XXVII – Na caverna da Cuca
Voltando os dois na maior pressa para os domínios da Cuca, encontraram-na com um estranho ar de riso na horrenda boca, a falar sozinha, como se estivesse muito satisfeita da vida. Assim, porém, que os viu de novo por lá, a bruxa estremeceu e o seu sorriso transformou-se numa careta de cólera e desespero.
— Conseguiram voltar? — exclamou, traindo os seus maus pensamentos.
— Está claro que sim! — respondeu o saci.
— E trouxeram o fio de cabelo da Iara?
— Está claro que sim! — repetiu o saci. — Ei-lo aqui — disse, apresentando à horrenda megera o verde fio de cabelo da Mãe-d’Água.
A Cuca estorceu-se toda dentro do novelo de cipós num supremo arranco para libertar-se daquela prisão. Nada conseguindo, pôs-se a vociferar e a soltar pela horrível boca uma espuma venenosa.
Aquela história da Iara e do fio de cabelo tinha sido apenas um embuste de que lançara mão para perder o menino e o saci, na certeza de que nenhum deles resistiria aos encantos da Iara. Mas vendo que se tinha enganado, debatia-se no maior acesso de cólera e desespero, sentindo-se completamente vencida. E por quem! Por um menino de nove anos e mais um sacizinho.
Entretanto, pérfida como era, tentou ainda usar da astúcia. Acalmou-se e disse, num tom muito amável:
— Muito bem. Mas esse fio de cabelo da Iara não basta para romper o encanto da menina. Preciso ainda de um fio de barba do Caipora.
— Perfeitamente, Senhora Cuca. Ali em cima daquelas estalactites está o fio de barba do Caipora de que você precisa — disse o saci, apontando para o pingo d’água. — Vou já buscá-lo...
Vendo pela firmeza das palavras do saci que era inútil tentar enganá-lo segunda vez, a Cuca deu um profundo ai e confessou-se vencida.
— Meus parabéns. Vocês descobriram a única arma no mundo capaz de vencer uma Cuca — esse miserável pingo d’água... Farei como querem. Desencantarei a menina. Voltem ao sítio, procurem perto do pote d’água uma flor azul que lá deixei, arranquem-lhe as pétalas e lancem-nas ao vento logo ao romper da manhã. Narizinho, que deixei transformada em pedra, reaparecerá imediatamente.
— E se isso for um embuste como da primeira vez? — perguntou Pedrinho.
— Não é. Reconheço que fui vencida e que seria tolice teimar. Voltem ao sítio, façam o que eu disse e depois venham desamarrar-me. Juro que jamais perseguirei qualquer pessoa lá do sítio.
XXVIII – Desencantamento
A madrugada já vinha rompendo quando os dois aventureiros chegaram de novo ao sítio. Dona Benta e Tia Nastácia estavam ainda acordadas, porém mais calmas do que da primeira vez. Assim que os viram entrar, exclamaram ambas ao mesmo tempo:
— Trouxeram Narizinho?
— Sim, vovó — respondeu Pedrinho, sem ter a certeza de que ela se desencantaria ou não. — Espere mais um minuto que vai ver de novo sua neta, forte e corada como sempre.
Falou e correu a ver se atrás do pote existia alguma flor azul.
Lá estava ela, a tal flor azul — esquisitíssima e diferente de todas as flores conhecidas. O menino tomou-a, desfolhou-a e lançou as pétalas ao vento, como a Cuca mandara.
Mal acabou de fazer isso, um fato maravilhoso se deu.
Uma pedra do terreiro, que ninguém se lembrava de ter visto ali, principiou a inchar, a crescer e a tomar forma de gente. Segundos depois essa forma de gente começou a apresentar os traços de Narizinho que, por fim, reapareceu tal qual era, forte e corada como Pedrinho o prometera a Dona Benta.
Foi uma alegria. As duas velhas atiraram-se à menina e choraram quantas lágrimas ainda tinham dentro de si — mas desta vez do mais puro contentamento.
— Então, minha filha, que foi que aconteceu? — perguntou Dona Benta.
Narizinho, ainda tonta, de pouco se recordava. Minutos após, entretanto, suas idéias principiaram a aclarar-se e pôde contar o que havia sucedido.
— Estou me lembrando — disse, correndo a mão pela testa. — Foi assim. Eu estava com a Emília debaixo da jabuticabeira. De repente, uma velha, muito velha e coroca, aproximou-se de mim com um sorriso muito feio na cara.
— Que é que a senhora deseja? — perguntei-lhe, naturalmente.
— Desejo apenas oferecer à menina esta linda flor — respondeu ela, apresentando-me uma flor azul muito esquisita. — Cheire; veja que maravilhoso perfume tem.
— Eu, sem desconfiar de coisa nenhuma, cheirei a tal flor — e imediatamente meu corpo principiou a endurecer. Perdi a fala, virei pedra. De nada mais me lembro senão que de repente, fui revivendo outra vez e aqui estou...
Só então Dona Benta compreendeu que Pedrinho a tinha enganado para evitar que ela morresse de dor — e perdoou-lhe aquela boa mentira. Depois fez-lhe grandes elogios, quando soube do muito que ele tivera de lutar para que a horrenda Cuca revivesse a menina.
— Vejo, Pedrinho, que você é um verdadeiro herói. Essa proeza que acaba de realizar até merece aparecer num livro como uma das mais notáveis que um menino da sua idade ainda praticou.
— Espere, vovó — disse Pedrinho com modéstia. — Se a senhora emprega essas palavras para mim, que palavras empregará para o meu amigo saci? Na verdade foi ele quem fez tudo. Sem a sua astúcia e conhecimento da vida misteriosa da floresta e dos hábitos da Cuca, eu sozinho nada teria conseguido. Absolutamente nada. Agradeça ao saci, que não faz senão dar o seu ao seu dono, como diz Tia Nastácia. Todos se voltaram para o saci. Mas...
— Que é do saci? — exclamaram a um tempo. Procuraram-no por toda parte, inutilmente. O heróico duendezinho duma perna só havia desaparecido.
— Ingrato! — exclamou Narizinho com tristeza. — Foi-se embora sem nem ao menos despedir-se de mim...
De noite, porém, ao deitar-se, verificou que havia sido injusta. Em cima do travesseiro encontrou um raminho de miosótis que não podia ter sido posto lá senão pelo saci. Miosótis em inglês é forget-me-not — que significa “não-te-esqueças-de-mim”.
— Que alma poética ele tem! — murmurou a menina, comovida.
FIM
--------------
Fonte:
LOBATO, Monteiro. Viagem ao Céu & O Saci. Col. O Sítio do Picapau Amarelo vol. II. Digitalização e Revisão: Arlindo_Sa
Nenhum comentário:
Postar um comentário