Lourdinha Leite Barbosa (Maria de Lourdes Dias Leite Barbosa) nasceu em Ipu. Licenciada em Letras pela Universidade Estadual do Ceará e mestre em Literatura pela Universidade Federal do Ceará. Pertence ao Grupo Espiral. Exerceu o cargo de Presidente da Academia de Letras e Artes do Nordeste – Secção Ceará. Tem contos, ensaios e artigos publicados em jornais e revistas especializadas. Participa das antologias O talento cearense em contos – org. Joyce Cavalcante (São Paulo: Maltese, 1996) e Antologia de contos cearenses – org. Túlio Monteiro (Fortaleza: FUNCET, 2004). Tem editados Protagonistas de Rachel de Queiroz: caminhos e descaminhos – ensaio (São Paulo: Pontes, 1999) e A arte de engolir palavras – contos (Recife: Bagaço, 2001).
No ensaio intitulado “Sobre A arte de engolir palavras e outras artes”, aposto ao volume como posfácio, a professora Vicência Maria Freitas Jaguaribe faz minuciosa análise da obra, que poderia deixar os críticos sem mais nada a dizer. Assim, vê na coletânea cinco narrativas fantásticas, sendo as demais “de natureza mimética ou realista, no sentido mais geral desse termo”.
Algumas histórias da coleção tratam de pequenos dramas pessoais, quase sempre femininos ou na visão feminina (personagem-narradora), em reduzido número de parágrafos curtos, fundados no recurso da narração, com breves diálogos. Como também observa Vicência Jaguaribe, “o narrador de terceira pessoa desse conto, como o de muitos outros, parece um mero recurso da autora para emprestar à narrativa uma ilusão de objetividade, pois quem na realidade acaba filtrando os fatos para o leitor é a própria protagonista, por meio da técnica do discurso indireto livre, que soa quase como um monólogo”.
A maioria das peças do volume foi construída como narrações em terceira pessoa. Personagens-narradores encontram-se em “Nó cego”, “Poça dágua”, “Flores de papel”, “Medo” e “Encantamento”. Na primeira, uma das mais longas do livro, uma mulher conta a sua desilusão amorosa: flagra o marido com outro homem, em “beijo profundo, prolongado”, sem deixar claro ao leitor a identidade do outro, talvez para dar ao conto um ar de mistério. Na segunda narrativa, de feitio fantástico, outra mulher narra o próprio desespero, como num pesadelo. O leitor, entretanto, só percebe o perfil feminino no desfecho, quando a personagem observa: “Sei que estou ferida, mas não sinto dor”. Na terceira história desse tipo, a protagonista Zefa, a moça doida, desenvolve a narração no presente, em monólogo interior. “Medo” tem como narrador um homem, embora também pudesse ser mulher. Nas primeiras linhas ele se diz desesperado. No último dos contos em primeira pessoa um menino apaixonado pela bailarina do circo conta a história.
Raríssimas vezes a contista se vale do flagrante, dando o narrador pequenos saltos no tempo, a cada parágrafo. Em “Bumerangue” a protagonista, sem nome explícito, chega a uma fazenda. Em flash-back a narração se volta para a partida da personagem (“Partira escorraçada e humilhada”). Seguem-se breves narrações-descrições do ambiente (“cozinha larga e clara”; “colheita do feijão”; “as chuvas trouxeram à fazenda”). Após meia dúzia de frases, apresenta o segundo ser fictício, “um rapazola franzino, de olhar manso e fala pouca”. E novo conflito se instaura, até o desfecho, quando a mulher, “resignada, partiu em busca de um novo refúgio, como a fechar uma porta sem fim”. Dessa forma, Lourdinha Leite Barbosa consegue pintar a protagonista por dentro, bem como o ambiente onde ela vive e o tempo dos seus embates interiores, tudo em pouco mais de 30 linhas. Em “A Valsa Proibida” esta técnica se repete, com algumas variações: os flashes-backs são mais longos, o tempo narrado se encurta, a personagem tem nome explícito, Mirta, e o desfecho parece feliz.
Às vezes o tempo se dilata, enquanto o espaço da ação se restringe. Em “Vida em três tempos”, como o próprio título indica, Marília se revê em três momentos de sua vida. Pensa, rememora. O conflito é interior; a protagonista se acha em casa, a olhar para “o porta-retrato em cima da mesinha de cabeceira”. Ao final, “enrodilhou-se na velha poltrona”, a dizer ao leitor que dali não saiu, ao longo da narração. Outras vezes o espaço se amplia. Em “Aqui, ali, acolá”, como o título mostra, a ação se dá em diversos lugares: no campo (árvores, pedras, estrada); na cidade (“avenida larga e movimentada”), uma pousada, um hospital. Em “Uma paisagem quase perfeita” as personagens habitam um casarão antigo, com seu porão escuro e o grande quintal cheio de árvores: uma paisagem quase perfeita. Como nos contos de fadas, as moças sonham e sofrem de solidão. “Os dias escorriam tão lentos quanto o rosário que eram obrigadas a rezar todas as noites”. E ocorre a transgressão no tempo e no espaço: a monotonia é suspensa por um acontecimento inesperado – a chegada de um jardineiro. A figura masculina penetra no mundo feminino. “Apenas no quintal e jardim”. Daí por diante tudo se transforma no casarão e nas donzelas, que vão, uma a uma, murchando, amarelando, morrendo.
Há também histórias folclóricas, que não deslustram o conjunto, como “Flores de papel”, em linguagem regional: cabaça, tomar tenência, indagorinha, mangar de mim, fazer mangoça, pataca. A intertextualização com as cantigas de roda dá à obra um quê de arte literária. Essa localização da trama no espaço rural ou da cidade pequena ocorre em diversas peças do volume. Em “Penitente” o protagonista anda por ruas desertas, pelo átrio da matriz, vai ao açude, embrenha-se no mato, banha-se na cacimba. Não se tratam, porém, de narrativas regionalistas, quer pela manipulação da linguagem, quer pela estruturação do enredo. A contista não cansa o leitor com diálogos intermináveis de matutos e muito menos com descrições enfadonhas de paisagens e topografias.
Os personagens de Lourdinha Leite Barbosa são apenas os que participam diretamente da trama: o protagonista e o antagonista. Raras vezes aparece terceiro ou quarto ser fictício. Isso faz com que o conto seja curto e não se desdobre em mais de uma história ou apresente um enredo dentro de outro. Mesmo no clássico triângulo amoroso, o terceiro personagem não passa de sutil lembrança. Em “Bumerangue” a protagonista faz breve referência ao ex-marido, sem sequer mencionar o nome: “Até ameaça de morte ele fizera”. Apenas “ele” e nada mais. Em “A Decisão”, Hortência lembra do ex-marido em uma frase capital: “ele confessou que tinha outra”. Essa outra não chega a ser personagem. Em “A Valsa Proibida” pode-se ver uma só ser fictício, Mirta, “mulher idosa, vestida de princesa”. Seu pai e sua mãe são apenas referidos, em fato remoto de sua vida. Os amigos são como bibelôs, objetos: “Mirta recebia os amigos com um largo sorriso”. São apenas “homens e mulheres, em traje de festa”. Com tanta economia de personagens, é natural que os conflitos não aflorem. Pois a trama é quase sempre pessoal, individual, interior. O enredo por pouco não é abolido nas narrativas de Lourdinha. Veja-se “Vida em três tempos”, que pode ser o exemplo mais claro disso: a protagonista Marília vive com Dirceu, que, no entanto, não passa de personagem morto, passado. “Já não eram um. Calada. Sem nada a dizer. Fingindo não ver, não ouvir. Brigar para quê?” Ou seja, o outro, Dirceu, não passava de um ser apático, sem reação, incapaz de participar de um conflito.
Vistos os contos em alguns dos fundamentos do gênero, resta-nos avaliar a linguagem da contista. Em primeiro lugar, a concisão e a precisão, presentes na maioria das histórias. Em consequência, a riqueza de sugestões e a economia dos detalhes, tão bem percebidas por Vicência Jaguaribe. Ou seja, Lourdinha Leite Barbosa consegue realizar a arte de engolir palavras em sua primeira coleção de peças ficcionais, enquanto muitos escritores passam a vida expelindo palavras e terminam sufocados pela própria verborragia.
Fonte:
MACIEL, Nilto. Contistas do Ceará: D’A Quinzena ao Caos Portátil. Fortaleza/CE: Imprece, 2008.
No ensaio intitulado “Sobre A arte de engolir palavras e outras artes”, aposto ao volume como posfácio, a professora Vicência Maria Freitas Jaguaribe faz minuciosa análise da obra, que poderia deixar os críticos sem mais nada a dizer. Assim, vê na coletânea cinco narrativas fantásticas, sendo as demais “de natureza mimética ou realista, no sentido mais geral desse termo”.
Algumas histórias da coleção tratam de pequenos dramas pessoais, quase sempre femininos ou na visão feminina (personagem-narradora), em reduzido número de parágrafos curtos, fundados no recurso da narração, com breves diálogos. Como também observa Vicência Jaguaribe, “o narrador de terceira pessoa desse conto, como o de muitos outros, parece um mero recurso da autora para emprestar à narrativa uma ilusão de objetividade, pois quem na realidade acaba filtrando os fatos para o leitor é a própria protagonista, por meio da técnica do discurso indireto livre, que soa quase como um monólogo”.
A maioria das peças do volume foi construída como narrações em terceira pessoa. Personagens-narradores encontram-se em “Nó cego”, “Poça dágua”, “Flores de papel”, “Medo” e “Encantamento”. Na primeira, uma das mais longas do livro, uma mulher conta a sua desilusão amorosa: flagra o marido com outro homem, em “beijo profundo, prolongado”, sem deixar claro ao leitor a identidade do outro, talvez para dar ao conto um ar de mistério. Na segunda narrativa, de feitio fantástico, outra mulher narra o próprio desespero, como num pesadelo. O leitor, entretanto, só percebe o perfil feminino no desfecho, quando a personagem observa: “Sei que estou ferida, mas não sinto dor”. Na terceira história desse tipo, a protagonista Zefa, a moça doida, desenvolve a narração no presente, em monólogo interior. “Medo” tem como narrador um homem, embora também pudesse ser mulher. Nas primeiras linhas ele se diz desesperado. No último dos contos em primeira pessoa um menino apaixonado pela bailarina do circo conta a história.
Raríssimas vezes a contista se vale do flagrante, dando o narrador pequenos saltos no tempo, a cada parágrafo. Em “Bumerangue” a protagonista, sem nome explícito, chega a uma fazenda. Em flash-back a narração se volta para a partida da personagem (“Partira escorraçada e humilhada”). Seguem-se breves narrações-descrições do ambiente (“cozinha larga e clara”; “colheita do feijão”; “as chuvas trouxeram à fazenda”). Após meia dúzia de frases, apresenta o segundo ser fictício, “um rapazola franzino, de olhar manso e fala pouca”. E novo conflito se instaura, até o desfecho, quando a mulher, “resignada, partiu em busca de um novo refúgio, como a fechar uma porta sem fim”. Dessa forma, Lourdinha Leite Barbosa consegue pintar a protagonista por dentro, bem como o ambiente onde ela vive e o tempo dos seus embates interiores, tudo em pouco mais de 30 linhas. Em “A Valsa Proibida” esta técnica se repete, com algumas variações: os flashes-backs são mais longos, o tempo narrado se encurta, a personagem tem nome explícito, Mirta, e o desfecho parece feliz.
Às vezes o tempo se dilata, enquanto o espaço da ação se restringe. Em “Vida em três tempos”, como o próprio título indica, Marília se revê em três momentos de sua vida. Pensa, rememora. O conflito é interior; a protagonista se acha em casa, a olhar para “o porta-retrato em cima da mesinha de cabeceira”. Ao final, “enrodilhou-se na velha poltrona”, a dizer ao leitor que dali não saiu, ao longo da narração. Outras vezes o espaço se amplia. Em “Aqui, ali, acolá”, como o título mostra, a ação se dá em diversos lugares: no campo (árvores, pedras, estrada); na cidade (“avenida larga e movimentada”), uma pousada, um hospital. Em “Uma paisagem quase perfeita” as personagens habitam um casarão antigo, com seu porão escuro e o grande quintal cheio de árvores: uma paisagem quase perfeita. Como nos contos de fadas, as moças sonham e sofrem de solidão. “Os dias escorriam tão lentos quanto o rosário que eram obrigadas a rezar todas as noites”. E ocorre a transgressão no tempo e no espaço: a monotonia é suspensa por um acontecimento inesperado – a chegada de um jardineiro. A figura masculina penetra no mundo feminino. “Apenas no quintal e jardim”. Daí por diante tudo se transforma no casarão e nas donzelas, que vão, uma a uma, murchando, amarelando, morrendo.
Há também histórias folclóricas, que não deslustram o conjunto, como “Flores de papel”, em linguagem regional: cabaça, tomar tenência, indagorinha, mangar de mim, fazer mangoça, pataca. A intertextualização com as cantigas de roda dá à obra um quê de arte literária. Essa localização da trama no espaço rural ou da cidade pequena ocorre em diversas peças do volume. Em “Penitente” o protagonista anda por ruas desertas, pelo átrio da matriz, vai ao açude, embrenha-se no mato, banha-se na cacimba. Não se tratam, porém, de narrativas regionalistas, quer pela manipulação da linguagem, quer pela estruturação do enredo. A contista não cansa o leitor com diálogos intermináveis de matutos e muito menos com descrições enfadonhas de paisagens e topografias.
Os personagens de Lourdinha Leite Barbosa são apenas os que participam diretamente da trama: o protagonista e o antagonista. Raras vezes aparece terceiro ou quarto ser fictício. Isso faz com que o conto seja curto e não se desdobre em mais de uma história ou apresente um enredo dentro de outro. Mesmo no clássico triângulo amoroso, o terceiro personagem não passa de sutil lembrança. Em “Bumerangue” a protagonista faz breve referência ao ex-marido, sem sequer mencionar o nome: “Até ameaça de morte ele fizera”. Apenas “ele” e nada mais. Em “A Decisão”, Hortência lembra do ex-marido em uma frase capital: “ele confessou que tinha outra”. Essa outra não chega a ser personagem. Em “A Valsa Proibida” pode-se ver uma só ser fictício, Mirta, “mulher idosa, vestida de princesa”. Seu pai e sua mãe são apenas referidos, em fato remoto de sua vida. Os amigos são como bibelôs, objetos: “Mirta recebia os amigos com um largo sorriso”. São apenas “homens e mulheres, em traje de festa”. Com tanta economia de personagens, é natural que os conflitos não aflorem. Pois a trama é quase sempre pessoal, individual, interior. O enredo por pouco não é abolido nas narrativas de Lourdinha. Veja-se “Vida em três tempos”, que pode ser o exemplo mais claro disso: a protagonista Marília vive com Dirceu, que, no entanto, não passa de personagem morto, passado. “Já não eram um. Calada. Sem nada a dizer. Fingindo não ver, não ouvir. Brigar para quê?” Ou seja, o outro, Dirceu, não passava de um ser apático, sem reação, incapaz de participar de um conflito.
Vistos os contos em alguns dos fundamentos do gênero, resta-nos avaliar a linguagem da contista. Em primeiro lugar, a concisão e a precisão, presentes na maioria das histórias. Em consequência, a riqueza de sugestões e a economia dos detalhes, tão bem percebidas por Vicência Jaguaribe. Ou seja, Lourdinha Leite Barbosa consegue realizar a arte de engolir palavras em sua primeira coleção de peças ficcionais, enquanto muitos escritores passam a vida expelindo palavras e terminam sufocados pela própria verborragia.
Fonte:
MACIEL, Nilto. Contistas do Ceará: D’A Quinzena ao Caos Portátil. Fortaleza/CE: Imprece, 2008.
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