segunda-feira, 1 de janeiro de 2024

Contos e Lendas da África (O leopardo de pele lisa)

Local:
Cidade do rei Mborakinda

Personagens:
Rei Mborakinda
Ilâmbe, a princesa
Ra-Marânge, médico
Njĕgâ (leopardo)
Kabala (cavalo mágico)
Ogula-Ya-Mpazya-Vazya, o feiticeiro

Isso aconteceu na cidade onde o rei Mborakinda, adorado por todos, vivia com suas esposas e filhos.

Mborakinda amava muito sua filha Ilâmbe. Tentava agradá-la de todas as maneiras possíveis e a cercava de criados. Quando a princesa ficou adulta, declarou que não queria que ninguém a pedisse em casamento. Ela escolheria seu marido.

— Além do mais, não me casarei com nenhum homem que tenha qualquer mancha na pele, por menor que seja — afirmou Ilâmbe.

Apesar de seu pai não concordar com tal desejo, não a proibiu. Começaram a surgir pretendentes que se apresentavam ao rei dizendo:

— Desejo me casar com sua filha Ilâmbe.

Mborakinda sempre respondia:

— Você deve falar com ela diretamente.

Então o rapaz ia comunicar suas intenções à princesa:

— Vim pedi-la em casamento.

A resposta de Ilâmbe era sempre a mesma:

— Você tem uma pele lisa, sem nenhuma mancha sequer?

Se a resposta fosse afirmativa, a princesa acrescentava:

— Preciso ver por mim mesma. Venha ao meu quarto.

E lá o homem se despia completamente. Se durante esse exame Ilâmbe encontrasse uma pinta ou cicatriz, por menor que fosse, apontava para a marca e dizia:

— Você tem uma mancha aqui! Não me casarei com você!

Quando o pretendente tentava argumentar, explicando que sua pele era completamente lisa, exceto por aquela marca, a princesa o interrompia:

— Não! Mesmo que seja uma mancha minúscula, não me casarei com você!

E assim todos eram rejeitados, pois ela sempre encontrava alguma cicatriz ou qualquer erupção na pele. Após tantas recusas, a fama da linda filha do rei Mborakinda, que não aceitava nenhum pretendente por conta de manchas na pele, chegou a outros países.

Mesmo assim, muitos queriam desposá-la. Alguns animais chegavam a se transformar e assumir uma forma humana, mas também eram rejeitados. 

O Leopardo ficou sabendo da reputação da princesa e disse:

— Ah, essa linda mulher! Ouvi dizer que é linda e que ninguém consegue conquistá-la. Também farei minha tentativa, mas antes vou consultar RaMarânge.

Foi visitar o médico feiticeiro e lhe contou tudo sobre a linda filha do rei Mborakinda que não aceitava ninguém por ser tão criteriosa com seus pretendentes.

— Eu já estou muito velho e não faço mais feitiços — disse Ra-Marânge. — Vá falar com Ogula-ya-mpazya-vazya.

E assim o Leopardo fez. O feiticeiro Ogula fez seu ritual de sempre: pulou em uma fogueira e saiu de lá em transe. Então perguntou ao Leopardo qual era seu desejo. Njĕgâ contou toda a história novamente e pediu para ter um corpo humano sem nenhuma mancha. Ogula preparou uma poção poderosa, que o transformaria em um homem alto, elegante, forte e perfeito. O Leopardo voltou à sua aldeia e contou seus planos a seu povo. Também preparou o corpo de seus familiares para transformações, caso necessário. Após adotar um nome humano — Ogula — o Leopardo foi falar com o rei:

— Desejo me casar com sua filha Ilâmbe.

A chegada de Ogula na corte de Mborakinda impressionou a todos que, admirados com sua beleza, exclamaram:

— Vejam que homem lindo! Que belo rosto e que porte!

Após fazer o pedido ao rei, Ogula recebeu a resposta padrão: que fosse conversar diretamente com a princesa para saber se ela gostaria. Quando chegou à casa de Ilâmbe, ela ficou imediatamente encantada com sua beleza.

— Eu te amo. Estou aqui para me casar com você — disse Ogula. — Você já rejeitou muitos, e sei o motivo, mas acredito que ficará satisfeita comigo.

— Imagino que já tenham contado a razão de minhas recusas — respondeu a princesa. — Verei se você tem o que eu quero. Entraremos no quarto e você me mostrará sua pele.

Dentro do quarto, Ogula-Njĕgâ retirou suas roupas refinadas e Ilâmbe o examinou meticulosamente dos pés à cabeça. Não encontrou um único arranhão. A pele de Ogula parecia a de um bebê.

— Sim! Encontrei meu homem! — exclamou Ilâmbe. — Eu te amo e me casarei com você.

Estava tão animada que continuou examinando a bela pele de seu noivo por mais alguns minutos. Então saiu e pediu a seus criados que trouxessem comida e água para ele. Ogula continuou na casa por alguns dias, sem vontade de voltar à sua cidade natal, pois se sentia amado por Ilâmbe. 

No terceiro dia, Ogula foi dizer ao rei Mborakinda que queria levar Ilâmbe para morar com ele. O rei consentiu.

Enquanto o leopardo transformado em homem estava no palácio, o feiticeiro do rei previu que algo de ruim adviria desse casamento. No entanto, como a princesa fazia questão de escolher seu marido, o rei não interveio. 

Após o fim da cerimônia e do banquete, o rei Mborakinda chamou sua filha para conversar:

— Ilâmbe, minha filha, você agora começa sua jornada.

— Sim, pois amo meu marido.

— Ama mesmo? — perguntou seu pai.

— Sim.

— Então lhe darei seu ozendo (presente de casamento). 

O rei deu a ela alguns presentes e disse:

— Vá até aquela casa — e apontou um local na cidade, entregando-lhe uma chave — e, ao chegar lá, abra a porta.

Era o lugar onde o rei guardava seus encantamentos de guerra e outras poções.

— Ao entrar, verá dois kabala (cavalos) lado a lado — continuou o rei. — Pegue o que estiver olhando para o chão com um olhar perdido e deixe lá o que tem um aspecto mais vivaz. Você notará que o que você deve pegar manca um pouco. Mesmo assim, ele é o correto.

— Mas pai, por que não posso pegar o cavalo mais saudável e deixar o fraco? — argumentou Ilâmbe.

— Não! Pegue o que estou mandando — respondeu o rei, com um sorriso enigmático.

A recomendação do rei Mborakinda não era sem motivo. O cavalo com melhor aspecto era apenas bonito. O outro poderia salvá-la com sua inteligência, caso necessário.

Ilâmbe apanhou o cavalo indicado por seu pai e voltou para o palácio. Estava tudo preparado para sua viagem. O rei ordenou que alguns criados a acompanhassem, para carregar a bagagem e ajudá-la a se adaptar à nova cidade. Os recém-casados se despediram e partiram, ambos montados no Kabala.

A viagem durou muitos dias. Ogula-Njĕgâ, mesmo sob a forma humana, ainda possuía os mesmos instintos e gostos — estava há muitos dias sem comer carne crua. Ao passarem pela floresta onde havia animais selvagens, sua sede de sangue se intensificou. Chegaram a uma grande planície que terminava em outra floresta. Antes de atravessarem o campo aberto, seu desejo por caça ficou incontrolável e disse a Ilâmbe:

— Minha esposa, espere aqui com o Kabala e seus criados enquanto vou na frente. Volto logo.

Entrou na floresta e voltou a assumir a forma de leopardo. Capturou um pequeno animal e o devorou, depois mais outro. Satisfeito, lavou suas patas e boca em um riacho, voltou à forma humana e retornou para onde estava sua esposa.

Ilâmbe olhou-o atentamente e notou nele uma expressão dura e estranha.

— Onde você esteve? O que fez? — perguntou ela.

Ele deu uma desculpa qualquer e continuaram. 

No dia seguinte, fez a mesma coisa. Pediu para que esperasse em determinado lugar enquanto adentrava a floresta. Voltou a ser leopardo e caçou novamente. Ilâmbe não fazia ideia do que estava acontecendo. O Cavalo sabia e revelaria mais tarde que era capaz de falar, mas ainda não era o momento oportuno.

A viagem continuou dessa forma até chegarem à cidade do Leopardo.

Como já previamente preparado, sua mãe e outros moradores também haviam assumido uma forma humana para receber Ilâmbe. No entanto, o casal não ficou muito tempo em companhia deles, pois ficaram cada um em sua casa. 

Nos primeiros dias, Ogula tentou ser o mais amável possível com Ilâmbe, para que ela não suspeitasse de nada, mas sua sede de sangue não o abandonava. Passou a inventar desculpas para se ausentar:

— Tenho negócios a resolver em outra cidade.

E saía para caçar como leopardo, voltando tarde da noite. Isso se repetia frequentemente. Depois de algum tempo, Ilâmbe decidiu iniciar uma plantação e ordenou que seus criados homens limpassem o terreno escolhido. Ogula-Njĕgâ se escondia na floresta ao redor da lavoura para capturar e comer algum dos trabalhadores. O grupo sempre voltava com um criado a menos. Um a um, todos os servos foram desaparecendo. Ninguém além do Leopardo e seus familiares sabia o que se passava. Certa noite, em suas andanças de caça, Ogula-Njĕgâ encontrou uma dama de companhia de sua esposa e a devorou. Foi a primeira serviçal mulher a desaparecer. 

Algumas das vezes em que o Leopardo se ausentava, Ilâme sentia-se solitária e ia olhar Kabala. Com o desaparecimento da criada, o cavalo achou que era hora de se pronunciar sobre o que acontecia. A princesa acariciava sua crina quando ele disse:

— Ah, Ilâmbe, você não percebe o perigo vindo em sua direção.

— Que perigo? — perguntou a princesa.

— Que perigo? Se seu pai não tivesse me enviado junto com você, o que aconteceria? — perguntou o Cavalo. — O que acha que aconteceu com seus criados? Você não sabe, mas eu sei. Pensa que simplesmente desapareceram? Pois então saiba o que aconteceu: seu marido os devorou! Por isso sumiram.

A princesa não acreditou em suas palavras e contestou:

— Por que ele faria isso?

— Se você duvida, espere até todos os criados desaparecerem.

Duas noites mais tarde, mais uma dama de companhia sumiu. Algum tempo depois, Ogula-Njĕgâ saiu para caçar, com a intenção de, caso não apanhasse nenhum animal, devorar sua esposa.

Ilâmbe se sentiu solitária e foi até o estábulo ver seu cavalo.

— Eu não avisei? A última criada sumiu. Você será a próxima — advertiu ele. — Darei um conselho. Fique pronta para fugir esta noite, assim que a oportunidade surgir. Encha uma cabaça com amendoins, outra com sementes de cabaceira e uma terceira com água. Traga-as para mim, eu as usarei na hora certa.

A mãe do Leopardo passava pela rua e ouviu a conversa. “Por que Ilâmbe conversa com o Cavalo como se ele fosse gente?”, pensou ela, mas não comentou nada com sua nora.

Ogula-Njĕgâ voltou ao cair da noite. Não disse nada, mas estava com uma expressão séria. Ilâmbe estava inquieta e o olhar de seu marido a amedrontava.

Mais tarde, quando estavam prestes a ir dormir, ela perguntou:

— Por que você está com essa cara? Está bravo com alguma coisa?

— Não, não estou. Por que pergunta?

— Porque você parece estar incomodado com algo.

— Não, está tudo bem — respondeu ele. — Preocupações comuns. Amanhã tenho de acordar cedo.

Ogula-Njĕgâ, incomodado com as suspeitas de sua esposa, decidiu não matá-la naquela noite e esperar até o dia seguinte.

Ilâmbe não conseguiu dormir. O Leopardo saiu logo cedo, dizendo que tinha coisas a resolver, mas que voltaria logo. Enquanto seu marido estava fora, a princesa sentiu-se solitária e foi conversar com o cavalo, que considerou aquele o momento ideal para fugirem. Partiram imediatamente, sem avisar ninguém da aldeia e levaram consigo as três cabaças. Não podiam perder tempo, disse o Cavalo, pois quando o Leopardo descobrisse, iria atrás deles a toda velocidade. Kabala corria o mais rápido que podia, olhando para trás de vez em quando para averiguar se não estavam sendo seguidos.

Depois de algum tempo, Ogula-Njĕgâ voltou da aldeia e, ao chegar em casa, não encontrou Ilâmbe. Chamou sua mãe e perguntou sobre sua esposa. 

— Eu vi Ilâmbe conversando com o Kabala dela — respondeu a mãe. — Já faz dois dias que estão falando um com o outro.

O Leopardo saiu à procura deles e encontrou suas pegadas.

— Que vergonha! — gritou. — Minha esposa fugiu! Mas eu a encontrarei ainda hoje.

No mesmo instante transformou-se novamente em leopardo e saiu em disparada. Demorou algum tempo até que os fugitivos notassem seu perseguidor. Kabala, ao virar a cabeça, viu o Leopardo se aproximando em saltos rápidos que faziam seu corpo se esticar rente ao chão.

— Eu não avisei? Ele está atrás de nós! — o Cavalo gritou ofegante, com espuma pingando de sua boca.

Quando o Leopardo chegou mais perto, Kabala pediu para Ilâmbe pegar a cabaça com amendoins e espalhá-los pelo chão. Ogula-Njĕgâ, ao ver os amendoins, parou para comê-los. Com isso, o Cavalo conseguiu ganhar distância sobre seu perseguidor. Logo o felino já havia retomado a corrida e se aproximava dos dois. O Cavalo então pediu para Ilâmbe jogar as sementes de cabaceira. Mais uma vez, o Leopardo parou para comê-las e os fugitivos abriram vantagem novamente.

Após terminar de comer, o Leopardo voltou a persegui-los aos saltos e se aproximou novamente. Kabala mandou que Ilâmbe atirasse a terceira cabaça no chão com força, para que ela se quebrasse com o impacto. Assim o fez. A água que estava dentro da cabaça se transformou em um grande e largo rio, criando uma barreira entre eles e o Leopardo. Sem saber o que fazer, Njĕgâ gritou:

— Ilâmbe! Que vergonha! Ah, se eu conseguisse te pegar! — e foi embora.

— Não sabemos o que ele vai fazer agora — disse o Cavalo. — Talvez ele dê a volta para nos surpreender. Há uma cidade aqui perto, o melhor a fazer é ficarmos lá um ou dois dias para tentar despistá-lo. 

E acrescentou:

— Mulheres não são permitidas nessa cidade. Por isso, eu transformarei seu rosto e você se vestirá como um homem. Tenha muito cuidado durante os banhos. Se descobrirem seu disfarce, lhe matarão.

Ilâmbe concordou e Kabala mudou sua aparência. Os moradores se impressionaram ao ver aquele belo homem entrando na aldeia.

— Vejam, um forasteiro! Olá, estranho! Como encontrou o caminho até aqui?

— Por acaso — respondeu a jovem. — Estava cavalgando e encontrei uma trilha que me trouxe até aqui.

Foi convidada a uma das casas, onde foi acolhida e informada sobre os horários das refeições e outras atividades. No segundo dia, ao andar pela cidade, os homens comentaram:

— Ele se porta como uma mulher!

— Sério? Você acha mesmo?

— Sim! Eu vi claramente — tornou o primeiro.

Os problemas de Ilâmbe não terminariam aí. Os homens queriam confirmar suas suspeitas e disseram a ela:

— Amanhã vamos todos ao rio tomar banho e você virá conosco.

A princesa foi perguntar a Kabala o que fazer.

— Avisei para que tomasse cuidado! — repreendeu ele. — Mas não se preocupe, transformarei todo seu corpo no de um homem.

Durante a noite, Kabala a transformou e a advertiu novamente:

— Vou avisar mais uma vez. Amanhã, durante o banho com os outros, você pode se despir, pois está com o corpo de um homem. Mas é apenas temporário. Ficaremos aqui apenas mais um dia e uma noite, depois partiremos.

Na manhã seguinte, após todos cumprirem suas atividades, foram tomar banho. Ao chegarem ao rio, os aldeões estavam ansiosos para comprovar se o forasteiro era na verdade uma mulher, mas, ao admirarem seu belo corpo, perceberam seu engano. Ao saírem da água, um deles disse ao acusador de Ilâmbe:

— Como pôde dizer que era uma mulher? Veja que homem forte ele é!

Ilâmbe, transformada em homem, irritou-se ao ouvir aquilo e gritou:

— Você pensou que eu fosse uma mulher? — disse ela ao perseguir e estapear seu difamador.

Todos voltaram à cidade.

Naquela noite, o Cavalo falou para Ilâmbe:

— Eis o que você deve fazer amanhã: logo cedo, pegue seu revólver e me mate. Ao ouvir o disparo, os homens virão acusá-la de ter me matado sem razão. Não responda e não diga nada a eles. Corte-me em pedaços e os atire no fogo. Depois, bem cedo na manhã seguinte, antes de todos acordarem, recolha as cinzas cuidadosamente e espalhe-as na entrada da aldeia. Você verá o que vai acontecer.

A jovem fez conforme ordenado. Após espalhar as cinzas, ela imediatamente se viu novamente como mulher e montada em seu cavalo. Partiram no mesmo instante.

Naquele dia, à tarde, chegaram à cidade do rei Mborakinda. Uma vez lá, contaram (ou melhor, o Cavalo contou) tudo o que havia acontecido. Ilâmbe se sentia envergonhada por todos os apuros que sua exigência por um marido de pele lisa havia lhe causado.

— Ilâmbe, minha filha, veja os problemas que você causou a si mesma — disse o rei. — Para você, uma mulher, fazer tal exigência foi um exagero. Se eu não tivesse enviado Kabala com você, o que teria acontecido?

Todo o povo deu as boas-vindas a Ilâmbe, que voltou para sua casa e nunca mais falou nada sobre peles lisas.

Fonte: texto por Robert Hamill Nassau, in Elphinstone Dayrell, George W. Bateman e Robert Hamill Nassau. Contos Folclóricos Africanos vol. 1. (trad. Gabriel Naldi). Edição Bilingue. SESC. Distribuição gratuita.

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