sábado, 19 de agosto de 2023

Teófilo Braga (A Ogiva sombria)

Sem dúvida, no tempo da mais bela flor da arquitetura gótica, quando foi construída a catedral de Colônia, ligava-se uma grande importância a estes números simbólicos, porque a concepção ainda confusa das ideias racionais, contenta-se facilmente com estes sinais exteriores.

A Catedral! a criação suprema da Idade média, em que a arte, pelo sentimento, em uma estrofe de pedra, sabe concentrar o espírito radiante do cristianismo, pela força audaciosa do símbolo! Ela representa a aspiração incessante da alma que se eleva para o céu; é ela como a Esposa dos Cantares, que espera em silencio a visita do Amado, e se veste de suas galas e realça de encantos. A curva suave da Ogiva imita uns párpados (sobrancelhas) lânguidos, uma pupila cismadora, enleada naquele êxtase sensual do amor divino, que Thereza de Jesus sentia nos seus delírios místicos; as flechas atrevidas, atiradas para os ares, a linha a infinitivar-se, a perder-se no espaço, as agulhas bordadas, rendilhadas, são os cabelos dispersos, flutuantes da donzelinha, que se assenta cansada de errar pelas brenhas e em volta da cabana dos pastores à busca do amado. A cúpula altiva, representando aquele momento em que a alma se desprende dos limos terrenos e se absorve toda na mística unitiva, é o colo, que o poeta dos Cantares comparava à torre de marfim que olha para o ocidente, e cuja majestade é semelhante à da lua que se alevanta. Miguel Ângelo chama também a uma igreja, nas efusões do seu panteísmo artístico, mia sposa.

Cada monumento antigo é como uma fronte veneranda, enrugada pelos séculos, animada por uma expressão profunda. Essa expressão é a linguagem dos vos, criada pelo espírito que não pode contemplar um fato, acreditar na sua existência independentemente de uma ideia, de uma razão de ser que procura achar nele. É a fatalidade do enigma do esfinge. As Catedrais góticas reúnem quase sempre a lenda piedosa com a lenda grotesca e diabólica; elas são como a incerteza da alma que paira duvidosa entre a possessão e o êxtase. Umas vezes, são os anjos que vêm de noite trazer de longe grandes blocos para a edificação da fabrica, que lavram a pedra, que levantam o mosteiro. É a inspiração do anônimo nas obras grandiosas. Ás vezes, é o diabo, que com a mira em dilatar o seu império faz tudo, e transporta para a construção as melhores peças que rouba de outros monumentos, como uma coluna do templo de Diana em Éfeso para o templo de S. Zenon em Verona. A alma do arquiteto está retratada na sua concepção; receando de suas forças para realizar o ideal sublime dos sentimentos do cristianismo nos monolitos de mármore para que cria uma forma, não teme evocar a potencia das trevas. Nas Ogivas escuras, soturnas das Catedrais góticas, nos arabescos extravagantes das janelas esguias, nos monstros boquiabertos que servem de goteiras, nos basílicos informes dos pedestais, reflete-se esta aliança do misticismo poético com o misticismo divino. Muitas vezes a Catedral tem o mistério de um símbolo que se mobiliza para exprimir os sentimentos da humanidade; com as invasões e descobrimentos marítimos ela toma a forma de um navio voltado para o Oriente, donde lhe vem a luz; também imita uma cruz estendida ao longo, como na nossa maravilha de arquitetura, a Batalha, o poema da crença e do heroísmo de um século.

Estamos em plena Idade média. A noite era caliginosa e tétrica; o coriscar frequente dos relâmpagos, o ribombo estridente dos trovões repercutindo-se distante, e o restrugir medonho da floresta, completavam as harmonias intraduzíveis da tempestade. A alma, diante deste espetáculo estupendo da natureza, sentia uma pressão que a fazia concentrar-se possuída do sentimento do infinito, a que os homens que tudo indagam e submetem ás formulas metafisicas chamam—o sublime.

Via-se através da obscuridade absoluta das horas mortas um clarão incerto, como de a lâmpada veladora. Seria algum discípulo de Flamel ou de Lullo absorvido pelos mistérios da alquimia, submetendo a matéria, interrogando este Proteu eterno, que, a cada pergunta ostenta uma forma diversa, e responde de mil modos diferentes, sem que cheguem a surpreender-lhe o segredo de sua simplicidade? Seria um monge solitário enlevado na paz ignota da vigília, procurando, no silencio da noite, elevar-se pelo coração até Deus? A luz jorrava da janela do aposento humilde e sombrio. Dentro, sentia-se o respirar cansado de um peito opresso; a a lâmpada espalhava em torno uma penumbra em que flutuavam as visagens caprichosas de uma mente desvariada, e vinha refletir-se pálida, descorada sobre o rosto macilento, em que os gestos davam uma expressão incompreensível como os pensamentos que o agitam. Via-se naquele rosto impressa a ansiedade dos que penetram pela intuição a verdade de um problema insolúvel, e uma distração leve lhe a fez esquecer. Sobre uma mesa estavam pergaminhos extensos, desenrolados, cobertos de linhas cabalísticas, com que se evocam os espíritos noturnos, compassos e astrolábios, esferas e mapas.

Era ali que morava mestre Gerardo, o arquiteto da Catedral de Colônia. Estava contemplando o traçado da sua obra; a fisionomia animava-se-lhe de quando em quando com uma luz, um resplendor vivo de transfiguração, como num êxtase em que o ideal se deixava tocar, determinar em uma forma só concebida pela mente do homem. Os cabelos andavam-lhe revoltos, espalhados sobre a fronte, como nas convulsões de uma sibila quando entrevê o futuro, e sente o influxo vertiginoso que lhe dita o vaticínio. Depois, uma sombra espessa, como de um desgosto repentino, veio ofuscar-lhe a serenidade que se lhe espelhara na fronte, em que os anos redobravam a majestade.

Nisto, levou a mão à cabeça, como para suster o impulso de uma ideia que lhe ocorrera:

—A arte! a arte! é ela que me vem descobrir estas linhas que eu fixo no mármore, e que hão de ser a admiração dos séculos. Ela vem-me ensinar este segredo do ornato, a variedade disposta de modo, que leva o espírito à unidade do pensamento. A arte é uma religião que inspira também uma fé viva, ardente, intensa, e dá forças para afrontar a duvida, que cerca e punge o espírito criador. Um dia duvidaram de mim; não imaginavam que eu pudesse levantar essa mole de pedras, uma Catedral representando o voo místico da alma! Riram-se do plano da minha obra! Eu tenho pensado dias e noites, como na virgem eleita dos sonhos da mocidade. A Catedral! ela aparece-me na fantasia, iluminada por um sol fulgurante, transbordando de musicas e harmonias suaves, perfumada de incenso, revestida de purpura, reclamada de ouro, como a noiva que se veste para entrar no aposento do real esposo. Cada pedra que se vai dispondo, cada arco, cada pilastra erguida, é a ponta de um véu que se alevanta e me deixa vê-la, sonha-la, idealiza-la sobre essa realidade incompleta. É como a terra que vai aparecendo vagarosamente ao nauta cansado das tormentas, à medida que se esvaece o nevoeiro da madrugada. A Catedral! a Catedral! eu cismo e estremeço diante dela, quando a contemplo; sinto o delírio do artista grego apaixonado pela carnalidade que ia descobrindo o seu escopro (cinzel). Ela parece-me uma fada escondida, e que a arte me descobre o segredo para quebrar-lhe o encantamento, e mostra-la excelsa, bela, radiante elevando-se para o alto numa ascensão divina. Eu queria vê-la suspensa nos ares, servindo-lhe as nuvens e os cúmulos alvacentos de pedestal! Agora já me não inspira terror o desdém dos meus inimigos: descobri a ultima estrofe do poema da minha vida, hei de confundi-los, faze-los curvar-se adorando-a: é o zimbório, a cúpula arrojada ás alturas, semelhante ao voo estático da alma até à absorção em Deus.

Havia nestas palavras a vibração frenética do delírio; mestre Gerardo de Colônia ficou silencioso como na prostração dos fortes impulsos que lhe dera a alegria. Os olhos brilhavam humedecidos, cintilantes, exprimindo o regozijo intimo da contemplação da sua alma. E tornou a inclinar-se sobre a folha de pergaminho, a recompor na mente as linhas que ali traçara num momento de inspiração. Depois, acometido por um novo acesso de entusiasmo, arremessou de si o traçado; os olhos flamejaram coruscantes, parecia que estava doido:

—Eu quero mostrar assim, que essas Confrarias dos obreiros construtores de Strasburg, de Viena, de Zurique e Magdeburgo não podem disputar a proeminência a Colônia. Todos os obreiros e artífices da Baixa-Alemanha hão de reconhecer em mim a supremacia do chefe. Que importa que Strasburg queira ser a sede da grande mestria? De que vale a homenagem prestada pelas confraternidades maçónicas da Alta-Alemanha, de uma parte de França, da Hesse, da Suábia, de Thuringe, da Francônia e da Baviera? O zimbório da Catedral há de erguer-se bem alto para a admiração de todos.

E calou-se de repente, como envergonhando-se diante de si mesmo, de se haver deixado possuir daquela vaidade. Depois continuou com dor:

—Quantos monumentos estupendos, quantos obeliscos gigantes, que assombram as idades, e que mostram o poder criador do homem, competindo com as criações de Deus, quantas maravilhas espalhadas pela superfície da terra, e que o arquiteto não quis que se soubesse o seu nome, com uma abnegação sublime da gloria do mundo! Eu que ainda não completei a minha obra, que a tenho aqui na cabeça, nem sei mesmo se chegarei a realizar este sonho, se terei a força de Atlante para suster nos ares a cúpula audaciosa, eu, mesquinho, ufano-me, ensoberbeço-me! O gênio não tem consciência de si, não conhece o poder mágico de que dispõe, por isso não se infatua. O que é a gloria do mundo ante a glória celeste! Ilusão que nunca chega a ter um momento só de realidade; é uma nuvem tenuíssima que tolda o azul diáfano do empíreo. Para a alma do que preliba os encantos do céu, a glória do mundo é uma tentação dolorosa, um martírio incessante; porque então para ela a vida é como a luz vivida da a lâmpada, que se consome no silencio da noite diante da imagem veneranda; assim, a alma procura envolver-se no olvido, no esquecimento de si para resplandecer mais pura.

Os legendários estão cheios destas lutas violentas com os sentimentos mais profundos do coração do homem. Um dia Rubens estremeceu atônito diante de um quadro escondido na penumbra de um coro em uma igreja espanhola; o quadro era um mistério quase impossível de ser traduzido, divulgado pelas cores sobre a tela. Era a morte do justo. A mórbida expressão do rosto macilento, uma auréola divina difundindo-se em roda, a alma ansiosa pelo jubilo do céu a exalar-se docemente, como o último raio do sol da tarde, e por sobre a cabeça os anjos debruçando-se das alturas a contemplarem o monge na hora do passamento! Era uma transfiguração sublime, a ideia mais bela, a que resume todo o cristianismo, revelada pela arte. Quando o grande pintor voltou a si daquele êxtase imprevisto, sentiu-se pequeno ao pé de uma criação tão perfeita. Perguntou ao monge que o conduzia, que pincel realizara tamanha obra, para confessar-se seu discípulo, e proclama-lo à admiração do mundo. O monge sentiu um estremecimento convulsivo, e respondeu-lhe apenas:—«Não é já do mundo!» e quando ele voltou à sua cela, juntou os pincéis, a palheta e lançou-os na corrente de um ribeiro que deslizava manso à falda da janela; e para esconder as lágrimas que ainda uma vez lhe escaldaram as faces retintas na palidez da penitencia, foi procurar conforto na oração fervorosa. Como não teria também esta energia para lutar consigo aquele que escreveu na mudez da cela um livro de resignação e conforto, a Imitação de Cristo, e que abnegou dessa gloria para não torna-lo uma mentira!

Mestre Gerardo de Colônia ficara absorvido em uma meditação profunda. A tempestade continuava solene e grandiosa na mudez da noite. Sentiu um leve rumor no aposento, que a contenção de espírito em que estava mal deixou perceber. Prestou ouvidos. Batiam à porta.

—Quem será? assim tão fora de horas!—e correu os ferrolhos. Entrou uma figura alta, embuçada em um gabinardo longo, o rosto assombreado pelas abas de um largo chapelão.

—Quem sois?—inquiriu o arquiteto, preocupado ainda na sua abstração.

—Sou um irmão da Confraria dos obreiros construtores de Strasburg;—tornou o desconhecido com uma voz cava.

—Entrai.

Sentaram-se, contemplando-se um instante silenciosos.

—A que vindes?

—O que me traz?—redarguiu o desconhecido com um tom de ironia acerba,—deves sabe-lo melhor do que ninguém. Confias no zimbório da Catedral de Colônia, para quereres assim submeter à tua supremacia a mestria central de Strasburg. É impossível e quimérica essa tua loucura. As grandes lojas querem todas a independência. Demais o zimbório, a obra que é o teu orgulho, não está pronta e talvez nunca a possas levar ao cabo.

Mestre Gerardo ficou espantado, hirto de raiva diante da audácia do desconhecido. Depois, volveu-lhe com uma severidade que lhe abafava a voz:

—Ainda sou arquiteto! E o zimbório há de ser o primeiro a saudar no alto os alvores do sol quando se alevanta. Juro pela minha alma.

—Aposto em como te enganas!

—Aposto em como te hei de confundir, e a todas as maestrias rebeldes da Alemanha! —insistiu o arquiteto.

—Pois bem! Eu comecei há dias a obra do Aqueduto de Treves, e espero ainda vê-lo acabado antes de teres pronta a Catedral. Se assim não for, no dia em que deres por acabada a tua obra, despenho-me do Aqueduto. Tu precipitas-te também dos coruchéus (torres pontiagudas) da Catedral se eu vier reclamar primeiro? Aceitas a aposta?

—Aceito.

—Juras?

—Juro.

A este instante ouviu-se longe o canto do galo. O interlocutor misterioso desapareceu subitamente ás primeiras notas do anúncio da alvorada. Foi então que o arquiteto reconheceu o diabo; não quis acreditar na realidade daquele pesadelo. O canto do galo é celebrado nos hinos da igreja, principalmente nos de Santo Ambrósio.

Galo canente vigilemus omnes. (vamos todos assistir com o canto) Ele simboliza a voz interior que desperta a alma do sono da tentação; foi o canto do galo que despertou também a Pedro no átrio do Pretório, quando renegou o Mestre. No misticismo poético ele representa uma parte importante. A imaginação exaltada pelos sonhos da noite não podia deixar de revesti-lo de mistério. Já a Grécia lhe havia formado o mito: é o castigo de Alectrião. A sombra que reclama de Hamlet uma vingança, o coro das feiticeiras de Macbeth, desaparecem com a magia desse canto.

Um dia o arquiteto subira à Catedral; estava prestes a terminar-se a cúpula. A alegria alucinava-o. Aparecer-lhe então uma cabeça disforme, rindo, confrangendo-se em esgares satânicos por entre as sombras profundas de uma ogiva. Disse-lhe que estava pronto o Aqueduto de Treves. Mestre Gerardo empalideceu e voltou o rosto à pressa! Aquela nova enterrava-o. Baixou os olhos como para suspender uma vertigem instantânea, fatalmente o relance mediu a altura da Catedral; o ângulo visual dilatou-se de modo que lhe produziu a atracação do abismo. Resistiu debalde, vacilou um instante e despenhou-se por fim. Disseram que fora a alegria explosiva de ver a sua obra, que lhe causara o desvario que o precipitou.

Assim conseguiu estabelecer o seu predomínio à Maestria central de Strasburg.

Fonte:
Disponível em Domínio Público
Teófilo Braga. Contos Phantásticos. Lisboa: Livraria de Antonio Maria Pereira, 1894.
Português atualizado por J. Feldman

sexta-feira, 18 de agosto de 2023

Ademar Macedo (Ramalhete de Trovas) 10

 

Silmar Böhrer (Croniquinha) 89

Varo montes, monturos, montanhas em busca do mais bonito, do mais salutar, do mais gostoso, e não vejo o melhor. 

Nalgum momento estou diante do espelho e enxergo o que não passou nas retinas nem nos umbrais do pensamento. 

Será que o melhor não está bem pertinho de nós, dentro de nós, na nossa essência, e não sabemos ou não conseguimos vasculhar? 

Onde estará o melhor? Adonde? 

Fonte:
Texto enviado pelo autor 

Lima Barreto (Um bom diretor)

Estranhou o prefeito, ao ler a folha oficial, naquela manhã, que o seu diretor de Instrução Pública tivesse designado um inspetor escolar para reger uma escola elementar em Campo Grande.

Estranhou e não era possível que tal não se desse, mas quis atribuir o fato a
injunções políticas. Em Campo Grande, no castelo feudal do Caroba, cercado de cemitérios povoados, reside o poderoso senador Rapadura, prócer do P. R. C. e dono da cidade e arredores.

Ele mesmo, prefeito, tinha que lhe obedecer as ordens; e, certamente, o seu diretor da Instrução Pública designou um inspetor escolar para reger uma escola de a-b-c em obediência a pedidos do poderoso perturbador da paz dos campos santos. 

Mas, por que seria que Rapadura queria em Campo Grande um sábio inspetor escolar? Vaidade de habitante do lugarejo, que o desejava ver assim honrado e exaltado?

Não era possível. O profanador dos túmulos, o desinquietador do sono dos defuntos, não tinha nenhum amor pelo lugar que habitava. Não pedira para ele nenhum melhoramento, e isto há vinte anos. Como é, então, que tinha tido esse assomo de vaidade? Era inexplicável. Ah... Era isto. O senador era conhecido pelas suas poucas letras e tinha mesmo dificuldades em ler os jornais, de modo que, ao crescer-lhe a idade, teve o capricho de aperfeiçoar a sua instrução primária.

Há trelas na velhice que bem parecem de menino. Os extremos tocam-se. Sendo assim, não era decente que um senador, um legislador, fosse recapitular o quanto diz a aritmética de Trajano, sob os olhos de uma moça. O discípulo exigia um professor mais respeitável e graduado. Estava explicado o ato do seu diretor.

O prefeito almoçou, tomou o automóvel que o esperava no portão e partiu
célere para o palácio da prefeitura. Quando chegou a seu gabinete, que a muito custo pôde alcançar, o seu mesureiro secretário adiantou-se e antes de mais nada foi dizendo:

— Doutor, o novo diretor da instrução quer provocar uma revolução.

— Como?

— Com a tal nomeação de um inspetor escolar para professor elementar em Campo Grande.

— Revolução?

— Sim. Vossa Excelência não viu como as moças estão aí nos corredores amotinadas? Elas se dizem lesadas e os outros inspetores estão magoados e as atiçam contra Vossa Excelência.

O prefeito pensou e disse:

— Vá chamar-me o doutor Café.

O secretário foi em pessoa e em breve o diretor voltava, tendo atravessado as antessalas entre alas de professoras, adjuntas, estagiárias, normalistas, quase debaixo de vaia.

O prefeito perguntou-lhe logo com o sobrecenho carregado:

— Doutor Café, como é que o senhor nomeia para uma escola elementar um inspetor escolar?

— Que tem isso?

— E o regulamento?

— Vossa Excelência sabe perfeitamente que sou médico, entendo de patologia e algumas outras coisas mais...

— O Abel Parente já me havia dito.

— ... de instrução pública do município, pois, nada entendo.

— Como?

— Disse isto a Vossa Excelência no meu discurso de posse, não se lembra? Veio até nos jornais. Disse bem claro: “não entendo de instrução pública no Distrito Federal”.

— É verdade. - continuei.

Fonte:
Lima Barreto. Histórias e sonhos. Conto publicado originalmente em 1915.
Disponível em Domínio Público 

Daniel Maurício (Gotas Poéticas) – 1


Ah, Jaguariaíva...
Dos contos
Dos cantos
Dos encantos.
Em tuas ruazinhas,
Meu coração
Paralelepípedo.
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Ao tocar
As pétalas dos teus lábios
Flores desabrocham
Em efusivos beijos.
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As imagens do tempo
Ficaram encalacradas
No velho espelho
E o sorriso sem jeito
Ficou imperfeito pela mancha no aço
No corredor semi-escuro
Com ladrilhos em mosaico
Desfilam lembranças
Com chinelos de veludo
E o espelho
Com olhar cansado
Já não guarda mais segredo
Com silêncio centenário
O relógio de parede
Assiste a tudo
Pois já os seu ponteiros
Parados
Marcam um tempo indefinido.
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Com maestria
Do meu corpo
Arrancas notas de alegria.
Bemóis e sustenidos
A exaustão,
Dos movimentos repetidos
Sem nenhuma pausa
Da alma em êxtase
Escapa um desafinado gemido.
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Desiludida,
Na sombra do meu silêncio
Me protegi
Mas tão ingênua
Não percebi
Que você já estava
Todo tatuado
Em mim.
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Deslizam saudades
Nas gotas miúdas
Da garoa silenciosa
São lembranças que escorrem
Histórias que correm
Saídas do esconde-esconde
Setenta são os anos
Mas muitos mais estão nos planos
Daquele lá de cima
A alma tão jovem
A todos comove
Com as palavras não faz regime
Assim mantem-se tão forte
Na prece busca o seu norte
Sob a luz divina.

(Homenagem ao amigo e irmão George Abrão)
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Entre silêncios e sussurros
O vento desperta
O som
Que dorme nas conchas
E sem fazer ondas
A alma navega em paz.
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Já FUI tantas coisas
Sou EX de outras tantas
Só não quero vir a SER
Um EX da vida tua.
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Na palma de minhas mãos...
Linha da cabeça
Linha do destino
Linha da vida
Linha do coração
Misturam-se todas
As minhas e as tuas
No ato de dar as mãos
Confunde-se a cigana
Pois um só
É o caminho de quem ama
Que mostra-se tão evidente
No andar contente
Com um entrelaçar de mãos,
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Os calos do tempo
Calados
Falam tão alto
Ensinando
Que os nós da vida
Não são o fim
São voltas
Em torno de si mesmos
Apontando incansáveis
Para novos caminhos do porvir.
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Passastes em meu caminho
Feito um asfalto quente
E tudo ficou diferente
Que até hoje
A tua ausência dói em mim.
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Rá, rá , rá !
O sapo sabe voar.
Não tem penas
Não tem asas
Mas no ar sabe saltar.
Rá, rá, rá !
O sapo sabe voar.
De astronauta
A Príncipe Encantado
No banhado, pobre coitado
Foi cavalgar.
Rá, rá, rá!
O sapo sabe voar.
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Se o vento
Ao contrário sopra
Com ele faço um cata-vento.
Sigo meu caminho atento
Em Deus,
Firmo sempre o pensamento.
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Sereia da água doce
Como queria que você fosse
Tão minha,
Como das águas é.
Meus olhos encantados
Me deixam acorrentado
Escravo sou
De você, mulher.
De desejo e saudade
Em mim até formo lago
De lágrimas, ai que salgado!
Será que um dia
Você vai me pertencer?
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Daniel Maurício. Gotas Poéticas. São Carlos/SP: Pedro & João Ed., 2021.
Enviado pelo autor 

João do Rio (As mariposas do luxo)

— Olha, Maria...

— É verdade! Que bonito!

As duas raparigas curvam-se para a montra (vitrine à mostra), com os olhos ávidos, um vinco estranho nos lábios. Por trás do vidro polido, arrumados com arte, entre estatuetas que apresentam pratos com bugigangas de fantasia e a fantasia policroma de coleções de leques, os desdobramentos das sedas, das plumas, das guipures (1), das rendas.

É a hora indecisa em que o dia parece acabar e o movimento febril da Rua do Ouvidor relaxa-se, de súbito, como um delirante a gozar os minutos de uma breve acalmia. Ainda não acenderam os combustores, ainda não ardem a sua luz galvânica os focos elétricos. Os relógios acabaram de bater, apressadamente, seis horas. Na artéria estreita cai a luz acinzentada das primeiras sombras — uma luz muito triste, de saudade e de mágoa. Em algumas casas correm com fragor as cortinas de ferro. No alto, como o teto custoso do beco interminável, o céu, de uma pureza admirável, parecendo feito de esmaltes translúcidos superpostos, rebrilha, como uma joia em que se tivessem fundido o azul de Nápoles, o verde perverso de Veneza, os ouros e as pérolas do Oriente.

Já passaram as professional beauties, cujos nomes os jornais citam; já voltaram da sua hora de costureiro ou de joalheiro as damas do alto tom; e os nomes condecorados da finança e os condes do Vaticano e os rapazes elegantes e os deliciosos vestidos claros airosamente ondulantes já se sumiram, levados pelos “autos”, pelas parelhas fidalgas, pelos bondes burgueses. A rua tem de tudo isso uma vaga impressão, como se estivesse sob o domínio da alucinação, vendo passar um préstito que já passou. Há um hiato na feira das vaidades: sem literatos, sem poses, sem flirts. Passam apenas 129 trabalhadores de volta da faina e operárias que mourejaram todo o dia.

Os operários vêm talvez mal-arranjados, com a lata do almoço presa ao dedo mínimo. Alguns vêm de tamancos. Como são feios os operários ao lado dos mocinhos bonitos de ainda há pouco! Vão conversando uns com os outros, ou calados, metidos com o próprio eu. As raparigas ao contrário: vêm devagar, muito devagar, quase sempre duas a duas, parando de montra em montra, olhando, discutindo, vendo.

— Repara só, Jesuína.

— Ah! minha filha. Que lindo!...

Ninguém as conhece e ninguém nelas repara, a não ser um ou outro caixeiro em mal de amor ou algum pícaro sacerdote de conquistas. Elas, coitadinhas, passam todos os dias a essa hora indecisa, parecem sempre pássaros assustados, tontos de luxo, inebriados de olhar. Que lhes destina no seu mistério a vida cruel? Trabalho, trabalho; a perdição, que é a mais fácil das hipóteses; a tuberculose ou o alquebramento numa ninhada de filhos. Aquela rua não as conhecerá jamais. Aquele luxo será sempre a sua quimera.

São mulheres. Apanham as migalhas da feira. São as anônimas. E então, todo dia, quando o céu se rocalha de ouro e já andam os relógios pelas seis horas, pode-se vê-las passar, algumas loiras, outras morenas, quase todas mestiças. A idade dá-lhes a elasticidade dos gestos, o jeito bonito do andar e essa beleza passageira que chamam — do diabo. Os vestidos são pobres: saias escura sempre as mesmas; blusa de chitinha rala. Nos dias de chuva um parágua e a indefectível pelerine. Mas essa miséria é limpa, escovada. As botas brilham, a saia não tem uma poeira, as mãos foram cuidadas. Há nos lóbulos de algumas orelhas brincos simples, fechando as blusas lavadinhas, broches “montana”, donde escorre o fio de uma chatelaine (2).

Há mesmo anéis — correntinhas de ouro, pedras que custam barato; coralinas, lápis-lazúli, turquesas falsas. Quantos sacrifícios essa limpeza não representa? Quantas concessões não atestam, talvez, os modestos pechisbeques (3)!

Elas acordaram cedo, foram trabalhar. Voltam para o lar sem conforto, com todas as ardências e os desejos indomáveis dos vinte anos.

A rua não lhes apresenta só o amor, o namoro, o desvio... Apresenta-lhes o luxo. E cada montra é a hipnose e cada rayon de modas é o foco em torno do qual reviravolteiram e anseiam as pobres mariposas.

— Ali no fundo, aquele chapéu...

— O que tem uma pluma?

— Sim, uma pluma verde... Deve ser caro, não achas?

São duas raparigas, ambas morenas. A mais alta alisa instintivamente os bandós (4), sem chapéu, apenas com pentes de ouro falso. A montra reflete-lhe o perfil entre as plumas, as rendas de dentro; e enquanto a outra afunda o olhar nos veludos que realçam toda a espetaculização do luxo, enquanto a outra sofre aquela tortura de Tântalo, ela mira-se, afina com as duas mãos a cintura, parece pensar coisas graves. Chegam, porém, mais duas. A pobreza feminina não gosta dos flagrantes de curiosidade invejosa. O par que chega, por último, pára hesitante. A rapariga alta agarra o braço da outra:

— Anda daí! Pareces criança.

— Que véus, menina! Que véus!...

— Vamos. Já escurece.

Param passos adiante, em frente às enormes vitrinas de uma grande casa de modas. As montras estão todas de branco, de rosa, de azul; desdobram-se em sinfonias de cores suaves e claras, dessas cores que alegram a alma. E os tecidos são todos leves — irlandas, guipures, pongées, rendas. Duas bonecas de tamanho natural — as deusas do “Chiffon” nos altares da frivolidade — vestem com uma elegância sem par; uma de branco, robe Empire; outra de rosa, com um chapéu cuja pluma negra deve custar talvez duzentos mil réis. 

Quanta coisa! quanta coisa rica! Elas vão para a casa acanhada jantar, aturar as rabugices dos velhos, despir a blusa de chita — a mesma que hão de vestir amanhã... E estão tristes. São os pássaros sombrios no caminho das tentações. Morde-lhes a alma a grande vontade de possuir, de ter o esplendor que se lhes nega na polidez espelhante dos vidros.

Por que pobres, se são bonitas, se nasceram também para gozar, para viver?

Há outros pares gárrulos (tagarelas), alegres, doidivanas, que riem, apontam, esticam o dedo, comentam alto, divertem-se, talvez mais felizes e sempre mais acompanhadas. O par alegre entontece diante de uma casa de flores, vendo as grandes corbeilles, o arranjo sutil das avencas, dos cravos, das angélicas, a graça ornamental dos copos de leite, o horror atraente das parasitas raras.

— Sessenta mil réis aquela cesta! Que caro! Não é para enterro, pois não?

— Aquilo é para as mesas. Olhe aquela florzinha. Só uma, por vinte mil réis.

— Você acha que comprem?

— Ora, para essa moças... os homens são malucos.

As duas raparigas alegres encontram-se com as duas tristes defronte de uma casa de objetos de luxo, porcelanas, tapeçarias. Nas montras, com as mesmas atitudes, as estátuas de bronze, de prata, de terracota, as cerâmicas de cores mais variadas repousam entre tapetes estranhos, tapetes nunca vistos, que parecem feitos de plumas de chapéu. Que engraçado! Como deve ser bom pôr os pés na maciez daquela plumagem! As quatro trocam ideias.

— De que será?

A mais pequena lembra perguntar ao caixeiro, muito importante, à porta. As outras tremem.

— Não vá dar uma resposta má...

— Que tem?

Hesita, sorri, indaga:

— O senhor faz favor de dizer... Aqueles tapetes?...

O caixeiro ergue os olhos irônicos.

— Bonitos, não é? São de cauda de avestruz. Foram precisos quarenta avestruzes para fazer o menor. A senhora deseja comprar?

Ela fica envergonhadíssima; as outras também. Todas riem tapando os lábios com o lenço, muito coradas e muito nervosas. Comprar! Não ter dinheiro para aquele tapete extravagante parece-lhes ao mesmo tempo humilhante e engraçado.

— Não, senhor, foi só para saber. Desculpe...

E partem. Seguem como que enleadas naquele enovelamento de coisas capitosas — montras de rendas, montras de perfumes, montras toilettes, montras de flores — a chamá-las, a tentá-las, a entontecê-las com corrosivo desejo. Afinal, param nas montras dos ourives.

Toda a atmosfera já tomou um tom de cinza escuro. Só o céu de verão, no alto, parece um dossel de paraíso, com o azul translúcido a palpitar uma luz misteriosa. Já começaram a acender os combustores na rua, já as estrelas de ouro ardem no alto. A rua vai de novo precipitar-se no delírio. Elas fixam a atenção. Nenhuma das quatro pensa em sorrir. A joia é a suprema tentação. A alma da mulher exterioriza-se irresistivelmente diante dos adereços. Os olhos cravam-se ansiosos, numa atenção comovida que guarda e quer conservar as minúcias mais insignificantes. A prudência das crianças pobres faz-as reservadas.

— Oh! aquelas pedras negras!

— Três contos!

Depois, como se ao lado um príncipe invisível estivesse a querer recompensar a mais modesta, comentam as joias baratas, os objetos de prata, as bolsinhas, os broches com corações, os anéis insignificantes.

— Ah! se eu pudesse comprar aquele!

— É só quarenta e cinco! E aquele reloginho, vês? de ouro...

Mas, lá dentro, o joalheiro abre a comunicação elétrica, e de súbito, a vitrina, que morria na penumbra, acende violenta, crua, brutalmente, fazendo faiscar os ouros, cintilar os brilhantes, coriscar os rubis, explodir a luz veludosa das safiras, o verde das esmeraldas, as opalas, os esmaltes, o azul das turquesas. Toda a montra é um tesouro no brilho cegador e alucinante das pedrarias. 

Elas olham sérias, o peito a arfar. Olham muito tempo e, ali, naquele trecho de rua civilizada, as pedras preciosas operam, nas sedas dos escrínios, os sortilégios cruéis dos antigos ocultistas. As mãozinhas bonitas apertam o cabo da sombrinha como querendo guardar um pouco de tanto fulgor; os lábios pendem no esforço da atenção; um vinco ávido acentua os semblantes. Onde estará o príncipe encantador? Onde estará o velho D. João?

Um suspiro mais forte — a coragem da que se libertou da hipnose — faz-as despegar-se do lugar. É noite. A rua delira de novo. À porta dos cafés e das confeitarias, homens, homens, um estridor, uma vozeria. Já se divisam perfeitamente as pessoas no Largo de São Francisco — onde estão os bondes para a Cidade Nova, para a Rua da América, para o Saco. Elas tomam um ar honesto. Os tacões das botinas batem no asfalto. Vão como quem tem pressa, como quem perdeu muito tempo.

Da Avenida Uruguaiana para diante não olham mais nada, caladas, sem comentários. Afinal chegam ao Largo. Um adeus, dois beijos, “até amanhã!” Até amanhã! Sim, elas voltarão amanhã, elas voltam todo dia, elas conhecem nas suas particularidades todas as montras da feira das tentações; elas continuarão a passar, à hora do desfalecimento da artéria, mendigas do luxo, eternas fulanitas da vaidade, sempre com a ambição enganadora de poder gozar as joias, as plumas, as rendas, as flores.

Elas hão de voltar, pobrezinhas — porque a esta hora, no canto do bonde, tendo talvez ao lado o conquistador de sempre, arfa-lhes o peito e têm as mãos frias com a ideia desse luxo corrosivo. Hão de voltar, caminho da casa, parando aqui, parando acolá, na embriaguez da tentação — porque a sorte as fez mulheres e as fez pobres, porque a sorte não lhes dá, nesta vida de engano, senão a miragem do esplendor para perdê-las mais depressa.

E haveis então de vê-las passar, as mariposas do luxo, no seu passinho modesto, duas a duas, em pequenos grupos, algumas loiras, outras morenas…
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Notas:
(1) Guipure = Espécie de renda cuja trama comporta três sistemas de fios.
(2) Chatelaine = é um gancho de cinto decorativo ou fecho usado na cintura com uma série de correntes suspensas a partir dele. Cada corrente é montada com apêndices domésticos úteis, como tesouras, dedais, relógios, chaves, sais aromáticos e selos domésticos.
(3) Pechisbeque = Liga metálica (cobre e zinco) que se assemelha ao ouro.
(4) Bandó = Cada uma das duas partes do cabelo que, separadas desde a testa á nuca, se enrolam ou assentam nas fontes da cabeça.

Fonte:
João do Rio. A Alma Encantadora das Ruas. Publicado em 1908.
Disponível em Domínio Público. 

quinta-feira, 17 de agosto de 2023

Adega de Versos 110: Luiz Otávio

 

Francisco Brito de Lacerda (Funéreos adereços)


Ainda moço, meia-idade, nomeado Coletor de Rendas na Linha Sul, Neco Pacheco foi viver em Irati. Logo fez amigos, comandando certas iniciativas. Organizar um baile, por exemplo, tira-lhe muito gosto.

Naquele 31 de dezembro, sexta, depois do almoço, o aventureiro coletor se ocupava em decorar um salão para o grande baile de Ano Novo. Até uma quadrilha ia ser dançada.

Sentiu-se tonto, de repente, o nosso Neco Pacheco. Pôs as mãos no peito, onde se localizava a dor cruelíssima que o fazia rebentar os botões da camisa; pálido, deitado no assoalho, a cabeça apoiada numa almofada, ele suava em bicas.

Quando o médico chegou, Neco tinha acabado de morrer. Fretado um trem especial para levar o corpo a Curitiba, umas cem pessoas, entre amigos e parentes, esperavam a chegada do comboio na plataforma.

O trem encostou depois das onze da noite. O caixão lilás, enfeites dourados, saindo do bagageiro pelas mãos dos parentes mais próximos (um em cada alça), foi transferido para o coche, ao qual estavam atrelados quatro cavalos brancos, o arreamento guarnecido com negros laços de cetim.

Devagar, o coche subia a Rua Barão. Seguiam-no os acompanhantes. Um Desembargador, amigo da família, a cada passo tirava o relógio da algibeira, como a conferir quanto faltava para meia-noite.

No instante em que o enterro achava-se prestes a atingir a esquina da Barão com Rua Quinze, começou o esfuziar de foguetes, que estouravam nos céus de Curitiba.

Batiam os sinos da Catedral, festivos. Ouvia-se à distância o apito das fábricas. Era o ano novo que chegava.

Na calçada, perplexa melindrosa, fita na testa, lábios muito pintados, só faltava bater palmas à passagem do funeral. Moço sensível, um primo do morto sentia-se personagem de melodrama.

Cutucando o acompanhante, que caminhava ao seu lado e fingia não ouvir o foguetório, ele disse:

"Bons-anos!"

"Bons-anos", o outro retribuiu.

Bem nessa hora, a vara de um foguete caiu entre os cavalos, que ameaçaram disparar. Quase derrubando a cartola, o cocheiro conseguiu conter os animais.

Com o enterro perto da Praça Tiradentes, os sinos da Catedral tinham silenciado. Raros foguetes ainda subiam nas bandas do Pilarzinho. Permanecia no ar o triste apito de um engenho.

Já se podia dizer que era sábado, primeiro de janeiro.

Fonte:
300 Histórias do Paraná: coletânea. Curitiba: Artes e Textos, 2004.

Luiz Poeta (Poemas Escolhidos) – 17 –


 AMANTE É QUEM AMA

Somos amantes sem sê-lo,
Mesmo epidermicamente,
Somos mesmo sem sabê-lo,
Somos amantes na mente.

Se um corpo alheio, ao vê-lo,
Sentimos um calor fremente
E, num átimo, por tê-lo,
Ansiamos de repente...

Mesmo estando tão presente
A pessoa que nos ama,
Mesmo estando até na cama
Em carícias envolventes...

Traímos o que nos sente,
Sem, todavia, traí-lo,
Sentimos o amante ausente,
Sem, entretanto, senti-lo.

E não depende da gente
Lembrar alguém no momento
Do amor mais forte e envolvente,
Repleto de sentimento.

Traímos no pensamento,
Sem toques e sem contatos,
Portanto, se não há ato,
Não traímos, tão-somente.

Se em pensamentos traímos...
Traímos!... mas quem reclama?
Porque, quando nos unimos,
Amante é aquele que ama.
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BÊNÇÃO SEM GRAÇA

Se a mágoa do que diz que é mais cristão
que o outro, é maior que perdoar,
que graça há em chamar alguém de irmão,
trazendo incompreensão no próprio olhar?

Se a arrogância opõe-se ao perdão
em quem fala de amor sem nem amar,
que bênção cabe nesse coração
que diz o que Deus diz... sem praticar?

Comete estelionato, o pregador
que não consegue ver, no próprio espelho,
o quanto é prepotente ante os demais

porque, quem se apoia num joelho,
querendo levantar-se, ante o Senhor,
jamais será melhor que os seus iguais.
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CARAS VITRINES ESPELHOS

Viver não é sofrer de forma avara,
A tara de uma dor que o ser inventa,
É ver em cada espelho, nova cara
A cada vez que a dor nos violenta.

É rir, quando o espelho se depara
Com a cara que a tristeza nos empresta
Porque a flor que fere é a que sara
A dor de cada cara em cada aresta.

Viver é conviver com cicatrizes;
Felizes são aqueles que guardaram
As marcas do seu tempo de aprendizes
E tatuaram dores que sararam.

Espelhos são os olhos da razão;
Vitrines são desejos coloridos
Da alma que transforma em sedução,
Apenas sentimentos refletidos.

Amar implica dar algum sentido
Ao tempo que se tem, e transformar
O dom de abençoar o amor vivido
No brilho que abençoa o próprio olhar.
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MINHA MAJESTADE

Não deixes meu olhar dormir no teu,
Eu corro o doce risco de sonhar
A história linda e triste de um plebeu
Que foi pela rainha se encantar.

Não deixes meu o olhar se apaixonar.
O calabouço escuro de uma dor
É o final feliz de um sonhador
Que um dia descobriu o que é amar.

A ponte levadiça se fechou
E dentro do Castelo, eu percebi
Que em cada verde bosque onde vivi,
Não vi que a liberdade se escondeu.

Amei o teu olhar no meu olhar...
Narcisos é que amam refletir
Seus rostos, mas se o espelho lhes mentir,
Vaidosos, eles tentam se matar.

Se esse teu rei souber dos meus anseios
De amar sua rainha... hás de convir,
A sua espada em mim, há de brandir
E exterminar meus trôpegos enleios.

Mas mesmo assim, teu servo passional
Há de sonhar... Quem há de me impedir?
Que eu morra, vendo o teu olhar sorrir,
...assim, te tornarei mais imortal.

Se sou um camponês, que volte e voe...
Pois quem nasceu no bosque é passarinho
E quando o céu azul é o caminho,
Que eu busque em cada bosque que me abençoe.
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TEU ENREDO

Abençoa o enredo da tua história,
Que possui sensacionais alegorias,
E se lembras de tuas lindas fantasias
Tu manténs as alegrias na memória.

Ouve o disco... resgata teus sentimentos
E escreve-os!... teu sorriso é um bom passista,
Que ao dançar, acaricia a própria pista
No instante dos mais doces pensamentos.

O teu coração e bom percussionista
Da emoção que te abençoa a vida inteira
E se a vida é uma batida passageira,
Tens bem mais que um coração por baterista.

Teu amor nem sempre foi bom ritmista,
Porque às vezes ele é muito passional,
Porque faz teu coração pulsar tão mal.
Que tua dor se torna bem mais intimista.

Teu enredo ainda tem muita avenida,
Tua escola tem muito que desfilar
E se esse teu coração sabe sambar,
O teu samba-enredo é tua própria vida.
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Fonte:
Luiz Poeta. Nuvens de versos. Campo Mourão/PR: Ed. Jfeldman, 2020.

Graciliano Ramos (O olho torto de Alexandre)

— Esse caso que vossemecê escorreu é uma beleza, seu Alexandre, opinou seu Libório. E eu fiquei pensando em fazer dele uma cantiga para cantar na viola.

— Boa ideia, concordou o cego preto Firmino. Era o que seu Libório devia fazer, que tem cadência e sabe o negócio. Mas aí, se me dão licença... Não é por querer falar mal, não senhor.

— Diga, seu Firmino, convidou Alexandre.

— Pois é, tornou o cego. Vossemecê não se ofenda, eu não gosto de ofender ninguém. Mas nasci com o coração perto da goela. Tenho culpa de ter nascido assim? Quando acerto num caminho, vou até topar.

— Destampe logo, seu Firmino, resmungou Alexandre enjoado. Para que essas nove-horas?

— Então, como o dono da casa manda, lá vai tempo. Essa história da onça era diferente a semana passada. Seu Alexandre já montou na onça três vezes, e no princípio não falou no espinheiro.

Alexandre indignou-se, engasgou-se, e quando tomou fôlego, desejou torcer o pescoço do negro:

— Seu Firmino, eu moro nesta ribeira há um bando de anos, todo o mundo me conhece, e nunca ninguém pôs em dúvida a minha palavra.

— Não se aperreie não, seu Alexandre. É que há umas novidades na conversa. A moita de espinho apareceu agora.

— Mas, seu Firmino, replicou Alexandre, é exatamente o espinheiro que tem importância. Como é que eu me iria esquecer do espinheiro? A onça não vale nada, seu Firmino, a onça é coisa à toa. Onças de bom gênio há muitas. O senhor nunca viu? Ah! Desculpe, nem me lembrava de que o senhor não enxerga. Pois nos circos há onças bem ensinadas, foi o que me garantiu meu mano mais novo, homem sabido, tão sabido que chegou a tenente de polícia. Acho até que as onças todas seriam mansas como carneiros, se a gente tomasse o trabalho de botar os arreios nelas. Vossemecê pensa de outra forma? Então sabe mais que meu irmão tenente, pessoa que viajou nas cidades grandes.

Cesária manifestou-se:

— A opinião de seu Firmino mostra que ele não é traquejado. Quando a gente conta um caso, conta o principal, não vai esmiuçar tudo.

— Certamente, concordou Alexandre. Mas o espinheiro eu não esqueci. Como é que havia de esquecer o espinheiro, uma coisa que influiu tanto na minha vida?

Aí Alexandre, magoado com a objeção do negro, declarou aos amigos que ia calar-se. Detestava exageros, só dizia o que se tinha passado, mas como na sala havia quem duvidasse dele, metia a viola no saco. Mestre Gaudêncio curandeiro e seu Libório cantador procuraram com bons modos resolver a questão, juraram que a palavra de seu Alexandre era uma escritura, e o cego Firmino desculpou-se rosnando.

— Conte, meu padrinho, rogou Das Dores.

Alexandre resistiu meia hora, cheio de melindres, e voltou às boas.

— Está bem, está bem. Como os amigos insistem...

Cesária levantou-se, foi buscar uma garrafa de cachimbo e uma xícara. Beberam todos, Alexandre se desanuviou e falou assim:

— Acabou-se. Vou dizer aos amigos como arranjei este defeito no olho. E aí seu Firmino há de ver que eu não podia esquecer o espinheiro, está ouvindo? Prestem atenção, para não me virem com perguntas e razões como as de seu Firmino. Ora muito bem. Naquele dia, quando o pessoal lá de casa cobrou a fala, depois do susto que a onça tinha causado à gente, meu pai reparou em mim e botou as mãos na cabeça: — “Valha-me, Nossa Senhora. Que foi que lhe aconteceu, Xandu?” Fiquei meio besta, sem entender o que ele queria dizer, mas logo percebi que todos se espantavam. Devia ser por causa da minha roupa, que estava uma lástima, completamente esmolambada. Imaginem. Voar pela capoeira no escuro, trepado naquele demônio. Mas a admiração de meu pai não era por causa da roupa, não. — “Que é que você tem na cara, Xandu?” perguntou ele agoniado. Meu irmão tenente (que naquele tempo ainda não era tenente) me trouxe um espelho. Uma desgraça, meus amigos, nem queiram saber. Antes de me espiar no vidro, tive uma surpresa: notei que só distinguia metade das pessoas e das coisas. Era extraordinário. Minha mãe estava diante de mim, e, por mais que me esforçasse, eu não conseguia ver todo o corpo dela. Meu irmão me aparecia com um braço e uma perna, e o espelho que me entregou estava partido pelo meio, era um pedaço de espelho. “Que trapalhada será esta?” disse comigo. E nada de atinar com a explicação. Quando me vi no caco de vidro é que percebi o negócio. Estava com o focinho em miséria: arranhado, lanhado, cortado, e o pior é que o olho esquerdo tinha levado sumiço. A princípio não abarquei o tamanho do desastre, porque só avistava uma banda do rosto. Mas virando o espelho, via o outro lado, enquanto o primeiro se sumia. Tinha perdido o olho esquerdo, e era por isso que enxergava as coisas incompletas. Baixei a cabeça, triste, assuntando na infelicidade e procurando um jeito de me curar. Não havia curandeiro nem rezador que me endireitasse, pois mezinha e reza servem pouco a uma criatura sem olho, não é verdade, seu Gaudêncio? Minha família começou a fazer perguntas, mas eu estava zonzo, sem vontade de conversar, e saí dali, fui-me encostar num canto da cerca do curral.

“Com a ligeireza da carreira, nem tinha sentido as esfoladuras e o golpe medonho. Como é que eu podia saber o lugar da desgraça? Calculei que devia ser o espinheiro e logo me veio a ideia de examinar a coisa de perto. Saltei no lombo de um cavalo e larguei-me para o bebedouro, daí ganhei o mato, acompanhando o rasto da onça. Caminhei, caminhei, e enquanto caminhava iame chegando uma esperança. Era possível que não estivesse tudo perdido. Se encontrasse o meu olho, talvez ele pegasse de novo e tapasse aquele buraco vermelho que eu tinha no rosto. A vista não ia voltar, certamente, mas pelo menos eu arrumaria boa figura. À tardinha cheguei ao espinheiro, que logo reconheci, porque, como os senhores já sabem, a onça tinha caído dentro dele e havia ali um estrago feio: galhos rebentados, o chão coberto de folhas, cabelos e sangue nas cascas do pau. Enfim um sarapatel brabo. Apeei-me e andei uma hora caçando o diacho do olho. Trabalho perdido. E já estava desanimado, quando o infeliz me bateu na cara de supetão, murcho, seco, espetado na ponta de um garrancho todo coberto de moscas. Peguei nele com muito cuidado, limpei-o na manga da camisa para tirar a poeira, depois encaixei-o no buraco vazio e ensanguentado. E foi um espanto, meus amigos, ainda hoje me arrepio. 

“Querem saber o que aconteceu? Vi a cabeça por dentro, vi os miolos, e nos miolos muito brancos as figuras de pessoas em que eu pensava naquele momento. Sim senhores, vi meu pai, minha mãe, meu irmão tenente, os negros, tudo miudinho, do tamanho de caroços de milho. É verdade. Baixando a vista, percebi o coração, as tripas, o bofe, nem sei que mais. Assombrei-me. Estaria malucando?

“Enquanto enxergava o interior do corpo, via também o que estava fora, as catingueiras, os mandacarus, o céu e a moita de espinhos, mas tudo isso aparecia cortado, como já expliquei: havia apenas uma parte das plantas, do céu, do coração, das tripas, das figuras que se mexiam na minha cabeça. Refletindo, consegui adivinhar a razão daquele milagre: o olho tinha sido colocado pelo avesso. Compreendem? Colocado pelo avesso. Por isso apanhava os pensamentos, o bofe e o resto. Tenho rolado por este mundo, meus amigos, assisti a muita embrulhada, mas essa foi a maior de todas, não foi, Cesária?”

— Foi, Alexandre, respondeu Cesária levantando-se e acendendo o cachimbo de barro no candeeiro. Essa foi diferente das outras.

— Pois é, continuou Alexandre. Só havia metade das nuvens, metade dos urubus que voavam nelas, metade dos pés de pau. E do outro lado metade do coração, que fazia tuque, tuque, tuque, metade das tripas e do bofe, metade de meu pai, de minha mãe, de meu irmão tenente, dos negros e da onça, que funcionavam na minha cabeça. Meti o dedo no buraco do rosto, virei o olho e tudo se tornou direito, sim senhores. Aqueles troços do interior se sumiram, mas o mundo verdadeiro ficou mais perfeito que antigamente. Quando me vi no espelho, depois, é que notei que o olho estava torto. Valia a pena consertá-lo? Não valia, foi o que eu disse comigo. Para que bulir no que está quieto? E acreditem vossemecês que este olho atravessado é melhor que o outro.

Alexandre bocejou, estirou os braços e esperou a aprovação dos ouvintes. Cesária balançou a cabeça, Das Dores bateu palmas e seu Libório felicitou o dono da casa:

— Muito bem, seu Alexandre, o senhor é um bicho. Vou botar essas coisas em cantoria. O olho esquerdo melhor que o direito, não é, seu Alexandre?

— Isso mesmo, seu Libório. Vejo bem por ele, graças a Deus. Vejo até demais. Um dia destes apareceu um veado ali no monte...

O cego Firmino interrompeu-o:

— E a onça? Que fim levou a onça que ficou presa no mourão, seu Alexandre?

Alexandre enxugou a testa suada na varanda da rede e explicou-se:

— É verdade, seu Firmino, falta a onça. Ia-me esquecendo dela. Ocupado com um caso mais importante, larguei a pobre. A onça misturou-se com o gado, no curral, mas começou a entristecer e nunca mais fez ação. Só se dava bem comendo carne fresca. Tentei acostumá-la a outra comida, sabugo de milho, caroço de algodão. Coitada. Estranhou a mudança e perdeu o apetite. Por fim ninguém tinha medo dela. E a bicha andava pelo pátio, banzeira, com o rabo entre as pernas, o focinho no chão. Viveu pouco. Finou-se devagarinho, no chiqueiro das cabras, junto do bode velho, que fez boa camaradagem com a infeliz. Tive pena, seu Firmino, e mandei curtir o couro dela, que meu irmão tenente levou quando entrou na polícia. Perguntem a Cesária.

— Não é preciso, respondeu seu Libório cantador. Essa história está muito bem amarrada. E a palavra de seu Alexandre é um evangelho.

Fonte:
Disponível em Domínio Público.
RAMOS, Graciliano. Histórias de Alexandre. Publicado originalmente em 1944.