome em homenagem a eles. Foi nesse período da infância e juventude que teve conforto material e carinho da mãe adotiva, o que lhe faltaria pelo resto da vida. Morou por cinco anos na Inglaterra, conheceu a Escócia, e esses lugares estão presentes em alguns de seus contos, como William Wilson. Aos 13 anos, já escrevia poesias, e foi nessa época que conheceu Jane Stith Stanard, mãe de um colega, por quem passou a nutrir uma paixão, ao que parece, correspondida. Ela enlouqueceu e morreu algum tempo depois. Esse fato marcou-o para sempre, sendo inclusive a tônica de sua obra. Anos depois, escreveria o poema Para Helena, em sua homenagem.

Alguns biógrafos dizem que ele ficava rondando o túmulo dela no cemitério. Certos poemas de Edgar Allan Poe foram feitos em homenagem a essas paixões platônicas, como Para Annie, que o ensaísta Otto Maria Carpeaux, no monumental História da literatura ocidental (esgotado), considera uma obra-prima. Interessante observar que, mesmo próximo de se casar com a Sra. Shelton, no final da vida, ele dizia que ainda amava a Sra. Annie Richmond, a quem dedicou o poema.

A vida em família e sua relação amigável com o pai adotivo mudariam depois que foi estudar na Universidade de Virgínia. A mesada que John Allan dava era insuficiente, e ele passou a jogar, beber e contrair dívidas. Essa incursão pelo álcool seria um dos principais transtornos do autor e prejudicaria em muito sua estabilidade financeira e profissional. Abandonou a universidade por pressão do pai, que também não via com bons olhos suas pretensões literárias. Eles nunca mais teriam relações próximas e, a partir daí, começava sua peregrinação por cidades, pensões, empregos temporários em jornais, projetos nunca realizados e sua luta para ser reconhecido e viver das letras que passara a produzir.

Alguns fatos de sua trajetória permaneceram nebulosos, muito em decorrência do fato de ter forjado sua autobiografia. Para Carpeaux, ele era um charlatão que inventou uma história para enganar os estudiosos e os críticos depois de sua morte. “Era um neurastênico, gravemente inadaptado à vida, literato paupérrimo entre burgueses arrogantes e jornalistas sensacionalistas. Tinha complexos patológicos”. Mas o crítico brasileiro soube reconhecer sua “...extrema lucidez de espírito, que se revela nos engenhosos contos policiais e em vários tratados científicos”. Fora, portanto, “um homem fora do tempo e do espaço”.

GENIALIDADE E INFLUÊNCIAS

O que torna o escritor de contos policiais, como Os assassinatos da rua Morgue, que inauguraria o gênero policial quando publicado em abril de 1841, incomum e genial? Sua forma de desenvolver essas histórias. Em obras anteriores, já havia os crimes a serem desvendados, mas foi Poe quem deu tratamento diferente para a solução deles no decorrer da trama e no seu clímax. Cabia a solução, na maioria das vezes, ao personagem detetive. Esses detetives, diferentes dos de outros autores até então, têm cultura vasta, são estetas, poetas, cientistas, matemáticos, intuitivos e tiram as conclusões dos fatos analisados, respeitando métodos de trabalho que derivam do raciocínio e da dedução. Para tanto, utilizavam cálculos de probabilidade e análise matemática como ferramenta de trabalho. Foi ele, portanto, quem deu dignidade intelectual às histórias de crimes e mistérios tão em voga no final do século 18 e início do 19.

As influências do autor de O gato preto, A queda da casa de Usher e A carta roubada foram decisivas e amplas na literatura universal. Muitos escritores tornaram- se seus discípulos. O francês Émile Gaboriau criou o personagem Lecoq, que se assemelha ao detetive Dupin, de Poe, e Conan Doyle, com a publicação da novela Um estudo em vermelho, em 1889, trouxe o personagem Sherlock Holmes, o mais conhecido detetive dos romances policiais de todos os tempos, até mais que Dupin, que, evidentemente, lhe serviu de modelo. No campo de histórias de ficção científica e de aventuras fantásticas, Júlio Verne foi seu mais conhecido e talentoso seguidor. Segundo especialistas, a novela Cinco semanas num balão (esgotado) se deriva de Balela do balão; A esfinge dos gelos é a continuação de A narrativa de Arthur Gordon Pym, o texto mais longo de Poe; e, em Vinte mil léguas submarinas há traços de Descida ao Maelström. Além disso, sua escrita influenciaria autores do porte de Paul Verlaine, Arthur Rimbaud, Paul Valéry e seu mais fervoroso discípulo, Charles Baudelaire, que traduziu alguns de seus textos para o francês e fez um esboço biográfico do autor e de seus livros em Ensaios sobre Edgar Allan Poe. Outros autores lhe devem algum tributo, como Fiódor Dostoiévski, Fernando Pessoa, que fez a versão de O corvo para o português, assim como Machado de Assis, que também traduziu o poema para nosso idioma.

Trechos de um conto de Edgar Allan Poe, Berenice, servem como epígra fe para sua vida, e, portanto, para sua obra. “A desgraça é variada, o infortúnio da terra é multiforme.” Ou, ainda: “A lembrança da felicidade passada é a angústia de hoje” e “as amarguras que existem agora têm sua origem nas alegrias que podiam ter existido”.

Fonte:
Revista da Cultura. Edição 18 - Janeiro de 2009. Seção Perfil. p. 14.

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