quarta-feira, 5 de fevereiro de 2014

Nilto Maciel (Contistas do Ceará) Outros Contistas – 2 -

CLAUDER ARCANJO

Clauder Arcanjo (Antonio C. Alves A.) nasceu em Santana do Acaraú, 1963. Engenheiro Civil, funcionário da Petrobrás desde 1985. Um dos coordenadores do Projeto Pedagogia da Gestão, voltado para gestão, educação e cultura. Cronista semanal da Gazeta do Oeste, de Mossoró-RN, e resenhista da Papangu, revista de humor e cultura do Rio Grande do Norte. Colaborador de Literatura – Revista do Escritor Brasileiro e Caos Portátil: um almanaque de contos. Distinguido com menção honrosa no Prêmio Literário Cidade do Recife, 2004, na categoria contos. Publicou o volume de contos Licânia (Mossoró: Sarau das Letra Editora, 2007) e tem, inéditos, um romance, um conjunto de poemas, um de contos, um de resenhas literárias e outro de crônicas.

                Licânia contém 24 narrativas curtas. O título do volume vem da cidade onde ocorrem alguns dos dramas. Em “A casa” se conta a história do regresso de um homem a Licânia, depois de anos de andanças pelo mundo. “Abelardo desceu do velho ônibus de linha, estirando as pernas, correu a vista pela praça central” (...) Mas há outras cidades, como em “Cemitério”, no qual se descreve povaréu sertanejo com esse nome. O sertão, o lugarejo, a pequena cidade são o palco da maioria dessas histórias. Em composições como “O curral das éguas” e “Negócios de feira” se narram o mundo rural ou das cidades pequenas do Nordeste. A referência a partes desse ambiente, objetos, meios de transporte, etc., é frequente no livro: a porteira grande, a tramela, as montarias. E também o uso de alguns vocábulos e expressões regionais: farnesim, abestalhado, alpendre, coivara, cacimba, caneca, alpercata, dismilinguido, caritó, vixe-Maria!, lamparina a querosene, tamborete de couro cru, etc.

                Ao lado das narrativas ambientadas no espaço rural ou em cidade pequena, de um passado recente, Clauder inventa também dramas para a cidade grande em curtas tragédias urbanas. Em “A rua” se narra a morte de menino pobre por atropelamento, como numa crônica. Os problemas sociais são preocupação do cronista, como se pode ver em “Menina de rua”: “Um vulto de um pequeno ser foi visto a se esgueirar por entre os becos da cidade. Era uma menina”. Uma das mais pungentes crônicas do livro também se volta para esse tipo de problema, sobretudo quando envolve crianças: “Moeda ao chão”.

                O escritor cearense pratica com habilidade certo tipo de conto, o chamado “conto de personagem”. “Identidade” é um deles. Brito se descreve e narra suas peripécias desde a infância até a idade adulta e a morte. “Boné azul” se inicia com a descrição do prédio de um colégio e do seu cotidiano. Após isso, o narrador se refere ao personagem, o menino Frederico. E somente no final o boné azul aparece. Em “Despedida” dois seres fictícios – o velho Xandico e o cachorro Dante – vivem uma história de amizade. “Dona Tarcisa”, com muito humor, é todo voltado para o nome da personagem. “Perneta” é história de pescador, de valentia e amor. “Jesuíno” também se enquadra nesta categoria de conto, em ambiente de seca no sertão.

                São tênues os limites que separam o conto da crônica. Entretanto, é fácil encontrar em Licânia algumas crônicas. Assim se pode ler “O cavaleiro do mar”. Ou “Zeca e os pombos”, em que o próprio narrador se diz cronista. Mas há também alegorias, como “O pó de chinelo”. Ou historinhas que poderiam compor outro tipo de livro, como “A mala”. Ou sátiras da sociedade, do comportamento do homem urbano moderno (“As sandálias da humildade”). Entretanto, bons contos povoam a coleção, como “O grito”, constituído de elipses narrativas. Ou “O riso do cão”, misterioso em sua elaboração, com certo quê de fantástico. Do mesmo naipe é “Samira”, em que a narradora, enlouquecida, relembra fatos da infância e, sobretudo, o estupro de que foi vítima. Também “Sonho de almirante” é inusitado: o amor de dois meninos, a morte de um deles, a velhice do outro.

                Clauder Arcanjo pouco se vale do diálogo na construção dos contos e crônicas. Algumas falas ele as apresenta entre aspas. Outras, precedidas de travessão. Prefere a narração tradicional, sem malabarismos: sujeito, verbo, predicado. Frases curtas, simples. Vocabulário de uso comum. Em razão disso, não se perde em descrições, explicações, informações inúteis, redundantes ou inaceitáveis na prosa de ficção moderna. Ou seja, não cansa nem irrita o leitor.

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FELIPE BARROSO

                Felipe Barroso nasceu em 1963, na capital cearense. Professor universitário e advogado. Ao publicar o “despretensioso livrinho” O Velho Que Ainda Escrevia Cartas de Amor, premiado no II Edital de Incentivo às Artes da Secretaria de Cultura do Ceará, Felipe Barroso entrou em 2005 para o clube dos contistas, essa entidade sem fins lucrativos que tanto tem atraído jovens leitores. Desde cedo tem se dedicado a leituras e exercícios literários. Passados quase vinte anos, maduro, Felipe mostra a cara a outros leitores.

                O livro é miúdo, cerca de setenta páginas. São apenas dezoito composições. Quase todas narradas na primeira pessoa: ora personagens menores, ora protagonistas. No primeiro caso, os seres fictícios “descritos” são ridicularizados, caricaturas pintadas com borrões. Sebastião Ragadásio tem “queixo de macaco e cabelo crespo e muito ralo”. Abdoral Malveiras, comendador, “tinha uma deformação na mão”; “de tanto segurar o fuzil durante a guerra, sua mãe adquirira o formato de um cano de fuzil”. Teresa, de “Teresa, a bruxa” (o título diz tudo), mostrava “cara enfezada dos velhos”. O narrador arremata a história assim: “Vai, bruxa da cidade grande, com teus olhos exoftálmicos e pêlos pendentes no queixo, voar sem vassoura, mas em asa de sonho”. (...) “Vai beber uísque bom na tua casa linda lá na zona oeste do céu”. São todas pessoas velhas, muito velhas. A velhice é, para esses narradores, deformação física e mental. Decadência. Nas breves descrições desses velhos, os defeitos são visíveis e fundamentais: Ragadásio lembrava um macaco, além de ter uma perna mecânica; o centenário Abdoral parecia um fuzil andante; Teresa, bruxa moderna, contava mais de noventa anos. A protagonista de “A morte e a duquesa”, aos 88 anos, pediu ao sobrinho médico “uma morte instantânea”, com a ingestão de “um pouquinho de cianeto”. Os cegos de “Aniversário” são um velho e uma velha num restaurante. E, para completar o naipe, a história que dá título ao volume, do septuagenário que foge de casa no dia do seu aniversário.

                Há também crianças e jovens nas composições de Felipe. Como em “Menino e trocador”, em cena ocorrida dentro de ônibus urbano. O narrador demonstra profunda simpatia e ternura pelo garoto e antipatia pelo cobrador do coletivo. Nessa linha do cotidiano na cidade grande, de denúncia de problemas sociais, o contista se aproxima do cronista, como em “Bancos de aluguel”. O protagonista é típico malandro urbano, o que faz de tudo para ganhar dinheiro: engraxate há mais de quinze anos, aluga os bancos da praça aos transeuntes que queiram sentar.

                Crônicas e poemas em prosa também fazem parte do livro: como na linguagem correta e elegante de “Let’s dance”, no satírico “Manifesto urbanista”, no enigmático “A noiva de Bristol”, na suavidade de “Aniversário”, no poético “O homem do mar”. E não falta humor, como em “Número errado”.

                Felipe Barroso sabe conduzir a narração, sem se perder em observações ou explicações, e também maneja com cuidado o diálogo. Nada de falas intermináveis, conversas que se desviam do enredo. Tudo curto, em frases enxutas e sem o uso antiquado dos verbos introdutores do relato do discurso. Mesmo quando dá voz a uma pessoa da ralé, como o engraxate de “Bancos de aluguel”. A fala não é, obviamente, literária, mas o leitor afeito à gramática não se emaranha nas armadilhas do arrazoado do narrador. Em “Manhã na repartição” o expediente (sem trocadilho) usado pelo contista é semelhante ao anterior: após um travessão, vem a fala de Gardênia; outro travessão e nova fala (de personagem sem nome explícito, funcionária da copa), e assim até o final.

                Não nos cabe indagar se Felipe morou ou passou dias em Londres. Entretanto, é possível imaginar uma dessas possibilidades pela leitura de peças como “A noiva de Bristol” e “Aniversário”. Mas há também “Negro fado”, ambientado em Lisboa. Imaginações ou não, os três podem ser catalogados como crônicas, mesmo que há muito se venham esgarçando as definições dos gêneros literários.

                O Ceará não poderia estar ausente, como espaço geográfico, das narrativas de Felipe. Em alguns contos não há nenhuma menção a nomes de cidades, logradouros ou prédios históricos, mas quem conhece Fortaleza percebe por onde se locomovem os personagens.

                Com O Velho Que Ainda Escrevia Cartas de Amor, Felipe Barroso ostenta muita imaginação e conhecimento das técnicas de narrar, para escrever com simplicidade sem incorrer no descuido com as normas gramaticais. Se demorar mais vinte anos para escrever o segundo volume, certamente alcançará degraus mais altos da arte de contar. E seus velhos serão mais velhos ainda.

                                                                       ***
JOAN EDESSOM DE OLIVEIRA

Joan Edessom de Oliveira está presente na segunda coletânea do Prêmio Domingos Olímpio, com “Os Afogados”. Na terceira obteve o primeiro lugar, com “Os Filhos de Aprígio Martins”. Tem recebido diversos prêmios literários. Dedica-se à poesia e ao conto. Tem no prelo o primeiro volume de narrativas curtas, intitulado O Plantador de Borboletas.

                Os contos de Joan Edessom são curtos não porque não tenham enredo e personagens. Se ele se valesse de recursos como o diálogo e o prolongamento narrativo da ação certamente construiria narrativas mais longas. Em “O cavalo cego”, por exemplo, apresenta as personagens assim: “Duas éguas baias, postadas à frente da igreja, revistavam as mulheres que se dirigiam à missa, cobertas pelas mantilhas.” Nenhuma palavra, apenas ação: a revista, o exame nas mulheres. Talvez Joan não tenha encontrado palavras para pôr na boca dos animais. Na frase seguinte há referência a falas: “Cheiravam-nas e levantavam as suas roupas, sem levar em conta os seus protestos.” Como se daria o ato de levantar as roupas das mulheres? O que diziam elas? Entretanto, o contista preferiu deixar para o leitor a liberdade de suprir ou não esses hiatos. Em “Os afogados”, mais curto ainda, três meninos são encontrados mortos na praia e todos são conhecidos, isto é, têm nomes explícitos.

                Pode-se ver em “O cavalo cego” uma alegoria. É possível também encontrar nele o elemento fantástico: equinos ocupam uma pequena cidade e rendem as autoridades e os habitantes. A história nos remete a um tempo fictício em que irracionais sobrepujassem os humanos em inteligência. Não se trata de ideia nova, pois Jonathan Swift, em As viagens de Gulliver, inventou cavalos inteligentes que dominavam antropoides degradados. Mas disso Joan sabe.

                As mortes dos meninos de “Os afogados” poderiam parecer simples acidente e a história seria mais uma de afogamentos no mar. Entretanto, o corpo do primeiro apresenta “cor levemente esverdeada” e no segundo “tinha uns bichinhos minúsculos grudados aos cabelos”. Talvez nada de estranho até aí. Entretanto, um sinal estranho nos corpos dos garotos dá à peça um final fantástico: “Em todos a mesma marca na mão esquerda e as penas que nasciam nos calcanhares”.  

                Apesar do enredo insólito de “O cavalo cego”, o narrador se prendeu a um tempo e espaço reais. Breves descrições ou menções nos remetem a qualquer pequena cidade do Ceará ou do Nordeste de hoje ou mesmo do passado: a igreja, as mantilhas das mulheres, o carteiro, o cabo, os soldados. Já em “Os afogados” há apenas a referência a uma praia e a um ancoradouro, não se podendo vislumbrar em que lugar se dão os afogamentos dos três meninos.

                A despeito do realismo de “Juliana”, é possível vislumbrar-se um quê de estranho nele. Juliana amava um homem (personagem sem nome explícito) com tanta intensidade que a fazia amar “as coisas e as pessoas das quais ele gostava”. Até mesmo Clara. Ou o amor é inexplicável ou a história de Joan Edessom é muito clara. Talvez uma piada.

Fonte:
MACIEL, Nilto. Contistas do Ceará: D’A Quinzena ao Caos Portátil. Fortaleza/CE: Imprece, 2008.

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