sexta-feira, 3 de janeiro de 2025

Humberto de Campos (A derradeira "morada")

O administrador do cemitério de S. Geraldo, Alfredo Costa Ximenes, residia, há anos, à rua Real Grandeza, quando, em março último, forçado a mudar de casa, foi alugar um prédio de segunda ordem, de que era proprietário o comendador Augusto Gonçalves Teixeira, que lhe foi dizendo, logo, sem circunlóquios:

- O aluguel da casa é quinhentos e vinte mil réis, fora a pena d'água e a taxa sanitária. Além disso para que eu lhe dê a chave, o senhor terá de pagar-me seis contos de réis de "luvas".

Debalde o honrado funcionário da Morte chorou, suplicou, implorou; o comendador mostrou-se inabalável na sua exigência, e ele teve de arranjar, mesmo, as "luvas", para se não ver, de uma hora para outra, lançado à rua com a família.

Dois meses depois desse episódio, estava o administrador, uma tarde, no seu posto, na secretaria da necrópole, quando parou ao portão, buzinando e rolando, um cortejo funerário. Levada às suas mãos a papeleta fúnebre, o funcionário viu pelo nome, que o morto era, nada mais, nada menos, do que o seu senhorio, o comendador Gonçalves Teixeira e teve, de repente, a ideia de uma represália: chegou ao portão, onde o esquife já repousava, agaloado, na carreta do cemitério, e, recebendo da família a chave do caixão, mandou rodar o ataúde no rumo da sepultura.

Terminadas, ali, entre lágrimas e vertigens, as angustiosas despedidas da praxe, um filho do defunto mandou chamar o administrador, a quem havia dado a chave do esquife, para que fosse identificar o morto, e fechar o caixão.

- Pronto! - apresentou-se Ximenes, apertado na sua sobrecasaca preta. - Que desejam?

- A chave, - explicou um parente do defunto.

- Suspendam a tampa do esquife, - ordenou o administrador.

Um amigo abriu o caixão funerário, onde jazia, inteiriçado, vestido de preto o corpo do desventurado capitalista.

Ximenes passou, meticuloso, a vista sobre o cadáver, e, vendo-lhe as mãos nuas, cruzadas sobre o peito bojudo, reclamou, severo:

- E as "luvas"? Querem, então, que ele desça à derradeira "morada" sem as "luvas"?

E não entregou a chave!
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Humberto de Campos Veras nasceu em Miritiba/MA (hoje Humberto de Campos) em 1886 e faleceu no Rio de Janeiro, em 1934. Jornalista, político e escritor brasileiro. Aos dezessete anos muda-se para o Pará, onde começa a exercer atividade jornalística na Folha do Norte e n'A Província do Pará. Em 1910, publica seu primeiro livro de versos, intitulado "Poeira" (1.ª série), que lhe dá razoável reconhecimento. Dois anos depois, muda-se para o Rio de Janeiro, onde prossegue sua carreira jornalística e passa a ganhar destaque no meio literário da Capital Federal, angariando a amizade de escritores como Coelho Neto, Emílio de Menezes e Olavo Bilac. Trabalhou no jornal "O Imparcial", ao lado de Rui Barbosa, José Veríssimo, Vicente de Carvalho e João Ribeiro. Torna-se cada vez mais conhecido em âmbito nacional por suas crônicas, publicadas em diversos jornais do Rio de Janeiro, São Paulo e outras capitais brasileiras, inclusive sob o pseudônimo "Conselheiro XX". Em 1919 ingressa na Academia Brasileira de Letras. Em 1933, com a saúde já debilitada, Humberto de Campos publicou suas Memórias (1886-1900), na qual descreve suas lembranças dos tempos da infância e juventude. Após vários anos de enfermidade, que lhe provocou a perda quase total da visão e graves problemas no sistema urinário, Humberto de Campos faleceu no Rio de Janeiro, em 1934, aos 48 anos, por uma síncope ocorrida durante uma cirurgia. Além do Conselheiro XX, Campos usou os pseudônimos de Almirante Justino Ribas, Luís Phoca, João Caetano, Giovani Morelli, Batu-Allah, Micromegas e Hélios. Algumas publicações são Da seara de Booz, crônicas (1918); Tonel de Diógenes, contos (1920); A serpente de bronze, contos (1921); A bacia de Pilatos, contos (1924); Pombos de Maomé, contos (1925); Antologia dos humoristas galantes (1926); O Brasil anedótico, anedotas (1927); O monstro e outros contos (1932); Poesias completas (1933); À sombra das tamareiras, contos (1934) etc.

Fontes: Humberto de Campos. A Serpente de Bronze. Publicado originalmente em 1925. Disponível em Domínio Público.  
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Vereda da Poesia = Eva Yanni Garcia (Caicó/RN)





Estante de Livros (7 livros de Júlio Verne: resumos)

1. Keraban, o cabeçudo (1883)

Keraban é um rico comerciante turco que se recusa a pagar um imposto para atravessar um rio. Determinado a não ceder, ele opta por uma jornada difícil e cheia de aventuras, que o leva a explorar a natureza e a cultura da região. Durante sua travessia, Keraban enfrenta desafios e perigos, ao mesmo tempo em que aprende sobre a importância da amizade e da solidariedade. 

Combina humor e crítica social, refletindo sobre a teimosia e a obstinação do protagonista.

2. Norte contra Sul (1887)

Neste romance, Verne retrata a rivalidade entre o Norte e o Sul dos Estados Unidos durante a Guerra Civil. A história acompanha um grupo de personagens que, em meio ao conflito, se deparam com dilemas morais e questões de lealdade. 

Verne utiliza a narrativa para explorar os efeitos da guerra nas vidas das pessoas comuns, mostrando suas esperanças e desilusões. A trama é marcada por uma crítica à guerra e à busca por um futuro melhor.

3. Os Filhos do Capitão Grant (1866)

A história começa quando um grupo de amigos encontra uma mensagem em uma garrafa, que pertence ao Capitão Grant, desaparecido em uma expedição. Com a ajuda dos filhos do capitão, eles embarcam em uma aventura marítima para resgatar Grant. A jornada os leva a diferentes partes do mundo, repleta de perigos e descobertas. 

Ao longo da história, temas de coragem, lealdade e a busca pela verdade são explorados, enquanto os personagens enfrentam desafios inesperados.

4. Robur, o Conquistador (1886)

Robur é um inventor brilhante que cria um gigantesco aeróstato, desafiando a ciência e a tecnologia da época. Ele sequestra membros da elite científica para provar sua invenção e demonstrar que a aviação pode revolucionar o transporte. 

A história mistura aventura e reflexão sobre o progresso tecnológico, à medida que Robur enfrenta seus opositores e luta por reconhecimento. O conto também explora a ambição e a visão de futuro do protagonista.

5. A Ilha da Hélice (1895)

Um grupo de cientistas e aventureiros se une para explorar uma misteriosa ilha que aparece em mapas antigos. A ilha é cercada por mistérios e perigos, revelando segredos sobre civilizações perdidas e tecnologias avançadas. 

À medida que os personagens se aprofundam na ilha, eles enfrentam desafios físicos e morais, levando a reflexões sobre a ambição humana e o desejo de conhecimento. A narrativa combina elementos de ficção científica com aventuras emocionantes.

6. O Farol do Fim do Mundo (1905)

A história se passa em um farol isolado na costa da Patagônia, onde um grupo de faroleiros enfrenta a ameaça de piratas. Com coragem e determinação, eles lutam para proteger o farol e a comunidade local. 

A obra explora temas de heroísmo e sacrifício, revelando a importância da união em tempos de crise. Verne descreve a vida no farol com detalhes vívidos, criando uma atmosfera de tensão e aventura.

7. Miguel Strogoff (1876)

Miguel Strogoff é um mensageiro do czar que recebe a missão de atravessar a Rússia até a Sibéria para entregar uma mensagem crucial. Durante sua jornada, ele enfrenta muitos perigos, incluindo inimigos e adversidades naturais. 

O livro é uma emocionante história de coragem, lealdade e sacrifício, à medida que Miguel luta para cumprir sua missão e proteger sua família. Verne explora a resiliência humana em tempos de desafio, transformando a viagem em uma épica aventura.
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Júlio Gabriel Verne nasceu em 1828, em Nantes, na França. Fez faculdade de Direito, em Paris, mas não exerceu a profissão, optou por não seguir esse rumo profissional e investiu na carreira de escritor. Em 1855 foi acometido por uma paralisia facial. Disposto a se casar com Honorine de Viane (1831–1910), ele se tornou corretor da bolsa de valores em 1857, até atingir grande sucesso como escritor, a partir da publicação de seu livro Cinco semanas em um balão, em 1863. Para sobreviver, foi secretário do Teatro Lírico. Foi eleito vereador em Amiens. Em 1892, se tornou oficial da Legião de Honra. Mas, com a morte de seu irmão Paul, em 1897, os problemas de saúde do escritor se agravaram. Ele morreu em 1905, na cidade de Amiens, é tido como o pioneiro da ficção científica. Assim, seus principais livros são direcionados ao público infantojuvenil e apresentam narrativas que também trazem conceitos científicos. 
Algumas obras, além das acima citadas: Cinco semanas em um balão (1863); Viagem ao centro da Terra (1864); Da Terra à Lua (1865); Vinte mil léguas submarinas (1870); A volta ao mundo em oitenta dias (1872); A ilha misteriosa (1874); A escola dos Robinsons (1882); A estrela do Sul (1884), etc.

Fonte: José Feldman (org.). Estante de livros. Maringá/PR: Poe. Biblioteca Voo da Gralha Azul.
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quinta-feira, 2 de janeiro de 2025

José Feldman (Guirlanda de Versos) * 13 *

 

José Feldman nasceu na capital de São Paulo. Formado técnico de patologia clínica, não conseguiu concluir o curso superior de psicologia. Foi enxadrista, professor, diretor, juiz e organizador de torneios de xadrez a nível nacional durante 24 anos; como diretor cultural organizou apresentações musicais; trovador da UBT São Paulo e membro da Casa do Poeta “Lampião de Gás”. Foi amigo pessoal de literatos de renome (falecidos), como Artur da Távola, André Carneiro, Eunice Arruda, Izo Goldman, Ademar Macedo, Hermoclydes S. Franco, e outros. Casado com a escritora, poetisa e tradutora professora Alba Krishna mudou-se em 1999 para o Paraná, morou em Curitiba e Ubiratã, radicou-se definitivamente em Maringá/PR. Consultor educacional junto a alunos e professores do Paraná e São Paulo. Pertence a diversas academias de letras e de trovas, fundador da Confraria Brasileira de Letras e Confraria Luso-Brasileira de Trovadores, possui o blog Singrando Horizontes desde 2007, com cerca de 20 mil publicações. Atualmente assina seus escritos por Campo Mourão/PR. Publicou mais de 500 e-books. Em literatura, organizador de concursos de trovas, gestor cultural, poeta, escritor e trovador. Dezenas de premiações em trovas e poesias.

José Luiz Ricchetti (Caminhos do Tempo)

“Há um silêncio que chega com os anos, e ele não é feito apenas da ausência de ruídos, mas da transição suave entre o que éramos e o que nos tornamos. 

Aos 60, você começa a sentir a sutileza do distanciamento. A sala que antes pulsava com suas ideias agora parece cheia de vozes que não pedem mais sua opinião. Não é uma rejeição, é o ritmo da vida. É quando aprendemos que nossa contribuição não está no presente imediato, mas nos rastros que deixamos nos corações e mentes ao longo do caminho.

Aos 65, você percebe que o mundo corporativo, outrora tão vital, é um fluxo incessante. Ele segue, indiferente ao que você fez ou deixou de fazer. Não é uma derrota, é a libertação. Esse é o momento de olhar para si mesmo, despir-se do ego e vestir a serenidade. Não se trata mais de provar, mas de ensinar, de compartilhar, de ser mentor. A verdadeira realização não é a que se exibe, mas a que inspira.

Aos 70, a sociedade parece lhe esquecer, mas será mesmo? Talvez seja apenas um convite para reavaliar o que realmente importa. Os jovens não o reconhecerão pelo que você foi, e isso é uma bênção disfarçada: você pode agora ser apenas quem você é. Sem máscaras, sem títulos, apenas a essência. Os velhos amigos, aqueles que não perguntam “quem você era”, mas “como você está”, tornam-se joias preciosas, diamantes que brilham no crepúsculo da vida.

E então, aos 80 ou 90, é a família que, na sua correria, se afasta um pouco mais. Mas é aí que a sabedoria nos abraça com força. Entendemos que amor não é posse; é liberdade. Seus filhos, seus netos, seguem suas vidas, como você seguiu a sua. A distância física não diminui o afeto, mas ensina que o amor verdadeiro é generoso, não exigente.

Quando a Terra finalmente chamar por você, não há motivo para medo. É a última dança de um ciclo natural, o encerramento de um capítulo escrito com suor, lágrimas, risos e memórias. Mas o que fica, o que realmente nunca será eliminado, são as marcas que deixamos nas almas que tocamos.

Portanto, enquanto há fôlego, energia, enquanto o coração bate firme, viva intensamente. Abrace os encontros, ria alto, desfrute os prazeres simples e complexos da vida. Cultive suas amizades como quem cuida de um jardim. Porque, no final, o que resta não são as conquistas, nem os títulos, nem os aplausos. O que resta são os laços, os momentos partilhados, a luz que espalhamos.

Seja luz, seja presença, e você será eterno.

Dedico a todos que entendem que o tempo não apaga, mas apenas transforma.”

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José Luiz Ricchetti é natural de São Manuel/SP, 1952.  Formado em engenharia mecânica, com pós-graduação pela FGV de SP, em Administração de Empresas e Comércio Exterior e MBA em Gestão de TI e Telecom pelo INATEL-UCAM - RJ. Atuou por mais de 40 anos, como executivo de grandes empresas brasileiras e multinacionais no Brasil e no exterior. Posteriormente fundou suas próprias empresas, com escritórios nos Estados Unidos, Portugal e Peru. Residiu no exterior por vários anos e realizou inúmeras viagens pelo mundo, onde teve a oportunidade de entrar em contato com as várias culturas, nos três continentes, América, Europa e Ásia.  Retornou ao Brasil em 2003 e fixou residência em São Paulo. Em 2017 se mudou para a cidade de São Carlos/SP, onde encerrou sua carreira de executivo para se dedicar a escrever livros de crônicas, contos.

Fontes: 
Texto enviado por Elisa Alderani.
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Aparecido Raimundo de Souza (De saia justa)


ELLEN, minha neta de treze anos se desentendeu feio com a mãe dela e gritou, para todos os demais presentes que estavam na sala que iria embora. 

Subiu para seu quarto, como um foguete, pegou uma mochila da Barbie, colocou um amontoado de roupas, calçou os tênis novos que lhe dei e sem perder o pique, desceu as escadas na mesma afoiteza com a qual subiu. 

Escancarou a porta da sala que dava acesso à rua. Antes de cruzar definitivamente o umbral, olhou para trás e mandou vê:

— Mãe, pai, tio, tia, primos Heitor e João Eduardo, nesta droga de casa eu não fico nem mais um segundo. Tchau. Fui!

Ensaiou dois passos à frente, espiou para a galera que seguia sentada no sofá vendo televisão, e, de soslaio, as vistas grudadas em sua nuca. 

Por fim, com o rostinho choroso, pegou na minha mão e inquiriu muito séria e compenetrada: 

— Vô, vovozinho, você vem comigo?
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Aparecido Raimundo de Souza, natural de Andirá/PR, 1953. Aos doze anos, deu vida ao livro “O menino de Andirá,” onde contava a sua vida desde os primórdios de seu nascimento, o qual nunca chegou a ser publicado. Em Osasco, foi responsável, de 1973 a 1981, pela coluna Social no jornal “Municípios em Marcha” (hoje “Diário de Osasco”). Neste jornal, além de sua coluna social, escrevia também crônicas, embora seu foco fosse viver e trazer à público as efervescências apenas em prol da sociedade local. Aos vinte anos, ingressou na Faculdade de Direito de Itu, formando-se bacharel em direito. Após este curso, matriculou-se na Faculdade da Fundação Cásper Líbero, diplomando-se em jornalismo. Colaborou como cronista, para diversos jornais do Rio de Janeiro e Minas Gerais, como A Gazeta do Rio de Janeiro, A Tribuna de Vitória e Jornal A Gazeta, entre outras.  Hoje, é free lancer da Revista ”QUEM” (da Rede Globo de Televisão), onde se dedica a publicar diariamente fofocas.  Escreve crônicas sobre os mais diversos temas as quintas-feiras para o jornal “O Dia, no Rio de Janeiro.” Acadêmico da Confraria Brasileira de Letras. Reside atualmente em Vila Velha/ES.

Fonte:
Texto enviado pelo autor. 
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Vereda da Poesia = Arthur Thomaz (Campinas/SP)



Abbie Philips Walker (O castelo azul)


Era uma vez, em um país distante, uma bruxa que vivia no topo de uma alta montanha. Todos os anos, ela descia até o reino e aparecia no palácio do rei, pedindo um saco de ouro.

Uma noite, quando o rei e sua rainha estavam celebrando alegremente com uma grande festa em homenagem ao nascimento de sua pequena filha, a princesa Lírio, a velha bruxa chegou ao palácio e pediu seu saco de ouro.

“Diga para ela ir embora,” disse o rei ao seu servo. “Eu usei todo o ouro dos cofres na festa; ela terá que voltar no próximo ano.”

A velha bruxa ficou muito irritada ao ouvir essa mensagem e se escondeu nos jardins do palácio até todos dormirem naquela noite. Então, ela entrou no palácio e sequestrou a bebê princesa.

A rainha e o rei ficaram desesperados de tristeza quando descobriram a perda, e ofereceram grandes recompensas para quem trouxesse sua filha de volta, mas ninguém conseguiu encontrá-la.

“Encontrem a velha bruxa que veio aqui na noite da festa,” disse um dos homens sábios do rei, “e vocês encontrarão a princesa.”

Procuraram por toda parte, mas a bruxa não foi encontrada, pois, quando alguém tentava escalar a montanha onde a velha bruxa morava, os insetos se tornavam tão espessos quanto neblina e nuvens, impedindo-os de ver o caminho.

Um por um, desistiram da tentativa, e assim, com o tempo, o rei e a rainha passaram a lamentar a filha como se estivesse morta, e a velha bruxa nunca mais voltou ao palácio.

A rainha e o rei nunca tiveram mais filhos, e todos os dias lamentavam, pensando que não haveria ninguém para reinar depois de sua partida.

Um dia, um dos homens sábios do rei disse a ele: “Em uma caverna na floresta vive um ogro que tem um cavalo maravilhoso. Ele é mantido em um estábulo feito de mármore, e seu estábulo é de ouro, e é alimentado com milho cultivado em um campo de pérolas.

“Se conseguirmos esse cavalo, talvez possamos escalar a montanha onde a velha bruxa vive, e quem sabe a princesa ainda esteja viva.”

“Mas como conseguiremos esse cavalo?” perguntou o rei.

“Ah! Essa é a parte difícil,” respondeu o sábio. “A criatura encantada só pode ser capturada e montada por quem puder alimentá-la com o milho mágico, e dizem que quem tenta colher o milho do campo de pérolas sente-se afundando e precisa correr para salvar sua vida. Somente o ogro, que conhece as palavras mágicas que impedem as pérolas de sugá-lo para dentro da terra, pode colher o milho.”

Ao ouvir isso, o rei convocou todos os príncipes do reino para irem ao seu palácio, e, quando chegaram, ele lhes disse que daria seu reino àquele que conseguisse capturar e montar o cavalo encantado do ogro se pudesse encontrar a princesa Lírio, e ela se tornaria sua esposa.

Mas todos os príncipes eram ricos o suficiente e não se importavam em correr tal risco, especialmente porque nunca tinham visto a princesa Lírio.

Então, o rei enviou a mensagem a todos os jovens pobres do reino para virem até ele e lhes fez a mesma oferta, mas um a um eles desistiram. No final, restou apenas um jovem camponês.

“Eu vou tentar, Vossa Majestade,” disse ele, “mas não me casarei com a princesa a menos que possa amá-la, e se ela não quiser se casar comigo, também não vou exigir essa parte do acordo, mas ficarei com o reino se trouxer sua filha de volta.”

Naquela noite, o jovem camponês foi até uma fada que vivia na floresta e pediu sua ajuda.

“Você só pode entrar no campo de milho mágico usando os sapatos mágicos do ogro, e ele sempre dorme com eles debaixo da cama. Eles estão amarrados ao dedão do pé direito dele por um fio de seda, e ninguém pode cortá-lo ou quebrá-lo sem acordar o ogro.

“Vou lhe dar uma pena, e se você tiver a sorte de entrar no quarto dele sem ser pego, pois ele é bem guardado por um cachorro com duas cabeças, use essa pena para fazer cócegas no pé esquerdo dele, e assim você poderá cortar o fio de seda sem que o ogro perceba. Isso é tudo o que posso fazer por você. O cachorro de duas cabeças não está sob o meu controle.”

Então, o camponês pegou a pena mágica e naquela noite foi até o castelo do ogro na floresta e esperou até ouvir os roncos do ogro. Em seguida, ele tirou dois grandes ossos do bolso.

Ele abriu a porta do castelo, pois o ogro não temia ninguém e não trancava sua porta à noite.

O cachorro de duas cabeças rosnou e avançou em direção ao camponês, mas ele rapidamente enfiou um osso na boca de cada cabeça, o que os acalmou.

As duas cabeças começaram a roer os ossos, e enquanto isso o camponês entrou sorrateiramente no quarto onde o ogro estava dormindo e fez cócegas no pé esquerdo dele, que estava fora das cobertas.

O velho ogro começou a rir, e riu tão alto que nenhum outro som era ouvido; o camponês teve tempo de quebrar o fino fio que estava preso aos sapatos mágicos com uma das mãos, enquanto continuava fazendo cócegas no ogro com a pena na outra mão.

Quando já estava com os sapatos debaixo do braço, saiu silenciosamente da cama, deixando o ogro rindo.

O cachorro de duas cabeças ainda mastigava os ossos, e o camponês saiu sorrateiramente e se sentou nos degraus do castelo para calçar os sapatos mágicos.

Ele mal tinha calçado os sapatos quando o cachorro de duas cabeças terminou os ossos e começou a latir tão forte que o camponês achou a princípio que fosse trovão.

Ele correu até o campo de pérolas, onde o milho mágico estava crescendo, e estava puxando as espigas quando o ogro saiu correndo de seu castelo, seguido pelo cachorro de duas cabeças, com as bocas abertas, parecendo querer devorá-lo.

O camponês saiu correndo do campo, mas não antes de o ogro ter entrado, e o ogro afundou imediatamente, desaparecendo de vista quando as pérolas fecharam-se sobre sua cabeça, pois, é claro, ele havia esquecido tudo sobre os sapatos quando ouviu o cachorro latir, e de qualquer forma pensou que eles ainda estavam amarrados ao seu dedão.

Embora o camponês estivesse livre do ogro, ele ainda estava sendo perseguido pelo cachorro de duas cabeças, que corria atrás dele mostrando seus dois conjuntos de dentes grandes e latindo o tempo todo. Mas o camponês estava muito à frente do cachorro, e chegou ao estábulo a tempo de alimentar o cavalo encantado com o milho mágico. O cavalo relinchou amavelmente e deixou o camponês montá-lo.

O cavalo usava uma sela de veludo roxo, com enfeites de ouro e prata, e era branco como a neve. Ele também tinha uma rédea de ouro e prata decorada com rubis.

Era um cavalo digno de um rei, e o camponês, em cima dele, parecia totalmente fora de lugar.

Assim que o camponês chegou ao pátio do castelo, o cachorro de duas cabeças avançou para morder as patas traseiras do cavalo encantado, mas o cavalo deu um coice nele, e o cachorro rolou para o lado.

O camponês olhou para trás para ver o que tinha acontecido com o cachorro, mas ele não estava mais lá; no lugar onde ele estava havia agora uma grande rocha escura com um topo irregular que se assemelhava a um conjunto de enormes dentes.

O camponês estava livre de ambos os perseguidores agora, e montou em direção à montanha onde o rei havia dito que a bruxa vivia.

O cavalo encantado galopou montanha acima, como se tivesse asas em vez de patas, e em poucos minutos levou o camponês até o topo.

O camponês olhou à sua volta, esperando ver uma caverna, mas, para sua surpresa, viu apenas um bosque de árvores com algo brilhando através das folhas, que parecia ser uma casa.

Ao se aproximar do bosque, viu um castelo de vidro azul profundo, sem portas nem janelas. Dentro, ele viu uma garota fiando.

Ela olhou para cima quando a sombra do cavalo e do cavaleiro caiu sobre o castelo de vidro, e seus olhos se arregalaram de surpresa, mas antes que o camponês pudesse descer do cavalo, uma velha apareceu passando pelo chão da casa e bateu com sua bengala na cabeça da garota, que se transformou em um rato.

O camponês ficou tão espantado que não se mexeu por um minuto, mas o riso da velha o trouxe de volta à realidade e ele soube que aquela devia ser a bruxa.

“Ha, ha! Você pegou o cavalo, mas não pode trazer de volta a princesa até que eu permita!” ela gritou, e então desapareceu pelo chão.

O camponês andou em volta do castelo azul, mas não encontrou nenhuma porta ou janela, ou qualquer abertura.

Ele estava segurando o cavalo pela rédea de ouro quando de repente o cavalo levantou uma das patas dianteiras e bateu no castelo azul.

O castelo de vidro azul estilhaçou-se, e o camponês viu uma abertura grande o suficiente para ele entrar.

Estava prestes a fazê-lo, deixando o cavalo encantado do lado de fora, quando ouviu outro estrondo; o cavalo encantado o estava seguindo, tendo quebrado mais uma parte do vidro, criando uma abertura maior para os dois entrarem.

O rato estava encolhido em um canto da sala, e o camponês o pegou com cuidado e o colocou em seu bolso.

O cavalo foi até o local onde a velha bruxa havia desaparecido no chão e bateu três vezes com uma das patas dianteiras no piso de vidro. De repente, a bruxa apareceu novamente. Mas desta vez, ela não estava rindo; parecia assustada, e tremia tanto que teve que se apoiar na bengala para não cair.

O cavalo encantado a pegou pela saia e a sacudiu três vezes, e de seu bolso caiu um feijão preto com uma mancha branca.

Quando o feijão caiu, a velha bruxa gritou e caiu no chão. O cavalo pegou o feijão e o engoliu.

O camponês estava todo esse tempo observando os eventos estranhos, sem ousar se mover por medo de quebrar o feitiço, e se perguntando o que viria a seguir.

Quando o cavalo engoliu o feijão, ele começou a desaparecer, e uma névoa azul encheu a sala. Quando a névoa se dissipou, o camponês viu um jovem no lugar onde o cavalo estava, e onde a bruxa havia estado, havia um buraco profundo.

“Ela caiu no buraco?” perguntou o camponês, sem saber o que mais dizer.

“Não; nesse buraco encontraremos o feitiço mágico que vai restaurar a princesa à sua forma normal,” disse o jovem. “A bruxa desapareceu na névoa azul.”

“Vamos logo encontrar o feitiço mágico,” ele disse, e entrou no buraco. O camponês o seguiu.

Havia uma escada pela qual eles desceram, e desceram tanto que parecia que nunca chegariam ao fim.

Mas finalmente seus pés tocaram em algo firme e macio, e eles estavam em uma linda sala com um tapete de veludo azul.

A sala era decorada com veludo na cor de safira, e as cadeiras eram de ouro polido com assentos de veludo.

Uma fonte de ouro jorrava no meio da sala, e a água caía em uma bacia de safira.

“Essa é a fonte mágica,” disse o jovem. “Você deve jogar o pequeno rato nela se quiser trazer de volta a princesa.

O camponês tirou o rato trêmulo do bolso. “Ele está com medo,” disse ele. “Eu não gosto de jogá-lo nesta água profunda.”

Sem responder, o jovem pegou o rato da mão do camponês e o jogou com força na fonte. O rato sumiu de vista.

“Oh, você o matou!” disse o camponês, olhando com olhos assustados para a água azul.

Então ele viu uma cabeça subindo lentamente do fundo da bacia azul. Logo, a cabeça emergiu da água, e então uma linda garota saiu da fonte, com seu cabelo dourado todo molhado e brilhante.

Uma brisa suave passou pelas janelas, e logo o cabelo e as roupas dela secaram. O camponês pensou que nunca tinha visto alguém tão bonita quanto a princesa.

“Eu sou o príncipe que foi transformado em um cavalo pelo ogro,” disse o jovem, dirigindo-se à princesa. “Fui roubado ao mesmo tempo que você, e o ogro, que era o marido da bruxa, me levou, enquanto a bruxa levou você. Mas este camponês nos resgatou, pois foi aqui que o feijão mágico que me restaurou à minha forma estava guardado. Se não fosse por uma fada que veio até mim uma noite e me contou o segredo, eu nunca teria recuperado minha forma original.”

Enquanto o príncipe falava, o camponês viu a princesa olhando para ele com um olhar de amor, e ele soube que a princesa não era para ele. Além disso, ele sabia que nunca seria feliz em um palácio.

Eles começaram a explorar e descobriram que estavam em um lindo palácio onde a velha bruxa havia morado. Agora que ela se fora para sempre, o camponês decidiu que ficaria com o palácio como recompensa e deixaria o príncipe e a princesa voltarem para o pai dela.

Nos estábulos encontraram belos cavalos brancos, e em um deles o príncipe e a princesa montaram para voltar ao reino, após fazerem o camponês prometer que iria ao casamento deles e dançaria com a noiva. “Pois nunca vamos esquecê-lo,” disse a princesa, “e sempre seremos amigos.”

Os pais da princesa ouviram atentamente a história contada pelo príncipe. Então, a rainha disse: “Eu posso dizer se esta é ou não minha filha desaparecida. Deixe-me ver seu ombro esquerdo; ela tem seu nome marcado nesse ombro, se for nossa filha.”

A princesa mostrou seu ombro, e a rainha viu ali uma pequena flor de lírio, que provava que era realmente sua filha.

O rei deu uma grande festa em honra ao retorno de sua filha, e o príncipe e a princesa se casaram. O camponês dançou no casamento, conforme prometido.
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Abbie Hoxie Phillips Jacob Walker foi uma autora americana conhecida por suas contribuições cativantes para a literatura infantil no início do século 20. Nascida em Exeter, Rhode Island, Estados Unidos, em 1867. Walker cultivou um estilo que envolvia o caprichoso e o didático, com o objetivo de entreter e instruir as mentes jovens. Grande parte da escrita de Walker está encapsulada em sua deliciosa coleção de histórias para dormir intitulada 'The Sandman's Hour: Stories for Bedtime', que foi publicado em 1916 e despertou a imaginação de inúmeras crianças ao longo das gerações. Nesta antologia, Walker exibe uma propensão para elaborar contos imbuídos de um senso de admiração e lições morais, adaptado para mandar as crianças dormir com sonhos inspirados em suas proezas narrativas. Seu estilo literário muitas vezes espelha a tradição oral de contar histórias, com uma qualidade lírica que ecoa a atemporalidade dos contos populares. A abordagem sutil de Walker ao tecer contos que falam tanto da inocência da juventude quanto da sabedoria buscada pelas mentes em crescimento tornou suas obras clássicos duradouros no domínio da literatura infantil. Embora informações biográficas detalhadas sobre Walker sejam relativamente escassas, seu corpo de trabalho continua a falar de seu legado como autora cujas histórias embalaram e inspiraram, muito parecido com o Sandman homônimo de seu livro mais conhecido. Faleceu em 1951.

Fontes> Abbie Phillips Walker (EUA, 1867 - 1951). Contos para crianças. 
Disponível em Domínio Público.
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Célio Simões (O nosso português de cada dia) ““Botar as barbas de molho”

É outra expressão popular da língua portuguesa, que equivale a “deixar as barbas de molho” ou “colocar as barbas de molho”, justamente porque todas elas indicam que determinada pessoa, com presumível culpa no cartório, deve ficar alerta, esperta, preparada para o que der e vier, porque a sua “batata está assando” e mais cedo ou mais tarde haverá algum ajuste de contas.

Desde a mais remota Antiguidade a Idade Média, a barba sempre foi vista e considerada como o símbolo máximo da masculinidade, da honra, da determinação e do poder. Por essa ótica, era impensável que um indivíduo, ciente desses atributos, permitisse que outro - barbeiro ou não - cortasse sua barba, pois isso significava indignidade, flagrante, pública e inaceitável humilhação perante o meio social em que a pessoa vivia. 

Com o passar do tempo e até os dias de hoje, ouvir alguém dizer que alguém deveria “deixar suas barbas de molho”, significa aludir que por algum motivo, o tal sujeito deveria ficar de sobreaviso, prevenido para qualquer eventualidade, porquanto algo ocorrerá acabando por lhe impor determinada penalidade. 
 
Na Espanha é de cediço conhecimento famoso provérbio que diz: “Quando você vir as barbas de seu vizinho pegar fogo, ponha as suas de molho” indicando, com base no que aconteceu com alguém muito próximo, que a mesma coisa poderá acontecer com o próprio.
 
Alguns estudiosos afirmam que esta expressão sofreu uma corruptela motivada pelas condições de pobreza que caracterizou a sociedade brasileira na primeira metade do Século XX, fase histórica na qual os cortiços que albergavam os menos favorecidos eram construídos pegados uns aos outros, tendo como cobertura um capim denominado “bargas”, quase uma variação do sapê, tendo  na Amazônia seu correspondente na carnaúba, no babaçu, no buriti e na piaçava, que se prestam à cobertura dos barracos ribeirinhos. 

Pois bem, tais habitações utilizavam grandes fogões à lenha para o preparo das refeições dos moradores, que lançavam fagulhas que causavam incêndios entre elas, facilmente disseminados pelo vento, devastando todas as que estavam próximas. Daí adveio o costume do vizinho da casa que ardia em chamas de molhar intensamente seu telhado, como meio hábil de salvá-la, surgindo assim a expressão: “Fulano colocou suas “bargas” de molho, porque que a casa do vizinho está queimando!”, fala popular transmudada para “barbas”, pelo repetitivo dizer dos que enfrentavam o problema.

A expressão é tão utilizada que inspirou o livro “Barbas de molho” do escritor Luís Pimentel (Editora Dimensão, 64 páginas), que recebeu o Prêmio Cruz e Souza de Santa Catarina, pela Menção Honrosa recebida como finalista do Concurso Nacional de Literatura João-de-Barro, do Estado de Minas Gerais, ao discorrer sobre a vida de um menino no Brasil dos anos 30, contando seus primeiros encontros amorosos, os meandros da revolução tenentista, a pobreza do bairro em que morava e, mesmo assim, sua grande alegria de viver.

Pela sua popularidade, o tema inclusive foi objeto dos versos da esquecida e jocosa Dança da Desfeiteira, praticada nos folguedos juninos das cidades do Baixo Amazonas, onde os versejadores não deixaram por menos:

O cavalheiro:
tapuinha oferecida
no teu gingar estou de olho
contigo na minha vida
vou botar as barbas de molho...

A dama: 
Te manca, chifrudo!...

Barbas longas e bem cuidadas sempre fizeram a fama de muita gente no mundo todo, que por causa delas faturaram respeitabilidade e fixaram imagem identitária inconfundível, talvez por isso nunca admitiram raspá-las, do que é o melhor exemplo Papai Noel, ícone universal do Natal, que viraria apenas mais um na multidão trajado de vermelho, sem a sua branca e esvoaçante barba.

Para ficar só entre os políticos que governaram o Brasil nos primórdios da República, Deodoro, Floriano, Prudente de Morais, Rodrigues Alves e no Segundo Império, o respeitável, visionário, generoso e culto Imperador Dom Pedro II (um nobre de origem e não de título comprado), que teve o privilégio de existir na época áurea em que um fio da barba ou do bigode tinha a força de um documento solene para selar compromissos, prática de há muito postergada pelos espertalhões de todo tipo com os quais, nos dias de hoje, as pessoas de bem tem a desventura e a má sorte de conviver.
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Célio Simões de Souza é paraense, advogado, pós-graduado em Direito e Processo do Trabalho, escritor, professor, palestrante, poeta e memorialista. Membro da Academia Paraense de Letras, membro e ex-presidente da Academia Paraense de Letras Jurídicas, fundador e ex-vice-presidente da Academia Paraense de Jornalismo, fundador e ex-presidente da Academia Artística e Literária de Óbidos, membro da Academia Paraense Literária Interiorana e da Confraria Brasileira de Letras em Maringá (PR). Foi juiz do TRE-PA, é sócio efetivo do Instituto Histórico e Geográfico do Pará, sócio correspondente do Instituto Histórico e Geográfico do Tapajós, fundador e membro da União dos Juristas Católicos de Belém e membro titular do Instituto dos Advogados do Pará. Tem seis livros publicados e recebeu três prêmios literários.

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quarta-feira, 1 de janeiro de 2025

José Feldman (Abelardo e Azeitona)

Abelardo sempre foi um homem solitário, mas sua vida ganhou um novo significado quando decidiu adotar um cachorro de rua. Ele o chamou de Azeitona, um nome que refletia tanto a cor do pelo do animal quanto sua personalidade travessa. Desde filhote, Azeitona se tornou o melhor amigo de Abelardo, acompanhando-o em todas as suas aventuras e se tornando parte de sua rotina.

Os dois eram inseparáveis. Todos os dias, ao amanhecer, eles se dirigiam ao parque da cidade, onde Azeitona corria livremente, brincando com outros cães e perseguindo folhas que voavam com o vento. O parque era um refúgio para Abelardo, um lugar onde ele se sentia em paz, cercado pela natureza e pela alegria de seu fiel amigo.

Certa tarde, como de costume, Abelardo decidiu fazer uma pausa em um dos bancos do parque. O dia estava ensolarado e calmo. Ele observou Azeitona brincar com uma bolinha que havia trazido, rindo com a energia do cão. Mas, em um momento de distração, ele fechou os olhos e deixou-se levar pela brisa suave. Quando os abriu, Azeitona havia desaparecido.

O coração de Abelardo disparou. "Azeitona!" ele chamou, mas o silêncio do parque respondeu apenas com o farfalhar das folhas. Ele se levantou rapidamente, o desespero tomando conta de seu peito. Começou a procurar, chamando pelo nome do cachorro, perguntando a todos que encontrava pelo caminho se haviam visto seu amigo. Cada resposta negativa parecia um golpe, e a angústia crescia a cada segundo.

Percorreu o parque em busca de Azeitona, passando por caminhos que nunca havia explorado. Ele se sentia perdido, não apenas em relação ao espaço, mas também em sua própria esperança. Horas se passaram, e a luz do sol começou a se pôr, colorindo o céu com tons de laranja e rosa, mas isso não trazia conforto.

Do outro lado do parque, Azeitona também estava angustiado. Ele havia se afastado, atraído por um grupo de crianças que brincavam com uma bola. Quando percebeu que seu dono havia desaparecido, entrou em pânico. Correu por arbustos e trilhas desconhecidas, chamando por Abelardo, mas não conseguia encontrá-lo. O desespero tomou conta do pequeno cão, que começou a ganir, ecoando sua tristeza.

Finalmente, após horas de busca, Abelardo ouviu um som familiar. Era um ganido fraco, mas cheio de desespero. Seu coração se encheu de esperança. Ele seguiu a direção do som e, ao virar uma esquina, avistou Azeitona, encolhido em um canto, tremendo de medo.

Os olhos de Abelardo se encheram de lágrimas. Ele correu até Azeitona, que o reconheceu instantaneamente. O cachorro saltou para os braços do homem, abanando o rabo com toda a força que tinha, como se quisesse compensar cada segundo em que estiveram separados. Abelardo o abraçou com força, sentindo a suavidade do pelo e o calor do corpo de Azeitona.

"Eu pensei que nunca mais te encontraria, meu amigo!" disse, a voz embargada pela emoção.

Azeitona, aliviado e feliz, lambeu o rosto de Abelardo, expressando toda a sua alegria. O rabo do cachorro balançava freneticamente, quase parecendo um chicote, e Abelardo não pôde deixar de rir.

"Vai devagar com este rabo, parece um chicote!" brincou ele, enquanto algumas pessoas que haviam se juntado à busca também riam e se emocionavam com o reencontro.

O parque, que antes parecia um labirinto de incertezas, agora se enchia de alegria. Abelardo e Azeitona estavam juntos novamente, e isso era tudo o que importava. A amizade entre eles se fortalecia ainda mais naquele momento. Agradecendo a todos que o ajudaram, Abelardo se sentiu grato, não apenas por ter encontrado seu amigo, mas também pela solidariedade que o cercava.

Os anos passaram, e a relação entre Abelardo e Azeitona se aprofundou. O parque, que uma vez foi o cenário de seu reencontro emocionante, tornou-se o palco de muitas memórias: corridas alegres, piqueniques sob a sombra das árvores e longas caminhadas ao pôr do sol. Abelardo observou Azeitona crescer, seu pelo escurecendo e suas patas se tornando mais lentas. No entanto, o brilho nos olhos do cão nunca se apagou.

Com o passar do tempo, Abelardo também sentiu os efeitos da idade. Seus cabelos, antes escuros, agora eram salpicados de grisalhos, e sua energia não era mais a mesma. Mas a presença de Azeitona ao seu lado sempre o animava. O cachorro parecia entender quando Abelardo estava cansado, fazendo questão de parar e descansar um pouco, como se quisesse preservar cada momento juntos.

Certa manhã, enquanto caminhavam pelo parque, Abelardo se sentou em um banco, observando o movimento ao seu redor. As crianças brincavam, os casais passeavam de mãos dadas, e os pássaros cantavam nas árvores. Ele olhou para Azeitona, que se deitou ao seu lado, com a cabeça apoiada nas patas dianteiras. Era um momento simples, mas cheio de significado.

"Azeitona, você sempre esteve comigo, não é?" Abelardo disse, acariciando o pelo macio do cachorro. "Passamos por tantas coisas juntos."

O cão levantou a cabeça, olhando para Abelardo com seus olhos expressivos. Era como se ele entendesse cada palavra, cada sentimento. Azeitona lambeu a mão do homem, como se quisesse confortá-lo.

Com o tempo, as caminhadas se tornaram mais curtas. Azeitona, agora um velho amigo, preferia explorar os pequenos caminhos do parque, cheirando cada cantinho e apreciando a brisa suave. Abelardo, por sua vez, começou a notar que a energia de seu fiel companheiro estava diminuindo. As corridas alegres foram substituídas por caminhadas lentas e contemplativas.

Certa tarde, enquanto se sentavam juntos em seu banco favorito, Abelardo sentiu uma pontada de tristeza. Ele sabia que o tempo era implacável e que cada dia que passava era precioso. Olhando Azeitona, ele percebeu que o cachorro havia se tornado mais do que um amigo; era uma parte de sua alma.

"Eu prometo que vou cuidar de você para sempre, Azeitona," ele disse, a voz embargada. "Você é a melhor parte da minha vida."

Nos meses seguintes, Abelardo fez tudo o que pôde para tornar os dias de Azeitona confortáveis. Ele comprou cobertores macios e petiscos especiais, e sempre que possível, tentava levar o cachorro ao parque. A amizade deles era uma fonte de força, e mesmo nos dias mais difíceis, o amor que compartilhavam iluminava suas vidas.

Certa manhã, enquanto o sol nascia, Abelardo acordou e percebeu que Azeitona não estava ao seu lado. Um frio na barriga tomou conta dele. Ele se levantou e procurou por toda a casa, até que encontrou seu querido cão deitado em sua cama, respirando calmamente, mas com um olhar distante. Abelardo se ajoelhou ao lado dele, acariciando sua cabeça.

"Oi, meu velho amigo," disse Abelardo, a voz trêmula. "Eu estou aqui."

Azeitona levantou a cabeça lentamente, reconhecendo a presença de seu dono. Abelardo sentiu uma onda de nostalgia ao recordar todos os momentos que compartilharam. Ele se lembrou das corridas no parque, das risadas, e da profunda conexão que formaram ao longo dos anos.

Naquele instante, Abelardo decidiu que faria daquele dia um dia especial. Ele preparou um piquenique com os petiscos favoritos de Azeitona e os levou para o parque. Sentaram-se juntos sob a sombra de uma árvore, e Abelardo compartilhou histórias de suas aventuras, como se o tempo tivesse parado.

"Você sempre foi meu melhor amigo, Azeitona," ele disse, olhando nos olhos do cachorro. "E sempre será."

Enquanto o sol se punha, Abelardo percebeu que a luz nos olhos de Azeitona estava começando a se apagar. O amor que compartilhavam era eterno, e ele sabia que, não importava o que acontecesse, Azeitona sempre estaria em seu coração.

Uma onda de tristeza envolveu Abelardo. O peso do tempo, das memórias e da iminente perda o atingiu como um soco no estômago. O amor que sentia por aquele cachorro era tão profundo que parecia quase insuportável.

"Eu não sei o que vou fazer sem você," ele murmurou, a voz tremendo. "Você é tudo para mim."

A tristeza começou a se transformar em um nó apertado no peito, e Abelardo sentiu seu coração disparar. Ele tentou ignorar, mas a sensação era esmagadora. O desespero de perder Azeitona era tão intenso que ele se viu lutando para respirar. 

"Por favor, não me deixe," implorou, enquanto as lágrimas escorriam por seu rosto. 

Nesse momento, a dor se intensificou, e, de repente, Abelardo caiu para trás, o coração não suportou a carga emocional. Ele caiu no chão, ainda segurando Azeitona em seus braços, o cachorro imediatamente percebendo a mudança. Azeitona lambeu o rosto de Abelardo, como se tentasse acordá-lo, mas o homem não respondeu.

Naquela entardecer, enquanto a lua começava a iluminar o céu, Azeitona fechou os olhos pela última vez, com a cabeça apoiada no colo de Abelardo.

O parque, antes cheio de vida, silenciou. As risadas e os sons da natureza se tornaram um eco distante. As pessoas que passavam notaram a cena e correram em direção a Abelardo, mas era tarde demais. O amor incondicional que unia os dois havia se tornado um laço eterno, selado naquele último abraço.

As lágrimas começaram a cair dos rostos dos que assistiam à cena, muitos lembrando-se de seus próprios amores e perdas. Era um momento de profunda conexão, uma lembrança de que, mesmo em sua fragilidade, o amor pode ser uma força poderosa e transformadora.

Para aqueles que testemunharam a cena, nada seria igual. A história de Abelardo e Azeitona se tornaria uma lenda local, um exemplo de amor puro e incondicional que transcendeu a barreira entre o homem e o animal, mostrando que, mesmo em sua diferença, eles eram iguais na profundidade de seus sentimentos.

E assim, juntos, eles deixaram este mundo — um em um último suspiro em um amor que nunca morreria. O parque, repleto de memórias, agora guardaria para sempre a essência daquele amor imenso, imortalizado no coração de todos que tiveram a sorte de conhecer a história de Abelardo e Azeitona.
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JOSÉ FELDMAN nasceu na capital de São Paulo. Formado em técnico de patologia clínica trabalhou por mais de uma década no Hospital das Clínicas. Foi enxadrista, professor, diretor, juiz e organizador de torneios de xadrez a nível nacional durante 24 anos; como diretor cultural organizou apresentações musicais; membro da Casa do Poeta “Lampião de Gás”. Foi amigo pessoal de literatos de renome (falecidos), como Artur da Távola, André Carneiro, Eunice Arruda, Izo Goldman, Ademar Macedo, e outros. Casado com a escritora, poetisa, tradutora e atualmente professora pós-doutorada da UEM, mudou-se em 1999 para o Paraná, morou em Curitiba e Ubiratã, morando atualmente em Maringá/PR em 2011. Consultor educacional junto a alunos e professores do Paraná e São Paulo. Pertence a diversas academias de letras, como Academia Rotary de Letras, Academia Internacional da União Cultural, Academia de Letras de Teófilo Otoni, Confraria Luso-Brasileira de Trovadores, Academia Virtual Brasileira de Trovadores, etc, possui o blog Singrando Horizontes desde 2007, e Pérgola de Textos, um blog com textos de sua autoria. Assina seus escritos por Floresta/PR. Publicou mais de 500 e-books. Premiações em poesias no Brasil e exterior.


Fonte: José Feldman. Labirintos da vida. Maringá/PR: Plat.Poe. Biblioteca Voo da Gralha Azul.
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segunda-feira, 30 de dezembro de 2024

Daniel Maurício (Poética) 83


O poeta Daniel Mauricio é natural de Jaguariaíva/PR, em 1968, Graduado em Letras - UFPR; Administração de Empresas - FESP; Direito - FARESC; Pós-graduado em Gestão Administrativa e Tributária – PUC/PR; Pós-Graduado em Gestão de Pessoas e Qualidade no Setor Público - SPEI; Pós-Graduado em Gestão Pública de Tecnologia da Informação – PUC/PR; Pós-Graduado em Gestão Pública – FAEL. É Auditor de Tributos Municipais da Secretaria Municipal de Finanças da Prefeitura Municipal de Curitiba. Foi Integrante da Câmara Técnica Permanente da ABRASF – Associação dos Secretários de Finanças das Capitais, atualmente Chefe de Serviços do Setor de Processos Administrativos da PMC, Professor da Rede Municipal de Curitiba; Monitor na área de Linguística na Universidade Federal do Paraná, entre outros.
Pertence ao  Centro de Letras do Paraná; - Academia de Cultura de Curitiba; Confraria Brasileira de Letras; Academia de Artes, Ciências e Letras do Brasil; União Brasileira de Escritores etc.
Publicou livros de poemas: Mosaico de Sentimentos; Cacos e Retalhos; Gotas Poéticas; Origamis de Palavras; Palavras de Cheiro;  Miudezas do Coração; Poemininos; Poesias da Madrugada; Leve-me;  Alma Lírica; Olhares; e Amar É.

Renato Frata (Visita)

A poeira acumulada sobre a lápide saiu com água e vassouradas, na rápida faxina. Fazia algum tempo que não visitava o túmulo de meus pais; por isso, quase findo o expediente, juntei balde e vassoura para me colocar à tarefa. O anseio da chegada do outono já diminuía a robustez do sol, de modo que não me preocupei com seu excesso embora o calor desse o tom de tarde ensolarada com nuvens claras em vadiagem.

No céu de outono se escondem as maiores belezas, já dissera alguém e, naquele dia, quando o sol já projetava um barrado vermelho tingindo o horizonte, um azul acinzentado se alimentava em meio a uma ou outra nuvem de algodão a lhe quebrar a cor, o que significava que a seca se manteria. Absorto e em meio ao mudo silêncio de vozes no recanto, somente esfregares e piares se ouvia. De resto, a solidão com seu manto sóbrio junto ã beleza entristecida dos fachos de luz vazados como flechas fosforescentes entre ramos, esticados e debruçados alisando-se em túmulos impolutos e granitados, decorados com bronzes e cristais a mostrarem posse dos ocupantes e, também, porque não dizer, disseminavam-se a não ver diferença naquelas campas menores de acabamento simples, com pinturas gastas ou até sem elas, adornadas por cruzes de madeira e números enferrujados nas placas indicativas, e o fazia por igual, com a mesma beleza, sem se importar com essa exagerada diferença.

Alguns estavam limpos e asseados, outros, porém, á mercê das travas do tempo, carentes de limpeza e zelo no mais explícito descaso. Para aqueles fachos, porém, sem se aterem à distinção da aparência e pompa, todos mereceram clarões na proporção que os ramos permitiam ao quararem a luz e, convenhamos, poder notar essa beleza num fim de tarde, com lúmens tão nítidos a criarem visões esplêndidas na singela expressão da igualdade, o ignorar das especificidades tumulares direcionando-se a esmo como o sol ordenava, repetia aos meus olhos a certeza de que finda a vida tudo se iguala ao voltar ao pó, embora, pelo nascimento, cada qual devesse ser livre e igual em dignidade, em direito e em disposição. 

E aí me veio uma dúvida que hoje, centrado em mim, ponho-me em comiseração sem encontrar resposta entre muitas que bailam soltas em dança maluca: por que tanta diferença entre os seres, já que a vida reserva para si a busca incessante da sabedoria? Não deveria o homem, de qualquer estágio econômico e social saber sonhar com tudo o que existe e não apenas consigo e, com isso, se permitir àquilo que o sonho em si revela? Por que a vida não mostra a todos o mesmo caminho das oportunidades? Por que somente a morte e não a vida, nos iguala independentemente dos abrigos que nos dão no cemitério?

A luz projetada em leque iluminando pontos dispersos, somada à terra esfarelada em voejo (esvoaçante) pelo vento ao silêncio soturno do vazio na tarde modorrenta, à solidão penumbrosa de melancolia que escorria aos olhos do sol poente e à cor do esquecimento estampada em várias tumbas, criaram esse conjunto de indagações. Bom de observar e ruim de se ruminar, impossível de aceitar. A diferença na vida faz a constância! - é o ditado. Por isso nos acostumamos... e passamos ao largo, longe das cercas necessárias, cegos para a pobreza e particularidades humanas.

Pois, daí a pouco, sem menos esperar, uma aragem impregnada de poeira cheirando à terra saturou o ar e me fez sentir inusitadas sensações a me assomarem sem que desse conta da sua pujança. Se não digo bela, no mínimo era surreal pelo esplendor mostrado.

O sol, como a se despedir findo em encantos na realidade perversa que relegamos, pôs-me cruz no coração. 

Por que nunca notara tais diferenças? Se as notei, por que as releguei? Não saberia dizer. Foi tão instantâneo que a rapidez do tempo não me permitiu decifrar esses sentimentos, e nem sei ainda o porquê de ter juntado os elementos incomuns num momento tão íntimo que é a visita a falecidos.

A quietude ampliada pelo sol sendo absorvido num pré–crepúsculo em meio ao vento morno da boca da noite, como ordem sistemática, calaram-se os pássaros para fazer em mim daquele silêncio o grito da realidade. O tremular das chamas vivas no veleiro a suportar o buliçoso que as soprava, ajudou-me a concluir que o conjunto luz, poeira, silêncio e solidão, a despeito do que possam representar em outras situações, jamais seriam observados se eu estivesse envolvido apenas na tarefa de limpeza, oração e recolhimento a que me havia proposto. Mas esse silêncio morno que ali habita a fazer júbilo ao sol que se esvaía, talvez tenha aberto essa porta de observação para criar sensações nunca experimentadas como compusessem uma sonata muda do recordar para invadir minha alma, criar sinestesias e, com isso, colocar aumentativos nas próprias sensações como bússolas internas a nortearem os movimentos da alma.

De vassoura em punho, enquanto o silêncio de túmulos tristes falava na voz branda do vento e a solidão respondia na diminuição sistemática do lento apagar dos fachos, senti a aliança do sossego da morte com a imensa tristeza no encapelado mar da vida: nada demais em se tratando de um cemitério.

Não tive medo nem receio, mas condoimento pelos meus e por tantos que ali repousam em meio a essa diversidade própria do ser vivo e, parado em mim de compleição austera, notei que além daqueles elementos insistentemente presentes havia outro ao qual reputei interessante: o abandono. Sim, dos túmulos esquecidos. 

Eles representavam a indiferença, o afastamento, o ignorar a quem ali se pôs. Abandono, tenho por mim, é o nome que se dá à estação em que o trem da vida se acomoda para a eternidade ao passar pelas estações sombrias do Desespero, da Saudade, da Lembrança, da Desesperança, advindas dos estágios de deslembrança da perda de alguém.

Coisas do tempo, eu acho, que com suas manobras sobre nós reserva. A chegada desse trem mostra que ao escorrer tudo se vai para não retornar e, nesse chegar definitivo, apaga-se a lousa na qual se registrou a vida deixando, como sinal dessa passagem, apenas borrões incompreensíveis, tantas as razões, as (in)certezas, as dúvidas vivenciadas. Visão que pode ser comparada à lágrima que de tanto doer, seca e, sem se aperceber ao processo de secamento, inunda tanto o coração para fazê-lo transbordar para a alma, a quem se dá o nome tristeza, símbolo cogente (coercitivo), mas natural, do cemitério.
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Renato Benvindo Frata nasceu em Bauru/SP, radicou-se em Paranavaí/PR. Formado em Ciências Contábeis e Direito. Professor da rede pública, aposentado do magistério. Atua ainda, na área de Direito. Fundador da Academia de Letras e Artes de Paranavaí, em 2007, tendo sido seu primeiro presidente. Acadêmico da Confraria Brasileira de Letras. Seus trabalhos literários são editados pelo Diário do Noroeste, de Paranavaí e pelos blogs:  Taturana e Cafécomkibe, além de compartilhá-los pela rede social. Possui diversos livros publicados, a maioria direcionada ao público infantil.

Fontes: 
Renato Benvindo Frata. Crepúsculos outonais: contos e crônicas.  Editora EGPACK Embalagens, 2024. Enviado pelo autor.
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