Ora, mal sabe a pessoa
Que lê estas linhas toscas,
Compostas assim à toa,
Entregues ao prelo e às moscas,
Mal sabe o susto que tive
Nas eleições da semana:
Vi Cartago, vi Ninive,
Vi além da Taprobana:
Por isso darei ao verso
Certo tom grave e pausado,
Diverso, muito diverso
Do meu tom acostumado,
E, se não, amigo, veja:
Batendo a hora do voto,
Vesti-me e fui para a igreja
Como um eleitor devoto.
Tinha comigo o diploma,
E a lista dos meus eleitos,
Fechada com boa goma,
Juntinha, agarrada aos peitos.
Começou pela chamada ...
Sei que sabe que ainda estamos
Nesta usança desusada
De só votar quem chamamos.
Dizia o mesário: — Antônio
Vaz de Souza, e repetia,
Depois: — Arlindo Theotônio
De Vasconcellos Faria.
E Arlindo, que era presente,
Levava o diploma aberto
Aos olhos do presidente,
Votava, e rápido, e certo,
Escrevia o nome: — Arlindo
Theotônio de Vasconcellos
Faria. — Trabalho findo,
Ia ao bife e ao Carcavelhos.
Mas o curioso, o incrível,
O trágico, o inopinado,
O que parece impossível
E entanto foi praticado,
É que entre os nomes dos vivos
Tinha nomes de defuntos,
De tantos que ora, entre os divos,
Gozam o descanso juntos.
E não defuntos de agora,
Mas de alguns anos passados,
Alguns que a pátria inda chora,
Outros pouco ou mal chorados.
Essa chamada de mortos
Trouxe-me um sono profundo,
Fui sentindo os olhos tortos,
E o mundo ao pé do outro mundo.
Primeiro vi Duque-Estrada
Teixeira — chegar sombrio
Para acudir à chamada
Feita no seu pátrio Rio.
Vi depois o Azevedo
Peçanha, vi a figura
Do Buarque de Macedo,
Labor, honradez, cordura.
Vi outros muitos, vi tudo,
E, continuando o mistério,
Vi, com gesto carrancudo,
A história e o seu cemitério.
Numerar os esqueletos
Que entrar vi na sacristia,
Já bolorentos ou pretos,
É obra que excede a um dia.
Vi César e mais as suas
Válidas tropas, vi Galba,
Maomé e as meias luas
E os três Curiácios de Alba.
Nino vi, Giges, e aquela
Semíramis, graça e fama,
Cleópatra, e a donzela
D'Orleans, Vasco da Gama,
Pedro o Grande, Henrique Oitavo,
Amílcar, os comerciantes
Cartagineses, Gandavo,
Napoleão e Cervantes.
E vinham todos trazendo
Uma cédula entre os ossos
Ao mesário, que ia lendo,
Os nomes desses destroços.
Sonho foi... Quando desperto,
Não achei mais que o sacrista,
A mesa vazia perto,
Nem mais eleitor nem lista,
Tonto do meu pesadelo,
Contei-o ao sacrista, e o moço
Facilitou-me entendê-lo,
Ambos à mesa do almoço:
— “Nada lhe aconteceria
Se a lista dos eleitores
Pudesse ter algum dia
Revisão e revisores.
“Se fosse oportunamente
Cada morto eliminado,
Nenhum seria presente
E muito menos chamado.
“Mas, como a preguiça é grande
E os trabalhos são massudos...
E não há quem nisto mande...
E os tempos andam bicudos...
Fonte:
Obra Completa de Machado de Assis, Edições Jackson, Rio de Janeiro, 1937.
Publicado originalmente na Gazeta de Noticias, Rio de Janeiro, de 01/11/1886 a 24/02/1888.
Que lê estas linhas toscas,
Compostas assim à toa,
Entregues ao prelo e às moscas,
Mal sabe o susto que tive
Nas eleições da semana:
Vi Cartago, vi Ninive,
Vi além da Taprobana:
Por isso darei ao verso
Certo tom grave e pausado,
Diverso, muito diverso
Do meu tom acostumado,
E, se não, amigo, veja:
Batendo a hora do voto,
Vesti-me e fui para a igreja
Como um eleitor devoto.
Tinha comigo o diploma,
E a lista dos meus eleitos,
Fechada com boa goma,
Juntinha, agarrada aos peitos.
Começou pela chamada ...
Sei que sabe que ainda estamos
Nesta usança desusada
De só votar quem chamamos.
Dizia o mesário: — Antônio
Vaz de Souza, e repetia,
Depois: — Arlindo Theotônio
De Vasconcellos Faria.
E Arlindo, que era presente,
Levava o diploma aberto
Aos olhos do presidente,
Votava, e rápido, e certo,
Escrevia o nome: — Arlindo
Theotônio de Vasconcellos
Faria. — Trabalho findo,
Ia ao bife e ao Carcavelhos.
Mas o curioso, o incrível,
O trágico, o inopinado,
O que parece impossível
E entanto foi praticado,
É que entre os nomes dos vivos
Tinha nomes de defuntos,
De tantos que ora, entre os divos,
Gozam o descanso juntos.
E não defuntos de agora,
Mas de alguns anos passados,
Alguns que a pátria inda chora,
Outros pouco ou mal chorados.
Essa chamada de mortos
Trouxe-me um sono profundo,
Fui sentindo os olhos tortos,
E o mundo ao pé do outro mundo.
Primeiro vi Duque-Estrada
Teixeira — chegar sombrio
Para acudir à chamada
Feita no seu pátrio Rio.
Vi depois o Azevedo
Peçanha, vi a figura
Do Buarque de Macedo,
Labor, honradez, cordura.
Vi outros muitos, vi tudo,
E, continuando o mistério,
Vi, com gesto carrancudo,
A história e o seu cemitério.
Numerar os esqueletos
Que entrar vi na sacristia,
Já bolorentos ou pretos,
É obra que excede a um dia.
Vi César e mais as suas
Válidas tropas, vi Galba,
Maomé e as meias luas
E os três Curiácios de Alba.
Nino vi, Giges, e aquela
Semíramis, graça e fama,
Cleópatra, e a donzela
D'Orleans, Vasco da Gama,
Pedro o Grande, Henrique Oitavo,
Amílcar, os comerciantes
Cartagineses, Gandavo,
Napoleão e Cervantes.
E vinham todos trazendo
Uma cédula entre os ossos
Ao mesário, que ia lendo,
Os nomes desses destroços.
Sonho foi... Quando desperto,
Não achei mais que o sacrista,
A mesa vazia perto,
Nem mais eleitor nem lista,
Tonto do meu pesadelo,
Contei-o ao sacrista, e o moço
Facilitou-me entendê-lo,
Ambos à mesa do almoço:
— “Nada lhe aconteceria
Se a lista dos eleitores
Pudesse ter algum dia
Revisão e revisores.
“Se fosse oportunamente
Cada morto eliminado,
Nenhum seria presente
E muito menos chamado.
“Mas, como a preguiça é grande
E os trabalhos são massudos...
E não há quem nisto mande...
E os tempos andam bicudos...
Fonte:
Obra Completa de Machado de Assis, Edições Jackson, Rio de Janeiro, 1937.
Publicado originalmente na Gazeta de Noticias, Rio de Janeiro, de 01/11/1886 a 24/02/1888.
Nenhum comentário:
Postar um comentário