sábado, 3 de fevereiro de 2024

Laé de Souza (Os dois amigos)

O Zé e o Tião eram amigos de infância. O Tião virou Dr. Sebastião e o Zé continua Zé. Mas era coisa previsível. Desde criança o Tião estudava enquanto o Zé não queria saber de nada. Com o passar do tempo o Sebastião continuava estudando e trabalhando e o Zé só em zoeira, bagunça, peladas, serestas e bebedeiras. O Tião comprou seu primeiro carro Aero Willys, depois trocou por outro e outro e hoje tem um quase zerinho e o Zé continua andando, de vez em quando, em bicicleta emprestada dos amigos. O Tião noivou e no casamento endividou-se para fazer uma festa de arromba. O Zé continua namorando e todas elas sabem que ele namora com todo mundo e nunca vai levar um caso a sério. O Tião anda com uns probleminhas com a sogra, mas acha que dá para desenrolar, principalmente depois que a mulher reclamou e ameaçou que se ele não acabar com as besteiras ela vai fazer o mesmo com a mãe dele. Sinceramente, o Zé nunca viveu isso e nunca teve sogra por muito tempo.

O Tião se preocupa com a bolsa, queda do dólar, preço dos imóveis, reclamações do caseiro, aumento na mensalidade da escola dos filhos, o acréscimo de despesa com o inglês do Juquinha, com a escola de computação e o tratamento dos dentes da Leninha. E o Zé desconfia que tem alguns filhos por aí, mas nem se liga e só fica fulo quando percebe que a sua Schincariol gelada subiu de preço. O Dr. Sebastião mede seus atos e palavras e tem, quer queira ou não, mesmo inconscientemente, que dar uma puxadinha de saco no chefe e participar de todas as festas e comemorações da empresa, mesmo não se sentindo bem com a companhia de certos colegas. Enquanto o Zé fala o que lhe der na telha e só vai em festas quando a pinga rola solta, o forró é bom e tem mulher bonita. O Dr. Sebastião torce pela estabilização da economia e para o aumento das vendas da companhia, para garantia do seu emprego, sendo que o Zé não está nem aí com a vida, nem com o desemprego. Pra ele qualquer coisinha é coisa e como diz: "Pra quem nasceu pelado, tanga é uma grande vestimenta."

A cada ano, nas férias do Dr. Sebastião, eles se cruzam na praia. O Tião sabe que o Zé sempre estará por lá, não é à toa que ele tem aquela cor queimadinha. Batem papos descontraídos e o Zé ainda o chama de Tião (até a mãe deixou de chamá-lo pelo apelido), ensina-o outra vez como comer siri, a simpatia para não se embebedar com a caipirinha e já alto o leva na mesa do lado para apresentar-lhe umas amigas (por sinal lindas e charmosas). Tião até ameaça cantarolar junto um samba batucado na caixa de fósforos, enquanto a sua mulher, já alta, continua lá na mesa e o olha com rabo-de-olho, ele sabe que como sempre ela vai ficar uns dias de ovo virado. 

De novo, na volta para casa, vai pensando, por que diabos quis levar a vida tão a sério e sente inveja e uma vontade imensa de ser o Zé. Nunca conseguiu dominar esse sentimento e em todo final de férias precisa voltar ao psicanalista, para se convencer de que o anormal é o Zé.

Fonte> Laé de Souza. Acredite se quiser. SP: Ecoarte, 2000. Enviado pelo autor.

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