“A história acontece à sua maneira, única em cada realidade; seu registro, no entanto, dá-se por versões conflitantes, em que predomina por tempo indefinido a dos vencedores. Somente a perseverança investigativa pode levar à verdade completa ou próximo a ela. E este depende de elementos de reconstituição, de cada depoimento e parecer, em especial, quando possível, dos que tiveram a fortuna de sobreviver ao capítulo que lhe correspondeu estar presente, seja como ator, seja como observador.”
No turbilhão de acontecimentos que desembocou no golpe de 1964, poucos episódios terão sido tão dramáticos quanto o cerco militar a centenas de marinheiros e fuzileiros navais reunidos para comemorar o segundo aniversário de sua associação (AMFN) na sede do antigo Sindicato dos Metalúrgicos da Guanabara, que se arrastou angustiantemente entre os dias 25 e 27 de março de 1964.
A celebração fora levada a cabo desrespeitando proibição expressa do Comando da Marinha, que se negava a reconhecer a legitimidade da associação. A solução dada ao impasse pelo governo Goulart – que incluía a anistia aos amotinados – foi tomada como prova de que ele estaria instigando ou ao menos sendo conivente com a quebra de hierarquia, que já assombrava as Forças Armadas desde a revolta dos sargentos, ocorrida em setembro do ano anterior em Brasília. Segundo diversos relatos, isso teria precipitado a adesão de oficiais até então legalistas ao movimento golpista em curso.
Dali em diante, graves suspeitas foram levantadas em relação a esse movimento, que, atingindo um ponto particularmente sensível do espírito de corpo militar, foi visto por muitos como estopim do golpe de 1964. A posterior trajetória do então presidente da AMFN, o marinheiro de primeira classe José Anselmo dos Santos (que entraria para a História erroneamente identificado como “cabo Anselmo”), contribuiu para fortalecer a hipótese de que a revolta teria sido obra de provocadores, sendo apontado até o possível envolvimento da CIA, a odiada agência de inteligência norte-americana.
Anselmo, como é bem sabido, viria a aderir à Vanguarda Popular Revolucionária (VPR) – que tinha como um e seus dirigentes o também ex-militar Carlos Lamarca. Segundo seu próprio testemunho, o “cabo”, após ser preso pela equipe do delegado Fleury – da polícia política paulista –, teria negociado a preservação de sua vida pela delação e atuação como agente duplo. Isso viria a custar a vida de diversos militantes, incluindo-se aí sua companheira, Soledad, grávida de sete meses.
É fácil, portanto, compreender por que a “revolta dos marinheiros” se tornou uma página maldita na história da esquerda brasileira. Infelizmente, parece que a repugnância causada pela figura de Anselmo contribuiu para que a interpretação do episódio, um dos divisores de águas entre as diversas abordagens sobre as causas do golpe, tenha até o momento se baseado mais nas deduções decorrentes de esquemas explicativos mais gerais que nos resultados de pesquisa empírica.
Já o testemunho de Viegas – elaborado com uma capacidade de reconstituição de detalhes prodigiosa e pleno domínio da técnica narrativa – tanto oferece uma preciosa visão de dentro sobre a associação e a revolta quanto resgata a peculiar trajetória posterior de seus protagonistas, geralmente às margens das principais organizações clandestinas da esquerda brasileira.
Ex-marinheiro que teve seu curso de jornalismo interrompido pela condenação à prisão – em função de um artigo publicado no periódico da associação, Tribuna do Mar –, o autor desempenhou ativo papel na articulação do pequeno e sugestivamente batizado MAR (Movimento de Ação Revolucionária) e na condução de sua mais espetacular ação: a fuga da Penitenciária Lemos de Brito em 1969.
Condenar os derrotados e responsabilizá-los pelos “desvios” da História é procedimento de praxe do pensamento conservador reproduzido de inúmeras formas pela esquerda, acadêmica ou não. As contradições da realidade, entretanto, permanecem. É sabido que compactuar com a quebra de disciplina nas Forças Armadas é abrir caminho para o rompimento da institucionalidade democrática, tão arduamente reconquistada e ampliada. Mas poder-se-á efetivamente falar em democracia quando a vida de instituições vitais continua a ser regida pela negação de direitos fundamentais da cidadania seus subalternos? Mais ainda, quando esse modelo legitima a reprodução do exercício cotidiano do arbítrio em tantos outros espaços da vida social? Por essas e por outras, o livro de Viegas, mais do que recontar uma experiência com o devido respeito por aqueles que a viveram, dão o que pensar.
“Viegas, de posse da velha bússola, consegue nesta empreitada manter sempre regulado o rumo do norte. E como experimentado marinheiro, ensina que não se pode confundir, em alto mar ou terra firme, impacto da onda com farfalhar frívolo da espuma.
Para acompanhá-lo nessa viagem, é bom saber que o mergulho na História contemporânea, embora já coisa do século passado, exige desprendimento. “Era uma vez...” configura formato interessante. “Meninos, eu vi!”, também. Era uma vez um grupo do qual Viegas fazia parte. E ele viu muita coisa, testemunhou, sofreu e alegrou-se. É como se contasse a História, sem querer enfeita-la, despindo-a de tons épicos, o que não significa abolir atos de coragem, altruísmo e humanidade, mas contar a você uma parte relevante de fatos ainda insuficientemente esmiuçados. Alguns episódios e nomes não conhecidos. Mas nada é apenas repetitivo. Aquis estão revelações que ajudam a formatar lentamente um mosaico gigantesco, com partidos e organizações, alas e tendências, filosofias e engajamentos, confrontados com uma repressão de momentos brutais, selvagens, exterminadores.
[...] Porque neste livro, com alentadores momentos de audácia, Pedro Viegas ousa desmentir Carl Jung: “Todos nós nascemos originais e morremos cópias”. Ele, não. Coisa de marinheiro calejado, que não teme as chibatadas de nosso tempo, das quais está nos ajudando a ficar livres, dizendo sem receio, do Leviatã, que nós também não somos assim” (Percival de Souza, in Trajetória Rebelde, p. 13)
Fontes:
- trechos do artigo de Alexandre Fortes in http://www2.fpa.org.br/portal/modules/news/article.php?storyid=3328
- VIEGAS, Pedro. Trajetória Rebelde. Cortez Editora, 280 páginas, 2004.
No turbilhão de acontecimentos que desembocou no golpe de 1964, poucos episódios terão sido tão dramáticos quanto o cerco militar a centenas de marinheiros e fuzileiros navais reunidos para comemorar o segundo aniversário de sua associação (AMFN) na sede do antigo Sindicato dos Metalúrgicos da Guanabara, que se arrastou angustiantemente entre os dias 25 e 27 de março de 1964.
A celebração fora levada a cabo desrespeitando proibição expressa do Comando da Marinha, que se negava a reconhecer a legitimidade da associação. A solução dada ao impasse pelo governo Goulart – que incluía a anistia aos amotinados – foi tomada como prova de que ele estaria instigando ou ao menos sendo conivente com a quebra de hierarquia, que já assombrava as Forças Armadas desde a revolta dos sargentos, ocorrida em setembro do ano anterior em Brasília. Segundo diversos relatos, isso teria precipitado a adesão de oficiais até então legalistas ao movimento golpista em curso.
Dali em diante, graves suspeitas foram levantadas em relação a esse movimento, que, atingindo um ponto particularmente sensível do espírito de corpo militar, foi visto por muitos como estopim do golpe de 1964. A posterior trajetória do então presidente da AMFN, o marinheiro de primeira classe José Anselmo dos Santos (que entraria para a História erroneamente identificado como “cabo Anselmo”), contribuiu para fortalecer a hipótese de que a revolta teria sido obra de provocadores, sendo apontado até o possível envolvimento da CIA, a odiada agência de inteligência norte-americana.
Anselmo, como é bem sabido, viria a aderir à Vanguarda Popular Revolucionária (VPR) – que tinha como um e seus dirigentes o também ex-militar Carlos Lamarca. Segundo seu próprio testemunho, o “cabo”, após ser preso pela equipe do delegado Fleury – da polícia política paulista –, teria negociado a preservação de sua vida pela delação e atuação como agente duplo. Isso viria a custar a vida de diversos militantes, incluindo-se aí sua companheira, Soledad, grávida de sete meses.
É fácil, portanto, compreender por que a “revolta dos marinheiros” se tornou uma página maldita na história da esquerda brasileira. Infelizmente, parece que a repugnância causada pela figura de Anselmo contribuiu para que a interpretação do episódio, um dos divisores de águas entre as diversas abordagens sobre as causas do golpe, tenha até o momento se baseado mais nas deduções decorrentes de esquemas explicativos mais gerais que nos resultados de pesquisa empírica.
Já o testemunho de Viegas – elaborado com uma capacidade de reconstituição de detalhes prodigiosa e pleno domínio da técnica narrativa – tanto oferece uma preciosa visão de dentro sobre a associação e a revolta quanto resgata a peculiar trajetória posterior de seus protagonistas, geralmente às margens das principais organizações clandestinas da esquerda brasileira.
Ex-marinheiro que teve seu curso de jornalismo interrompido pela condenação à prisão – em função de um artigo publicado no periódico da associação, Tribuna do Mar –, o autor desempenhou ativo papel na articulação do pequeno e sugestivamente batizado MAR (Movimento de Ação Revolucionária) e na condução de sua mais espetacular ação: a fuga da Penitenciária Lemos de Brito em 1969.
Condenar os derrotados e responsabilizá-los pelos “desvios” da História é procedimento de praxe do pensamento conservador reproduzido de inúmeras formas pela esquerda, acadêmica ou não. As contradições da realidade, entretanto, permanecem. É sabido que compactuar com a quebra de disciplina nas Forças Armadas é abrir caminho para o rompimento da institucionalidade democrática, tão arduamente reconquistada e ampliada. Mas poder-se-á efetivamente falar em democracia quando a vida de instituições vitais continua a ser regida pela negação de direitos fundamentais da cidadania seus subalternos? Mais ainda, quando esse modelo legitima a reprodução do exercício cotidiano do arbítrio em tantos outros espaços da vida social? Por essas e por outras, o livro de Viegas, mais do que recontar uma experiência com o devido respeito por aqueles que a viveram, dão o que pensar.
“Viegas, de posse da velha bússola, consegue nesta empreitada manter sempre regulado o rumo do norte. E como experimentado marinheiro, ensina que não se pode confundir, em alto mar ou terra firme, impacto da onda com farfalhar frívolo da espuma.
Para acompanhá-lo nessa viagem, é bom saber que o mergulho na História contemporânea, embora já coisa do século passado, exige desprendimento. “Era uma vez...” configura formato interessante. “Meninos, eu vi!”, também. Era uma vez um grupo do qual Viegas fazia parte. E ele viu muita coisa, testemunhou, sofreu e alegrou-se. É como se contasse a História, sem querer enfeita-la, despindo-a de tons épicos, o que não significa abolir atos de coragem, altruísmo e humanidade, mas contar a você uma parte relevante de fatos ainda insuficientemente esmiuçados. Alguns episódios e nomes não conhecidos. Mas nada é apenas repetitivo. Aquis estão revelações que ajudam a formatar lentamente um mosaico gigantesco, com partidos e organizações, alas e tendências, filosofias e engajamentos, confrontados com uma repressão de momentos brutais, selvagens, exterminadores.
[...] Porque neste livro, com alentadores momentos de audácia, Pedro Viegas ousa desmentir Carl Jung: “Todos nós nascemos originais e morremos cópias”. Ele, não. Coisa de marinheiro calejado, que não teme as chibatadas de nosso tempo, das quais está nos ajudando a ficar livres, dizendo sem receio, do Leviatã, que nós também não somos assim” (Percival de Souza, in Trajetória Rebelde, p. 13)
Fontes:
- trechos do artigo de Alexandre Fortes in http://www2.fpa.org.br/portal/modules/news/article.php?storyid=3328
- VIEGAS, Pedro. Trajetória Rebelde. Cortez Editora, 280 páginas, 2004.
Nenhum comentário:
Postar um comentário