sábado, 28 de dezembro de 2024

José Feldman (O Encontro de Titãs)

Em uma noite silenciosa e estrelada, uma biblioteca antiga repousava no coração da cidade, envolta em mistério e sabedoria. As prateleiras, repletas de volumes empoeirados, guardavam histórias que transcenderam o tempo. Enquanto o relógio soava a meia-noite, um fenômeno extraordinário começou a ocorrer.

Das páginas de um livro específico sobre escritores, três figuras icônicas começaram a emergir. Primeiro, Ernest Hemingway, de chapéu panamá e um olhar penetrante, apareceu com um copo de rum em uma mão. Logo depois, Jack London, robusto e cheio de energia, saiu do volume com um brilho nos olhos, seguido por Mark Twain, com seu característico paletó branco e um sorriso travesso.

Ernest Hemingway observou os dois escritores e, com um gesto de saudação, disse:

— Boa noite, amigos. Parece que a literatura nos trouxe a este lugar mágico.

Jack London, sempre entusiasmado, respondeu:

— É uma honra estar aqui. Acredito que estamos em uma biblioteca que guarda não apenas livros, mas também almas de escritores.

Mark Twain, com seu humor característico, completou:

— E que lugar melhor para um debate literário? Afinal, temos um velho marinheiro de Hemingway, um lobo do mar de London, e a sagacidade do Mississippi em mim.

Hemingway, percebendo a centelha de provocação no ar, sorriu e comentou:

— Falo de um velho que luta contra um mar indomável. “O Velho e o Mar” é a minha reflexão sobre a resistência humana. O que vocês acham?

London, cruzando os braços, respondeu:

— A luta é nobre, mas o que se pode aprender do velho? Ele é um símbolo, sem dúvida, mas a natureza é mais forte. Em “O Chamado Selvagem”, mostro que a sobrevivência não é apenas uma questão de resistência, mas de adaptação.

Twain, divertindo-se com a discussão, interveio:

— Ah, mas não podemos esquecer que o velho representa todos nós. Ele é o arquétipo do homem em busca de significado. A luta é interna e externa, uma dança com o destino!

Hemingway franziu a testa:

— Concordo, mas a simplicidade da história é o que a torna poderosa. O mar é uma metáfora da vida, e o velho é um lutador solitário. O que há de errado em ser um herói em sua própria narrativa?

London, com seu espírito indomável, argumentou:

— O heroísmo é importante, mas e os que não têm a mesma sorte? Em minhas histórias, os personagens enfrentam a brutalidade da vida, e isso é tão verdadeiro quanto a luta do velho. A natureza não se importa com a coragem, e isso me fascina.

Twain, sempre o mediador, observou:

— Ambos têm razão. A luta do velho é uma batalha pessoal, mas não podemos ignorar o contexto. Todos nós somos moldados pelo nosso ambiente — seja o mar revolto ou a floresta implacável.

Hemingway, agora mais relaxado, começou a entender a perspectiva de seus novos amigos. Ele disse:

— Então, talvez a beleza da literatura esteja em como interpretamos a luta. Cada um de nós traz suas experiências para a narrativa. O velho, o lobo, o rio… todos são símbolos de algo maior.

Os três escritores, então, sentaram-se em uma mesa de madeira antiga, cercados por pilhas de livros. A conversa fluiu livremente, e as diferenças começaram a se dissolver sob a luz suave da biblioteca.

Twain concluiu:

— O que importa é que cada história ecoa em nós de maneiras diferentes. O velho e o mar falam de perseverança, enquanto o lobo e a floresta falam de instinto. As duas narrativas são igualmente válidas.

London assentiu, admirando a profundidade do pensamento de Twain:

— Exato! E no final, somos todos parte da mesma narrativa humana, lutando contra nossos mares pessoais.

Hemingway sorriu, levantando seu copo em um brinde:

— À literatura, que nos une mesmo após a morte. Que possamos sempre encontrar força nas palavras.

À medida que a primeira luz da manhã filtrava-se através das janelas da biblioteca, Hemingway, London e Twain se acomodaram, prontos para dar prosseguimento à sua conversa. O ar estava carregado de uma mistura de reflexão e expectativa.

Mark Twain, com um sorriso brincalhão, lançou:

— Já que falamos sobre luta e resistência, que tal discutirmos o papel da ironia na literatura? É um elemento que permeia muitas das minhas histórias. O que vocês acham?

Ernest Hemingway, ligeiramente intrigado, respondeu:

— A ironia pode ser uma faca de dois gumes. Em minha obra, eu prefiro a sinceridade bruta. Há uma beleza na simplicidade, na verdade nua, que não precisa de adornos.

Jack London, animado, interveio:

— Mas a ironia é uma ferramenta poderosa! Ela revela a hipocrisia da sociedade e a complexidade do ser humano. Em “O Lobo do Mar”, a ironia da luta pela sobrevivência em um mundo tão cruel é palpável. É um reflexo da realidade.

Twain, acenando com a cabeça, concordou:

— Exato! A ironia nos permite rir das desgraças e nos faz refletir. É um espelho distorcido da vida que pode nos ensinar muito. Afinal, quem não ri de sua própria tragédia?

Hemingway ponderou sobre o que seus amigos estavam dizendo:

— Entendo o que vocês querem dizer. Mas não podemos esquecer que a ironia pode desviar o foco da luta real. Às vezes, o que precisamos é de uma narrativa direta, que inspire ação e coragem, como a jornada do velho.

London, com seu olhar penetrante, respondeu:

— Mas não é também uma forma de coragem enfrentar a realidade com ironia? Reconhecer as falhas do mundo e, ainda assim, seguir em frente? É uma forma de resistência em si.

Twain, agora mais sério, acrescentou:

— E a ironia permite que os leitores se conectem de uma maneira mais profunda. Eles veem a vida não apenas como um campo de batalha, mas como uma tapeçaria rica em nuances. Cada história é uma lição disfarçada.

Hemingway, refletindo sobre o que ouviu, finalmente disse:

— Então, talvez a ironia e a sinceridade não sejam opostas, mas complementares. Uma pode realçar a outra. Afinal, a vida é cheia de momentos em que rimos e choramos ao mesmo tempo.

London sorriu, satisfeito com a nova direção da conversa:

— Concordo! Cada um de nós traz suas próprias experiências à mesa, e isso enriquece nossas narrativas. A ironia é apenas uma das muitas formas de ver a luta humana.

Twain, com seu espírito provocador, finalizou:

— E no final, seja com ironia ou sinceridade, o que importa é que nossas histórias ressoem no coração das pessoas. Que elas inspirem, desafiem e, acima de tudo, façam refletir.

Os três escritores assentiram, sentindo a profundidade da conversa. A biblioteca, testemunha daquela troca rica em sabedoria, parecia vibrar com a energia criativa que emanava deles. 

E assim, naquela biblioteca mágica, três titãs da literatura se uniram em um diálogo atemporal, celebrando a diversidade das narrativas e a beleza das lutas humanas. 

Quando o sol começou a raiar, eles lentamente retornaram às páginas de seus livros, deixando para trás um eco de sabedoria que perduraria através das gerações.
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José Feldman nasceu na capital de São Paulo. Formado técnico de patologia clínica, não conseguiu concluir o curso superior de psicologia. Foi enxadrista, professor, diretor, juiz e organizador de torneios de xadrez a nível nacional durante 24 anos; como diretor cultural organizou apresentações musicais; trovador da UBT São Paulo e membro da Casa do Poeta “Lampião de Gás”. Foi amigo pessoal de literatos de renome (falecidos), como Artur da Távola, André Carneiro, Eunice Arruda, Izo Goldman, Ademar Macedo, Hermoclydes S. Franco, e outros. Casado com a escritora, poetisa e tradutora professora Alba Krishna mudou-se em 1999 para o Paraná, morou em Curitiba e Ubiratã, radicou-se definitivamente em Maringá/PR. Consultor educacional junto a alunos e professores de universidades do Paraná e São Paulo. Pertence a diversas academias de letras e de trovas, fundador da Confraria Brasileira de Letras e Confraria Luso-Brasileira de Trovadores, possui o blog Singrando Horizontes desde 2007, com cerca de 20 mil publicações. Atualmente assina seus escritos por Campo Mourão/PR. Publicou mais de 500 e-books. Em literatura, organizador de concursos de trovas, gestor cultural, poeta, escritor e trovador. Dezenas de premiações em trovas e poesias.

Fontes 
José Feldman. Labirintos da vida. Maringá/PR: Plat.Poe. Biblioteca Voo da Gralha Azul 
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing

Monsenhor Orivaldo Robles (Nem tudo é verdade)

Sócrates (470 a.C.-399 a.C.), filósofo grego, era um pensador cuja sabedoria sobrepujava em muito à dos conterrâneos. Dono de admirável autodomínio, não perdia a serenidade nem mesmo por causa de ofensas que recebesse de forma gratuita. Opondo-se ao sistema de vida dos concidadãos, foi condenado à morte. Aceitou-a sem nenhum protesto. Conta-se que, certa vez, envolvido em debate filosófico com discípulos, recusou-se a atender Xantipa, sua mulher, que o chamava com insistência e em tom cada vez mais alto. Depois de algum tempo, irritada com o descaso do marido, ela se aproximou e, sem que ele notasse, derramou-lhe uma vasilha de água na cabeça. Ele nem se moveu. Todo ensopado, comentou calmamente: “Era natural que, depois da trovoada, caísse uma tempestade”. De outra feita, um orgulhoso ateniense, muito convicto de sua importância pessoal, irritou-se por não receber de Sócrates a atenção que julgava merecer e o agrediu com violento pontapé. Surpresos com a não reação do mestre, os discípulos o questionaram se não ia tomar providência por ter sido ferido. Ele respondeu: “Ora, se um asno me desse um coice, eu deveria levá-lo ao tribunal?”.

É surpreendente como passa o tempo, mas a gente não muda. Bem observou Belchior, genialmente interpretado por Elis Regina – os mais jovens talvez não conheçam nenhum dos dois – “minha dor é perceber que apesar de termos feito tudo o que fizemos, ainda somos os mesmos e vivemos como os nossos pais”. Por mais que nos ufanemos de progredir e de alcançar condição de vida melhor do que no passado, ainda continuamos cometendo os mesmos erros.

A sociedade pós-moderna que construímos só dá valor a quem conquistou dinheiro, cargo importante ou brilho social. Quem desfruta disso está acima do bem e do mal. Não precisa admitir que erra. No mundo competitivo em que vivemos, as pessoas estão armadas umas contra as outras. Nosso convívio social acabou tornando-se uma permanente luta de todos contra todos. Vige a lei do mais forte, a regra do “quem pode mais chora menos”. A partir do exemplo que vem de cima, ninguém aceita os próprios erros. Se algo não deu certo, a culpa só pode ser dos outros; jamais nossa. Baste um exemplo: no trânsito é mais fácil ouvir “desculpe” ou, ao contrário, “seu burro” (para não falar outra coisa)?

Somos falíveis. Com frequência caímos em falhas, inseparáveis de nossa pobre condição. Erros humanos quase sempre magoam pessoas à volta de quem os cometeu. De seres civilizados e, mais que isso, de cristãos, espera-se compreensão com as faltas alheias. E coragem de reconhecer as próprias.

Quem presta serviço voluntário não cansa de receber pontapé em vez de gratidão. Abre mão do próprio conforto, do uso do seu tempo, da convivência com familiares, até do seu dinheiro para prestar serviço à comunidade. Sem interesse pessoal, por pura bondade de coração. E o que ganha em troca? Crítica, chacota, ofensa à própria honra, por vezes. Com a invenção do blog, do twitter, do facebook, de tantos recursos informáticos ficou ainda mais fácil acabar com o nome de alguém. É só um tipo de maus bofes, indignado por não ver satisfeito um capricho qualquer, postar um comentário venenoso. Pronto! Foi para o brejo a honra de pessoa respeitável. Vá depois provar que focinho de porco não é tomada!
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Monsenhor Orivaldo Robles nasceu em Polôni (SP) em 1941. Estudou em Jales e Poloni e ingressou no Seminário Nossa Senhora da Paz, em São José do Rio Preto, em 1953. Cursou Filosofia em Curitiba (PR), graduando-se na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, de Mogi das Cruzes SP, com diploma reconhecido pela USP, São Paulo. Graduou-se em Teologia no Studium Theologicum de Curitiba, afiliado à Pontifícia Universidade Lateranense, de Roma. Lecionou no Colégio Estadual Dr. Gastão Vidigal, e no Instituto de Educação, em Maringá (PR) (1967-1969). No Colégio Estadual e na Escola Normal de Paranacity (PR) (1970-1972). Por quase onze anos trabalhou como pároco de Marialva, de onde saiu no início de 1983 para assumir, por seis anos, o cargo de reitor do Seminário Arquidiocesano Nossa Senhora da Glória – Instituto de Filosofia de Maringá. Em 1989 assumiu a Paróquia Santa Maria Goretti, em Maringá, onde trabalhou por mais de 20 anos. Desde 2009, trabalhou na Catedral Metropolitana de Maringá, exercendo a função de vigário paroquial. Foi palestrante convidado a discorrer, em colégios ou outros núcleos humanos, sobre temas ligados à cidadania, formação pessoal e sobre ética pessoal ou pública. Em 2012 teve publicado o livro “Celeiro Desprovido”, com 270 páginas, contendo 118 crônicas e artigos escritos desde 1995. Em 2017, foi publicado o livro dos 60 anos da Diocese de Maringá. Foi articulista mensal ou semanal, por mais de quinze anos, de jornais editados em Maringá, além de ter matérias reproduzidas em revistas ou blogs da região. Faleceu de enfisema pulmonar, em 2019, em Maringá/PR.

Fonte:
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing

Vereda da Poesia = 188


Trova de
ARI SANTOS CAMPOS
Balneário Camboriú/ SC

Hoje o sol nasceu tão lindo, 
tão lindo, e eu me confundo: 
- Será que Deus está rindo 
ou rindo está o nosso mundo?
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Soneto de
DOMINGOS FREIRE CARDOSO
Ilhavo/ Portugal

Em cada rosa o espinho que encontrei
Manuel Cardoso in "Antologia Poética, Tertúlia Hélice, 10." Aniversário", p. 53

Em cada rosa o espinho que encontrei
É renúncia a que a vida me obrigou
Pão da alma que às vezes me faltou
Trono vazio onde eu quis ser um rei.

Maldigo esse contrato que assinei
Em que a fortuna tanto me lesou
E não cumpriu comigo o que acordou
Em troca do futuro que eu lhe dei.

Deponho contra ela em tanta queixa
Que eu não entendo por que não me deixa
Entregue a mim, perdido no caminho.

Prefiro a viuvez da fresca fonte
Ou sozinho viver num alto monte
E a gemer, sempre ao vento, ser moinho.
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Trova de
JESSÉ FERNANDES DO NASCIMENTO
Angra dos Reis/ RJ

Bola no chão, pés descalços,
o futebol contagia;
menino pobre... percalços...
sonho de ser craque um dia.
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Poema de
VANICE ZIMERMAN
Curitiba/PR

Doce magenta & textura

Entre as páginas do livro -
A poesia entreaberta
Recebe o bailar da Luz e sombra -
Diáfana por do sol...

Cores, recantos, da Holanda,
Das telas de Monet,
Saudades dos moinhos -
Ninhos de ventos
Pétalas dobradas...
Doce Magenta
Em silêncio, abraçando
As palavras, os versos,
E as anotações ao pé da página -
Inclinadas pétalas
De origem tão distante
Atemporais tintas -
Esmaecidas tulipas...
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Trova de
EDMAR JAPIASSÚ MAIA
Miguel Couto/ RJ

Mesmo no aperto, o sobrado
do velho não foi vendido.
Pelo prédio estar tombado
é que o velho está "caído"!
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Poema de
DANIEL MAURÍCIO
Curitiba/PR

De repente

De repente
Um quê de fada,
De anjo, de estrela,
Brilhou diferente entre os cachos de flores.
Borboletas...
Pequenas e ligeiras
Almas com asas,
Tingidas com pó de arco-íris
Rasgam o vento tão leve
Tal como o sono inocente.
Sonha em mim,
Coração em pétalas 
No suave pousar das borboletas.
Em silêncio falam aos meus olhos
De um mundo de paz, 
Amor e poesia.
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Trova de
BRUNO P. TORRES
Niterói/RJ

Não tem mais papo no lar,
ninguém mais nota ninguém.
– Cada qual num celular,
teclando sei lá pra quem...
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Poema de
OLAVO BILAC
Rio de Janeiro/RJ, 1865 – 1918

A avenida das lágrimas
(A um Poeta morto)

Quando a primeira vez a harmonia secreta
De uma lira acordou, gemendo, a terra inteira,
- Dentro do coração do primeiro poeta
Desabrochou a flor da lágrima primeira.

E o poeta sentiu os olhos rasos de água;
Subiu-lhe à boca, ansioso, o primeiro queixume:
Tinha nascido a flor da Paixão e da Mágoa,
Que possui, como a rosa, espinhos e perfume.

E na terra, por onde o sonhador passava,
Ia a roxa corola espalhando as sementes:
De modo que, a brilhar, pelo solo ficava
Uma vegetação de lágrimas ardentes.

Foi assim que se fez a Via Dolorosa,
A avenida ensombrada e triste da Saudade,
Onde se arrasta, à noite, a procissão chorosa
Dos órgãos do carinho e da felicidade.

Recalcando no peito os gritos e os soluços,
Tu conheceste bem essa longa avenida,
- Tu que, chorando em vão, te esfalfaste, de bruços,
Para, infeliz, galgar o Calvário da Vida.

Teu pé também deixou um sinal neste solo;
Também por este solo arrastaste o teu manto...
E, ó Musa, a harpa infeliz que sustinhas ao colo,
Passou para outras mãos, molhou-se de outro pranto.

Mas tua alma ficou, livre da desventura,
Docemente sonhando, às delícias da lua:
Entre as flores, agora, uma outra flor fulgura,
Guardando na corola uma lembrança tua...

O aroma dessa flor, que o teu martírio encerra,
Se imortalizará, pelas almas disperso:
- Porque purificou a torpeza da terra
Quem deixou sobre a terra uma lágrima e um verso.
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Trova de 
ADEMAR MACEDO
Santana do Matos/ RN, 1951 – 2013, Natal/ RN

Fiz a “pergunta ao espelho” 
que para não me ofender: 
disfarçou, ficou vermelho 
e não quis me responder!
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Poema de 
JOSÉ FARIA NUNES
Caçu/GO

O sonho de um povo

Um dia um povo sonhou com a liberdade
e esse povo acreditou no sonho e lutou por ele.
Houve até quem por ele morresse.
O sonho deste povo foi objeto do sonho
de tantos outros.
Mas o sonho deste povo foi um sonho
diferente dos outros sonhos.
Enquanto o sonho de além-mar
era um sonho de ambição e dominação
o sonho deste povo era de libertação.
O sonho deste povo era sonho de amor à terra;
terra já irrigada pelo suor
até de sangue de filhos deste povo.
O sonho deste povo foi um sonho de amor
e no ato de amar até parceiros de além-mar
a este sonho vieram se somar.
E no somar dos sonhos eis que ecoou o grito
de independência deste povo. E aquele grito
do sonho deste povo ainda ecoa no ar.
Ecoa aos ouvidos de geração a geração
que ainda insiste em sonhar.
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Trova de
IZO GOLDMAN
Porto Alegre/RS, 1932 – 2013, São Paulo/SP

Lá na casa da Maria
é muito estranha a porteira ...
Não faz barulho de dia, 
bate e range a noite inteira …
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Poema de
IALMAR PIO SCHNEIDER
Porto Alegre/RS

Quando Murchar a Primavera 

Quando murcharem as flores dos caminhos
e o peito calar-me indiferente
como a serena mudez dos passarinhos
em noite senil e permanente…

Órfão de afetos, insaciado de carinhos
caminharei tristonho de dolente,
buscando outras sensações em novos ninhos
como a cura ao meu amor fervente.

E nada há de curar a viva chaga
que deixaste a sangrar em meu desejo
ao provar a doçura do teu beijo

naquela tardinha rubra e vaga
e onde estiveres chorarás baixinho
a mágoa de deixar-me tão sozinho.
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Trova de
CAROLINA RAMOS 
Santos/ SP

Ser livre é também saber
que a liberdade alcançada
faz parte do próprio ser
e não se troca por nada!
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Hino de
SOBRADINHO/BA

Dos reclames do progresso,
à fundação da usina
quanto sonho convergia!
No cráton do São Francisco
Fez-se, pras águas, um aprisco:
Sobradinho assim nascia!

Sobre o espelho do lago
o gavião, a planar,
é testemunha ocular
da base de tua história;
tal qual as tuas xerófilas
enfrentando as intempéries,
os teus homens e mulheres
celebram cada vitória!

Pode vir sem cerimônia,
porque Sobradinho está
com seus braços sempre abertos
a quem vem lhe visitar!

Na depressão sertaneja,
onde te ergues, altaneira,
és amostra do milagre
da pura fé brasileira;
no cenário nordestino
vais cumprindo teu destino
de cidade alvissareira!

Despontando para o mundo
se espargindo em poesia,
és orgulho da Bahia.
Sobradinho, doce lar,
até mesmo o "Velho Chico"
modificando seu traço,
descansa no teu regaço,
antes de seguir pro mar!

Quem parte de Sobradinho
mesmo que pela vontade,
não demora, está voltando,
ferido pela saudade!

Entre tuas cordilheiras
recheados de cristais
surgem inscrições rupestres
com indivisíveis sinais;
no teu solo as avoantes
as musas itinerantes
vêm construir seus pombais!

Pelas asas dos alísios
teus mistérios, tuas lendas,
ficaram para as calendas,
como moquim nem sonhava...
Ó Juacema! O Opará
refugou ante barreira,
refreando a corredeira
onde você se banhava!
Do refluxo de teus filhos,
Sobradinho, vem teus brios
pelas águas generosas
desse caudaloso rio!...
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Trova de
AUGUSTO GASPARINI FILHO
Salto/SP

A vida solta e bem leve,
nas asas do pensamento...
Frases de amor e... até breve,
perdidas na voz do vento!
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Poema de 
RAIMUNDO NONATO DA SILVA
Sousa/PB

Os Passarinhos

Quem engaiola um canário
Um Graúna ou um vem-vem
Dê liberdade pro pássaro
Olhe escute e veja bem
Não faça do pássaro um réu
Ele não ofende ninguém

Eu tenho pena demais
Quando vejo um passarinho
No viveiro ou na gaiola
Sem liberdade e sozinho
Deus lhe fez para voar
Pra cantar e ter um ninho

A lua clareia a noite
De dia o sal é aceso
Mas quem prende um passarinho
Na consciência tem peso
Quem Deus fez para ser livre
Não era para estar preso

O passarinho parece
Um cantador de viola
O pássaro enfeita a floresta
Com a sua cantarola
Deus não gosta de quem prende
O pássaro numa gaiola

Se lembre que a floresta
Tem o ar mais belo e puro
Quem polui a natureza
Espere que no futuro
Deus vai cobrar sua conta
Com correção e com juro

Se a mata fosse minha
O rio, o lago e a fonte.
Talvez existisse hoje
Verde colorindo o monte
E todo mundo sonhava
Com um bonito horizonte

Se a mata fosse minha
Eu zelava até de mais
Mandava varrer a cama
Onde dorme os animais
Porque os brutos precisam
Dormir na cama da paz.

Se a mata fosse minha
Eu mandava alguém cercar
Com uma grande muralha
E mandava eletrificar
As paredes pra dar choque
Em quem quer lhe devastar

Não mate um sabiá
E nem outro passarinho
O cantador da floresta
Só quer amor e carinho
Não faz o mal pra ninguém
Mas alguém destrói seu ninho

Se a mata fosse minha
Lá tinha alegria e festa
Os animais tinham paz
Pássaro fazia seresta
E o homem sem coração
Não devastava a floresta

Se a mata fosse minha
E se eu mandasse nela
Se alguém pegasse um machado
Pra cortar uma árvore bela
Eu cortava os pés de quem
Quer cortar a raiz dela

Se a mata fosse minha
Não seria devastada
Ninguém destruía as árvores
Não existia queimada
Como a mata não é minha
Eu não posso fazer nada
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Trova de
RITA MOURÃO
Ribeirão Preto/ SP

Na minha fé hoje intensa 
repasso o tempo que avança. 
Foi recompondo essa crença 
que ainda tenho esperança.
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Francisca Júlia (A ovelha)

A ovelha, um dia, muito triste por não ter forças para lutar com os cães que a mordiam, ou armas de defesa contra a ferocidade dos lobos, dirigiu-se a Júpiter e expôs-lhe suas queixas:

— Pai, todos os animais que vivem sobre a terra, desde o inseto ao paquiderme, têm meios de defender-se contra os ataques; e coragem para provocar as lutas. Eu, porém, sou tímida e indefesa: tudo me causa medo. Queria, pois, que me désseis uma arma qualquer.

Júpiter, tocado de piedade, perguntou-lhe:

— Queres um veneno oculto nos dentes, para dar a morte aos que te fizerem mal?

— Oh! não! respondeu a ovelha. Os animais venenosos são nojentos e causam medo a todos.

— Queres ter na boca duas fileiras de dentes afiados, como os leões e os lobos?

— Oh! não! Os animais carnívoros são tão odiosos e antipáticos!

— Queres saber arremeter, como os touros, com duas pontas na cabeça?

— Oh! não! Eu causaria terror aos outros animais, e não seria acariciada pelos pastores.

— Que queres, pois? gritou Júpiter, impaciente.

— Nada, senhor, nada quero. Prefiro viver assim, tímida e fraca, porém estimada e afagada por todos.
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Francisca Júlia da Silva Munster, escritora parnasiana, nasceu em Eldorado Paulista/SP, em 1871  e faleceu em São Paulo em 1920. Quando tinha oito anos de idade, a poetisa e sua família mudaram-se para a cidade de São Paulo, para que a menina pudesse estudar. De 1892 a 1895, Francisca Júlia escreveu para o Correio Paulistano, além de periódicos do Rio de Janeiro, onde seus versos geraram a dúvida se seu autor era realmente uma mulher ou um homem que usava pseudônimo feminino. Seu primeiro livro — Mármores — foi publicado em 1895. A recepção dessa obra foi bastante positiva em São Paulo e no Rio de Janeiro, e recebeu elogios inclusive de Olavo Bilac. Em 1898, fez parte do júri do Concurso de Poesia do Correio Paulistano, em 1899, Livro da infância foi publicado pelo governo de São Paulo e adotado em escolas da época. Em 1902, ajudou a fundar a revista Educação. Em 1904, tornou-se membro do Comitê Central Brasileiro da Societá Internazionale Elleno-Latina, de Roma. Foi convidada a participar da Academia Paulista de Letras em 1907, mas a autora rejeitou o convite, por não acreditar em academias. A poetisa começou a ter um envolvimento mais profundo com as questões metafísicas. Em 1908, realizou palestra intitulada A feitiçaria sob o ponto de vista científico, em Itu. Logo depois, ficou doente, devido à intoxicação por ácido úrico, que lhe provocava alucinações, levando Francisca Júlia a acreditar, no início, que estava se tornando médium. Em 1920, o marido da escritora morreu, vítima de tuberculose. No dia em que ele foi sepultado, morreu também Francisca Júlia, em um provável suicídio. No enterro da poetisa, estavam presentes Oswald de Andrade, Menotti del Picchia, Guilherme de Almeida e Di Cavalcanti.

Publicações: 1895 - Mármores; 1899 - Livro da Infância; 1903 - Esfinges; 1912 - Alma Infantil (com Júlio César da Silva); 1962 - Poesias (organizadas por Péricles Eugênio da Silva Ramos)

Fontes: 
Francisca Júlia. Livro da infância. 1899. Disponível em Domínio Público
Biografia (excerto): https://brasilescola.uol.com.br/literatura/francisca-julia.htm
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing 

Zitkala-Ša (Iya, o comedor de acampamento)

Da grama alta veio a voz de um bebê chorando. Os caçadores que passavam por perto ouviram e pararam.

O mais alto entre eles correu em direção à grama alta com passadas longas e cautelosas. Por sobre as verdes hastes, só sua cabeça era visível.

De repente, exclamando 'Hunhe!', ele sumiu de vista. Em alguns instantes, ele reapareceu segurando com ambas as mãos um bebêzinho, envolto em camurça marrom.

'Oh, uma criança da floresta!', gritaram os outros homens, que estavam caçando ao longo do vale do rio onde este bebê foi encontrado.

Enquanto os caçadores questionavam se deveriam ou não levá-lo para casa, o pequenino bebê continuava a chorar.

“A voz dele é forte!”, disse um.

‘Às vezes soa como a voz de um velho!’ sussurrou um caçador supersticioso, que temia que algum espírito mau se escondesse no bebê para enganar o seu grupo.

‘Vamos levá-lo ao nosso sábio chefe’, disseram por fim; e no momento em que partiram em direção ao acampamento, a estranha criança da floresta parou de chorar.

Chegando na aldeia, os caçadores detiveram-se ao lado da tenda do chefe, esperando enquanto o homem alto entrava com a criança. 'Entre! Entre!' convidou o cacique de rosto bondoso, Depois de ouvir a estranha história levantou-se, pegou a criança em seus braços fortes e colocou gentilmente o bebê de olhos negros no colo de sua filha. 'Este bebê será seu filhinho!', disse ele, sorrindo.

‘Sim, pai’, ela respondeu. Satisfeita ela alisou os longos cabelos negros que emolduravam o rosto redondo e moreno do bebê.

‘Diga ao povo que estou oferecendo um banquete e dançaremos neste dia para o nome do filhinho de minha filha’, ordenou o chefe.

Enquanto isso, um dos homens que esperavam na entrada, disse em voz baixa: 'Ouvi dizer que espíritos maus vêm como crianças a uma aldeia que pretendem destruir'.

'Não! Não! Não sejamos excessivamente cautelosos. Seria covardia deixar um bebê na floresta onde rondam os lobos selvagens e famintos!', respondeu um homem idoso.

O homem alto saiu da tenda do chefe, anunciando:

'Uma festa! Uma dança para o nome do neto do chefe!' gritou ele em voz alta para o povo da aldeia.

'O que? O quê? 'perguntavam eles com grande surpresa, levando a mão ao ouvido para não perder nenhuma palavra vinda do homem alto.

Houve um silêncio momentâneo entre as pessoas enquanto ouviam a voz do homem alto, que caminhava na área central da aldeia. Um murmúrio persistente e alegre irrompeu por entre as tendas cônicas. Todos estavam muito felizes em saber do neto do chefe e exultantes em participar da festa e dançar por seu nome. Dedos excitados, enrolavam os cabelos em tranças brilhantes e pintavam bochechas com tinta vermelha brilhante.

Mulheres corriam de lá para cá, lindas em seus vestidos de gala. Homens em peles de veado soltas, com longas franjas de metal tilintantes, caminhavam em pequenos grupos em direção ao centro circular do acampamento.

Nesta área central, sob uma sombra temporária, eles dançariam e festejariam. As crianças com peles de veado e pinturas, assim como os mais velhos, pareciam alegres homenzinhos e mulherzinhas. Ao lado de seus pais ansiosos, eles pulavam na área destinada aos festejos.

Todos sentaram-se, formando um grande circulo e o chefe orgulhoso levantou-se com o bebezinho em seus braços. O zumbido ruidoso de vozes foi abafado. Nem um tilintar de uma franja de metal quebrava o silêncio. Um arauto se adiantou para cumprimentar o chefe, curvando-se atentamente sobre o pequeno bebê e ouvindo as palavras do chefe.

Quando o chefe fez uma pausa, o arauto falou em voz alta para o povo:

‘Esta criança da floresta será adotada pela filha mais velha do chefe. O nome dele é Chaske. Ele usará o título de filho mais velho. Em homenagem a Chaske, o chefe oferece esta festa e danças! Estas são as palavras do chefe que você vê segurando o bebê nos braços.'

'Sim! Sim! Hinnu! Foram as palavras que vieram do círculo. Imediatamente os tambores começaram a soar suave e lentamente enquanto os cantores escolhidos buscavam um tom comum cantarolando juntos. A batida do tambor ficou mais alta e mais rápida. Os cantores irromperam em uma melodia animada. Então, as batidas dos tambores diminuíram para marcar levemente o ritmo do canto. Aqui e ali apareciam homens e mulheres, jovens e velhos. Eles dançavam e cantavam com corações alegres e leves. Então chegou a hora do banquete. 

Tarde da noite, o acampamento ainda ressoava com as vozes risonhas das mulheres e o canto em uníssono dos rapazes. Dentro da tenda de seu pai, estava a filha do chefe. Orgulhosa de seu filho, ela cuidava dele dormindo em seu colo.

Gradualmente, um silêncio profundo foi invadindo o acampamento, à medida que, uma a uma, das pessoas caía em sono profundo. Agora toda a aldeia estava silenciosa. Sozinha, a jovem e bela mãe observava o bebê em seu colo, dormindo com a boquinha escancarada. No silêncio da noite, seu ouvido ouviu o zumbido distante de muitas vozes. O som fraco do murmúrio de pessoas estava no ar. Ela olhou para cima, pelo buraco do alto da tenda, por onde saía a fumaça do e viu uma estrela brilhante olhando para ela. “Será que são espíritos pairando no ar?”, ela se perguntou. Não havia nenhum sinal que confirmasse seus pressentimentos, mas o som de vozes crescia e se aproximava.

‘Pai levante-se! Eu ouço a aproximação de alguma tribo. Hostil ou amigável... não sei dizer. Levante-se e veja! 'sussurrou a jovem. 

'Sim, minha filha!', respondeu o chefe, levantando-se de um salto.

Embora adormecido, seu ouvido estava sempre alerta. Assim, correndo para fora, ele ouviu sons estranhos. Com um olhar de águia, ele examinou o acampamento em busca de algum sinal. Voltando, ele disse: 'Minha filha, não ouço nada e não vejo nenhum sinal do mal por perto'.

'Oh! Ouço o som de muitas vozes ao meu redor!' exclamou a jovem mãe. Curvando-se sobre seu bebê, ela ficou horrorizada ao perceber que o som misterioso saía da boca aberta de seu filho adormecido!

'Por que ele é tão diferente dos outros bebês!', seu coração dizia enquanto ela colocava suavemente o bebê no chão. 'Mãe, ouça e me diga se esta criança é um espírito maligno que veio para destruir nosso acampamento!' ela sussurrou.

Colocando um ouvido perto da boca aberta do bebê, o chefe e sua esposa, cada um por sua vez, ouviram as vozes de um grande acampamento. O canto de homens e mulheres, a batida do tambor, o chocalhar de cascos de veados amarrados como sinos em uma corda, esses eram os sons que eles ouviam.

"Devemos ir embora", disse o chefe, conduzindo-os noite adentro. Ao ar livre, ele sussurrou para a jovem assustada: 'Iya, o devorador de acampamentos, veio na forma de um bebê. Se você tivesse adormecido, ele teria assumido sua forma e devorado nosso acampamento. Ele é um gigante com pernas finas, que não pode lutar, pois não pode correr. Ele é poderoso apenas à noite com seus truques. Estaremos seguros assim que o dia raiar’. Então, aproximando-se da mulher, ele sussurrou: 'Se ele acordar agora, engolirá toda a tribo com um gole hediondo! Venha, devemos fugir com nosso povo'.

Assim, indo de tenda em tenda, um sinal de alarme secreto foi dado. À meia-noite, as tendas haviam desaparecido e não havia sinal da aldeia, exceto pelo monte de cinzas. Silenciosamente as pessoas dobraram suas tendas e empacotaram suas estacas, escapando sem serem ouvidas pelo bebê Iya adormecido.

Quando o sol da manhã surgiu, o bebê acordou. Vendo-se abandonado, ele abandonou sua forma de bebê com uma fúria tremenda. Assumindo sua própria feia forma, seu corpo enorme tombava para frente e para trás, de um lado para o outro, sobre um par de pernas finas muito pequenas para seu fardo. Embora a cada movimento ele chegasse perigosamente perto de cair, ele seguia o rastro das pessoas em fuga.

'Eu devo comê-los na luz do meio-dia', gritava Iya em sua raiva vã, quando avistou a tribo acampada além do rio.

Com uma astúcia desconhecida, ele nadou no rio em direção às tendas. 

‘Hin! Hin! ', ele resmungou e rosnou. Com a transpiração escorrendo pela testa, ele se esforçava para mexer as pernas esguias sob seu corpo gigante.

‘Ah! Ha!' riam todas as pessoas da aldeia ao ver Iya feito de tolo, cheio de raiva. 'Essas perninhas finas não suportam lutar à luz do dia!' Gritavam os bravos, que na noite anterior foram tomados de terror ao ouvirem o nome 'Iya'.

Guerreiros com facas longas avançaram e mataram o devorador de acampamentos.

Neste momento surgiu de dentro do gigante toda uma tribo indígena: seu acampamento, suas tendas em um grande círculo e as pessoas rindo e dançando.

“Estamos felizes por estarmos livres!”, disseram essas pessoas estranhas. Assim, Iya foi morto, e os acampamentos não correm mais o risco de serem engolidos em uma única noite. 
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Zitkala-Ša (1876-1938), que em Lakota significa 'Pássaro Vermelho', nasceu na Reserva Indígena Yankton em Dakota do Sul, filha de mãe Dakota e pai francês, que a abandonou quando criança. Aos oito anos, foi obrigada a deixar a liberdade e a felicidade da vida entre seu povo – como ela mesma dizia - para ser educada nos costumes e crenças europeus em um internato missionário Quaker. Lá ela recebeu o nome de Gertrude Simmons, seus longos cabelos foram cortados, ela foi forçada a suprimir todos os sinais e costumes de sua cultura e a rezar como uma quaker. As únicas coisas boas que resultaram disso para ela foram aprender a ler, escrever e tocar violino. Três anos depois, ela voltou para a reserva de Yankton apenas para descobrir, para sua consternação, que as pessoas na reserva estavam começando a adotar os costumes e modos de pensar dos europeus e que mesmo ela tinha um pé em cada mundo. Depois de mais três anos na reserva, ela voltou ao mundo dos brancos com a intenção de continuar sua formação musical. Ela aprendeu piano e violino e acabou ensinando música e estudando no Earlham College em Richmond, onde exibia publicamente sua bela oratória. Ao longo dos anos, cruzando repetidamente a ponte entre sua cultura e a cultura europeia, entre a reserva e o mundo branco, Zitkala-Ša acabaria se tornando escritora, editora, tradutora e ativista política, além de musicista e educadora. Ela chegaria a compor uma ópera com o compositor William F. Hanson, intitulada The Sun Dance Opera, baseada na Lakota Sun Dance, que o governo federal havia proibido o povo Ute de realizar em sua reserva.

Em 1916, aos 30 anos, ela começou seu ativismo nativo americano ao ser nomeada secretária da Society of American Indians, uma associação dedicada à preservação do modo de vida nativo americano. Ela também fez lobby em círculos políticos pelo direito de seu povo à plena cidadania americana. De Washington DC, Zitkala-Ša fez duras críticas ao Bureau of Indian Affairs, chegando a pedir sua dissolução por causa de suas políticas de internato, pelo levantamento da proibição de crianças indígenas usarem sua própria língua e preservar seus costumes culturais. Ela denunciou os abusos que aconteciam nesses internatos sempre que um menino ou uma menina nativa se recusava a rezar de acordo com a maneira cristã.

Também de Washington ela começou a dar palestras em todo os Estados Unidos e, durante a década de 1920, começou a promover a ideia de criar um movimento pan-indígena que unisse todas as tribos da América do Norte para fazer lobby em nome dos povos nativos. Em 1924, graças em parte aos seus esforços, foi aprovada a Lei da Cidadania Indígena, concedendo direitos de cidadania americana à maioria dos povos indígenas que ainda não os possuíam. Em 1926, ela e o marido fundaram o Conselho Nacional dos Índios Americanos (NCAI), com o objetivo de unir as tribos dos Estados Unidos em sua luta pelos direitos dos índios. No entanto, Zitkala-Ša não era apenas um ativista pelos direitos das Primeiras Nações da América do Norte. Ela também esteve envolvida no ativismo pelos direitos das mulheres na década de 1920, quando ingressou na Federação Geral de Clubes Femininos. Zitkala-Ša morreu em 1938, aos 61 anos, e foi enterrada no Cemitério Nacional de Arlington, em Washington. Para homenageá-la, a União Astronômica Internacional nomeou uma cratera em Vênus "Bonnin", seu sobrenome de casada, Gertrude Simmons Bonnin.

Fonte:
Zitkala-Ša. Old Indian Legends. Publicada originalmente em 1901. Disponível em Domínio Público.
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