domingo, 1 de maio de 2011

José Faria Nunes (Um Rosto Miscigenado)

Imagem de Gilberto Queiroz
Na rua nem cortejo havia. O caixão barato, doação de uma instituição de caridade, era conduzido por poucas mãos que se revezavam entre as poucas pessoas que levavam o corpo.

Estivessem em campanha eleitoral o séquito chamaria a atenção de populares, atraídos por figuras da política à cata de simpatia para investimento nas urnas. Teatro de humildade, benevolência, humanidade, máscara comum de semelhantes tempos. A pessoa do esquife seria, no mínimo, reverenciada ainda que nem família tivesse. Pose pública na busca da notória atenção dos nem sempre incautos eleitores.

Em não estando em campanhas eleitoreiras, digo eleitorais, exceto a espontânea curiosidade de um ou outro garoto por onde seguia, ninguém nada perguntava. Ninguém se preocupava em saber de quem era o corpo, que só não fora deixado para decomposição natural em algum terreno baldio ou enterrado em algum fundo de quintal por razões óbvias: para não incomodar pelo cheiro nauseativo que por certo exalaria ou porque havia proibição legal para enterros em locais não autorizados. O cemitério, ainda que distante (do outro lado da cidade) era um mal necessário. Enterro em cova rasa, sem alvenaria nem obra de arte. Túmulos em mármore ou granito, só para pessoas de posse, que deixam herança, ou tenham merecido o respeito público local. E aquele não era o caso.

Ninguém sabia quem era, de onde viera. Até parece ter chegado ali só para morrer. O médico chamado para emissão do laudo cadavérico nem ver o corpo foi. Assinou o documento em do único estabelecimento comercial do bairro. Um misto de boteco, frutaria e armazém de secos e molhados.

Cortejo sem pompa, sem glória, só não ignorado de ter existido porque ali estava o corpo. Prova de que um dia, em algum lugar, alguma mulher teria dado à luz um filho. Ainda que sem a consciência de que um dia ele viveria como mendigo, morreria como um ninguém, seria enterrado como indigente. Sem lenço, sem documento, sem choro, sem vela.

E pelas ruas periféricas da pequena cidade seguia o corpo no caixão barato, conduzido por poucas mãos que se revezavam entre as poucas pessoas.

No cemitério o caixão foi aberto apenas para cumprir uma tradição, visto que ninguém ali estava por amor a um ser humano que perdera a vida, mas apenas por desencargo de consciência. Ainda havia alguém que ainda tinha consciência de que o homem, imagem e semelhança de Deus, ainda que ignorado pela vida, na morte teria que ter a reverência mínima de receber um enterro ainda que sem quaisquer formalidades. Não se poderia deixar um corpo apodrecer ao deus-dará, sem ao menos uma cova onde seus ossos pudessem ficar reunidos. A menos que o cemitério venha a encher tanto que não tenha lugar para o enterro de mais ninguém. Aí então restos mortais de pessoas ignoradas, desconhecidas, indigentes poderão ser removidos para covas coletivas para reserva de seus lugares para novos sepultamentos. Por certo nenhum local é seguro para a insegurança das vítimas da indiferença humana (humana?) da sociedade do ter. O ser, se não acompanhado do ter, apenas em dimensão que nos foge à compreensão terá o mérito de ter existido. Será que terá?

Aberto o caixão chamou a atenção dos circunspetos presentes o defeito físico da mão e antebraço direitos do corpo em desajeitada posição, cruzados sobre o peito do cadáver de aparência sexagenária. Cabelos poucos a ornamentar uma careca sobreposta a um rosto miscigenado. Herança de uma sonhada democracia racial que ainda inexiste no país, onde a corrupção, o crime organizado, os desmandos, o autoritarismo, a ganância e a hipocrisia insistem em manchar a grandeza de uma nação privilegiada pela generosidade da natureza. Aqui entre os trigais o joio se propaga, um joio de agentes ativos e passivos da especulação e da exploração do homem pelo homem, céticos de que cada um acabará por se tornar vítima de si mesmo, de suas próprias armadilhas.

Fechou-se o caixão e nem os três costumeiros punhados de terra sobre ele foram jogados. Para o agrado dos coveiros, ninguém ali ficou para lhes perturbar o trabalho, costumeiramente empertigado pelas presenças incomodativas próprias de enterro de pessoas, cuja notoriedade foram objeto em vida, ainda que apenas pelos cifrões.

Todos se foram, pois a vida haveria de continuar, até que algum dia em alguma estação o trem da existência tivesse que parar para uma breve reflexão sobre a própria vida. Ainda que poucos para isso tenham tempo.

No cemitério os coveiros perceberam que o relógio os liberava para o merecido descanso. Afinal a noite se aproximava com sua boca enorme para engolir a cidade e seu povo. Sobre a cova, um poodle que um dia teria sido preto, então grisalho como seu amo, aconchegara-se sobre o monturo de terra fresca na ala de sepultamento de indigentes.

Em algum lugar do planeta, duas filhas interrogam pelo destino do pai, há uma década desaparecido.
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Conto publicado na Antologia de Contos de Autores Contemporâneos - vol.4

Fonte:
Colaboração de José Faria Nunes

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