sexta-feira, 2 de setembro de 2011

Monteiro Lobato (O Saci) XXIII - A Cuca; XXIV – O novelo de cipós


XXIII – A Cuca

Súbito o saci exclamou:

— É lá!

— É lá o quê? — perguntou Pedrinho.

— A caverna da Cuca, naquela montanha de pedras nuas. Conheço bem estes sítios.

Pedrinho olhou na direção apontada e só viu grandes massas de sombras. Apesar de ser noite de lua, havia névoas no céu, de modo que a claridade não dava para perceber mais que o vulto da montanha estendida à sua frente. Que a região era pedregosa, isso Pedrinho logo percebeu, tais faíscas tirava do chão o seu cavalinho pangaré. Entretanto, não tropeçava, o que seria naturalíssimo num animal acostumado a só trotar por bons caminhos ou campos livres de pedras.

— Estou estranhando este cavalo! — não pôde deixar de dizer o menino. — Positivamente não é o mesmo. Nem sequer tropeça...

— É que lhe dei a comer sete folhas de uma planta que só eu sei para que serve.

— Logo vi. Seria ótimo que me ensinasse o segredo dessa planta. Com ela a gente poderia até transformar um burro morto em Bucéfalo...

O saci, apesar das suas habilidades e espertezas de demoninho, ignorava a história dos cavalos célebres, e pois ficou na mesma com a citação do tal Bucéfalo.

— Que bicho é esse? — perguntou.

— Oh, era o cavalo de Alexandre, o Grande, um cavalo bravíssimo, que nenhum homem, fora Alexandre, jamais conseguiu domar. Um dia, quando estivermos sossegados, hei de contar a história dos grandes cavalos.

— Sim — interrompeu o saci — mas agora feche o bico. Estamos nos domínios da Cuca, onde qualquer imprudência nos pode custar caro. Essa horrenda bruxa tem ouvidos ainda mais apurados que os meus.

Pedrinho calou-se.

Nisto, a lua saiu de trás das nuvens e ele pôde ver melhor o sítio onde se achava. Bem à frente erguia-se a muralha duma montanha de pedras negras, com arvoredo retorcido brotando das brechas. Era uma paisagem diabólica, que punha nos nervos das criaturas os mais esquisitos arrepios. Lugar bom mesmo para morada de monstros como a Cuca...

— É ali! — murmurou baixinho o saci, apontando para uma abertura negra. — É ali a entrada da caverna da grande malvada.

— Como sabe? — perguntou Pedrinho tolamente.

— Que pergunta! — respondeu o saci com ironia. — Sei porque sei. Tinha graça que um saci não soubesse onde mora a Cuca... Mas, silêncio! Temos que entrar com mil cautelas, de arrasto, como se fôssemos cobras. Não! Não! O melhor é nos disfarçarmos em folhagem.

— Como isso?

— Nada de perguntas. Faça o que eu fizer, sem discutir — ordenou o diabrete, afastando-se dali para arrancar braçadas de folhas da árvore mais próxima.

Pedrinho fez o mesmo. Em seguida o saci lascou da mesma árvore umas embiras, com as quais amarrou a folhagem em redor do seu corpinho. O menino fez o mesmo.

Ficaram tal qual dois arbustos móveis e, assim disfarçados, dirigiram-se para a caverna do horrendo monstro, pé ante pé, tão devagarzinho que levaram vinte minutos para caminhar uns poucos metros.

Súbito, ao dobrarem uma curva, viram lá num canto a rainha. Estava sentada diante duma fogueira, de modo que a claridade das chamas permitia que as “folhagens” lhe vissem a carantonha em toda a sua horrível feiúra. Que bicha! Tinha cara de jacaré e garras nos dedos como os gaviões. Quanto à idade, devia andar para mais de três mil anos. Era velha como o Tempo.

— Estamos de sorte — disse o saci ao ouvido do menino. — A Cuca só dorme uma noite cada sete anos e chegamos justamente numa dessas noites.

— Como sabe? — indagou Pedrinho, cuja curiosidade não tinha limites.

O saci danou e ameaçou-o, se continuasse com tais perguntas, de deixá-lo ali sozinho para ser devorado pelo monstro. Em seguida queimou na brasa do pito uma misteriosa folha, que havia apanhado pouco antes sem que o menino o percebesse.

— Esta fumaça vai fazer que o sono da rainha seja mais pesado do que todas as pedras desta gruta. Depois de estar completamente adormecida, temos de amarrá-la muitíssimo bem amarrada.

Logo que a fumaça alcançou o focinho da Cuca, esta, que já estava dando mostras de sono, pendeu a cabeça de lado e roncou.

— Já caiu no sono — disse o saci. — Podemos agora tirar nossa roupa de folhas e sair em busca de cipós. Conheço um cipó que vale por quanta corda existe — até parece cipó próprio de amarrar cucas...

Despiram-se das folhas e saíram da caverna muito satisfeitos, porque as coisas estavam correndo às mil maravilhas.

XXIV – O novelo de cipós

Cortado o cipó, trouxeram-no em dois grandes rolos, e sem receio nenhum, pois os roncos da Cuca mostravam que ela estava a dormir como quem não dormia há sete anos, começaram a amarrá-la dos pés à cabeça.

Mais uma vez teve Pedrinho de reconhecer como era hábil e arteiro o seu amigo saci. Amarrar parece coisa fácil, mas não é. Se Pedrinho houvesse amarrado a Cuca, o mais certo era que com dois safanões a bruxa se livrasse da cipoada num minuto. Mas com o saci deu-se coisa diferente. O diabinho parecia nunca ter feito outra coisa na vida. Amarrou-a com a mesma ciência com que as aranhas amarram as moscas nas suas teias, sem deixar um ponto fraco. O segredo, explicou ele, era estudar a amarração de modo que ao despertar a Cuca não pudesse fazer o menor movimento. Porque se a criatura amarrada puder fazer um pequeno movimento, por menor que seja, afrouxará um ponto no amarrilho; e depois afrouxará outro ponto — e assim irá até libertar-se duma vez.

Terminada a obra, em vez de Cuca viu-se no chão um verdadeiro carretel de cipó.

— Sim, senhor! — exclamou Pedrinho. — Aprendi mais hoje do que em toda a minha vida. Esta diaba pode ter a força de cem elefantes, mas duvido que escape da “nossa” amarração.

O saci sorriu daquele “nossa”, mas calou-se. Limitou-se a enxugar o suor da testa.

— Temos agora de acordá-la — disse depois.

— Deixe esse ponto comigo — pediu o menino. — Com um bom pau de guatambu, eu acordo-a bem acordada.

— Nada de paus! Você não conhece a Cuca. Um monstro de três mil anos, como ela, havia de rir-se das pauladas dum menino como você. À força, é impossível lutar com ela. Temos de usar da astúcia. A arma a empregar vai ser o pingo d’água.

— Lá vem o pingo d’água outra vez! — exclamou o menino. — Até parece caçoada, querer com um pobre pingo d’água dominar uma bruxa destas...

— Pois fique sabendo que é o único meio.

Pedrinho não entendeu, ficando de boca aberta a ver as manobras do saci. A engenhosa criaturinha trepou que nem macaco pelas estalactites gotejantes da gruta até alcançar a que ficava bem a prumo sobre a cabeça da Cuca. E lá, então, encaminhou um fiozinho d’água de modo que gotejasse lentamente bem no meio da testa da Cuca.

— Basta isso — disse ele. — No começo ela nem sente; mas com a continuação a dor vai ficando tamanha que há de dar-se por vencida.

— Sim, senhor! — murmurou o menino. — Está aí uma invenção que nunca imaginei, mas agora me lembro que vovó nos contou uma história assim...

— Pois é — disse o saci. — Ambos ouvimos essa história; mas só eu prestei atenção e já estou tirando partido do que aprendi. Sou dez vezes mais esperto que você, Pedrinho. Não acha?

O menino não teve remédio senão achar que era mesmo. Os pingos começaram a cair. Os cem primeiros nenhuma impressão fizeram na bruxa, cujo sono parecia dos mais gostosos. Daí por diante já esse sono não pareceu mais tão calmo. Começou a fazer caretas, como se estivesse sonhando algum sonho horrível. Por fim abriu um olho e depois o outro.

Por vários minutos permaneceu apatetada, vendo diante de si aquelas duas criaturas de mãos na cintura, a olharem para ela sem dizer coisa nenhuma. Depois a sua inteligência foi acordando e notou o pingo a lhe cair na testa. Quis mudar de posição. Não pôde. Só nesse momento viu que estava amarradinha como se fosse um carretel e condenada à mais absoluta imobilidade.
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continua... XXVI - O pingo d’água; XXV – A Iara
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Fonte:
LOBATO, Monteiro. Viagem ao Céu & O Saci. Col. O Sítio do Picapau Amarelo vol. II. Digitalização e Revisão: Arlindo_Sa

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