domingo, 2 de outubro de 2011

Monteiro Lobato (O Presidente Negro) IX – Entre Sá, Pato & Cia. e Miss Jane


CAPITULO IX
Entre Sá, Pato & Cia. e Miss Jane


Pobre moça!... vinha eu pensando comigo ao voltar do enterro do professor Benson. Se é grande a dor de perder um bom pai, que dizer de quem perdia tal pai?...

De fato, quasi que com seu pai perdera Jane a sua razão de ser na vida. Desde menina se consagrara a estudos do porvir, e é natural que quem possui tal faculdade de previdência não se preocupe grande coisa com a atualidade. Para nós, encerrados nas quatro paredes dos cinco sentidos, o presente é tudo; mas quão pouco não será ele para uma criatura colocada no topo da montanha, podendo ver tanto a paisagem do que lá passou como a do que vai passar!

O mágico aparelho do professor Benson deixara de existir, e dele, como dissera o moribundo, só restavam as impressões subsistentes na memória da filha. Tinha miss Jane, portanto, de refazer sua vida, adaptar-se á condição comum dos pobres seres humanos que só vêem um palmo adiante do nariz.

— Está como eu, murmurei em solilóquio. Passou tambem a pedestre...

Mas vi logo o falso da comparação. Eu podia com o tempo voltar á casta dos rodantes, adquirindo novo automóvel. Miss Jane nunca mais alcançaria a onividencia...

O castelo ficava a três quilômetros de Friburgo, pela estrada onde se dera o meu desastre. Ao passar por essa estrada reconheci o ponto e parei á borda do desbarrancado. Estavam ainda patentes os sinais do trambolhão.

— Estranhos caminhos da Inteligência! exclamei comigo mesmo. Para ver a maravilha das maravilhas e conhecer a mulher que me está iluminando a alma e talvez faça de mim um romancista, foi mister que eu passasse por este precipício aos trancos, e lá fosse parar semi-morto ao fundo da barroca...

Logo adiante, dobrada uma curva da estrada, vi erguer-se o vulto misterioso do castelo, com suas torres metálicas. Parei tomado de viva emoção. Olhei para a singular fabrica e perdi-me em pensamentos de saudade e incerteza.

Entre aquelas paredes duas nobres criaturas humanas me haviam abrigado com extremos de carinho; trataram-me do corpo, salvaram-me a vida e não satisfeitas ainda me revelaram o segredo irrevelado. No castelo conheci a mulher divina que jamais sairá do meu coração. Lá estive em minha casa, como no seio da minha verdadeira família...

Mas quão tudo mudara! Eu não podia mais continuar naquela situação de hospede depois de morto o hospedeiro. Tinha que afastar-me dali — afastar-me do lugar que era na verdade o meu verdadeiro lugar na terra...

O coração confrangeu-se-me dolorosamente e foi com o olhar sombrio e a cabeça baixa que transpus de novo os umbrais do castelo.

Chamei um criado. Por coincidência apareceu o surdo-mudo que me acompanhara na primeira saída pelos campos. Esqueci-me dessa circunstância e perguntei-lhe:

— Não será possível falar a miss Jane?

O criado tambem se esqueceu de que era surdo-mudo e tornou:

— Acho inconveniente. Miss Jane recolheu-se em tal estado de abatimento que nenhum de nós se atreve a perturba-la.

Vi que o homem tinha razão. Pedi-lhe papel e, ali mesmo no vestíbulo, tracei o seguinte bilhete:

Com o coração balançado Ayrton despede-se de miss Jane. Volta ao seu fado anterior, cheio, pelo resto da vida, dos sentimentos de gratidão e enlevo que os donos deste castelo encantado lhe despertaram n'alma. Se acha miss Jane que o hospede ocasional lhe merece alguma coisa, permita-lhe que a venha ver de vez em quando .

Entreguei-o ao criado e sai.

Estava outra vez na rua — e nunca avaliei tão bem a sensação do decair. Quando o anjo mau se viu expulso do paraíso a sua impressão devera ter sido igual á minha...

Na curva da estrada volvi um ultimo olhar ao castelo. Lágrimas me vieram aos olhos, e foi com a infinita tristeza de um corvo triste que alcancei a estação de Friburgo. Rodei para o Rio.

Ao apresentar-me no escritório da firma o assombro do senhor Sá foi enorme. Olhou-me com os olhos arregalados, como se visse aparecer um espectro; depois vincou a testa de todas as temíveis rugas com que tanto nos apavorava e disse:

— Muito bem, senhor Ayrton Lobo! Sempre contei com a sua presteza, quando o senhor me andava a pé. Agora, que se deu ao luxo de um automóvel, gasta-me vinte e tantos dias numa simples cobrança e aparece-me com essa cara de cachorrinho que me quebrou a panela!

Me, me, me, me... tudo para aquele homem se relacionava egoisticamente á sua pessoa...

Procurei acalmar-lhe a fúria, contando do desastre e da minha internação numa casa acolhedora. Mas o éter em vibração que era o senhor Sá fora evidentemente interferido por uma rabanada de saia das fúrias de Esquilo. Em vez de aceitar a minha escusa, o homem redobrou de acusações.

— E por que me não preveniu? Um empregado decente, logo que se vê numa situação dessas, a primeira coisa que faz é avisar aos patrões. Pensa então o senhor que isto aqui é brincadeira? Não sabe que somos uma firma séria e temos o direito de ser bem servidos? Está despachado. Não nos servem empregados da sua ordem.

Nesse momento um rumor muito meu conhecido denunciou a presença da outra parte da firma. Era o senhor Pato que chegava. Ao ve-lo surgir á porta, dentro do seu formidável fraque de elasticotine de cem mil réis o metro e todo reluzente de penduricalhos de ouro maciço, confesso que tremi. Olhou-me o homem d'alto a baixo, fulminantemente, e sem dizer palavra foi para um canto confabular com o socio.

Não sei o que disseram. Só sei que ao cabo de dois minutos o senhor Sá voltou-se para mim e indagou:

— E o seu automóvel?

— Perdi-o... respondi com voz sumida.

Sá trocou com o socio um olhar risonho e irônico; em seguida, divertido lá no intimo por uma ideia, humanizou-se.

— Pode ficar na casa, senhor Ayrton, mas compreende o caro amigo que não nos é possível pagar a um moço que anda a pé o mesmo ordenado que pagávamos a um que tinha automóvel próprio...

Pronunciou um "próprio" de boca cheia, trocando com o Patrão um novo olhar de malícia.

Resignei-me, já que precisava viver. E murcho, de cabeça baixa, com o espirito a agarrar-se á lembrança de miss Jane, reassumi na casa as minhas velhas funções.

A semana toda passei-a na rua, a trabalhar como um autômato. Meu pensamento fugia para longe do que eu executava. Impossível fixa-lo nas reles coisas que me mandavam fazer, quando havia um ponto luminoso a atrai-lo como íman. Impossível tomar a sério os negócios de Sá, Pato & Cia. depois do deslumbramento daquelas semanas no castelo. Eu já não era mais o mesmo. Era um ser que se dilatara imensamente — e que esperava...

Executei mal as minhas comissões e sofri do senhor Sá varias reprimendas. Ouvia-as, porém, tão absorto nos meus pensamentos que não poderei reproduzir nada do que ele me disse.

Eu aguardava ansioso a chegada do proximo domingo. Iria novamente rever o castelo e extasiar-me ainda uma vez diante da imagem querida.

O domingo chegou. Fui. Miss Jane recebeu-me no gabinete e fez-me sentar na poltrona onde me achava no momento em que o criado a chamou. Encontrei-a serena e resignada, embora com todos os estigmas da sua grande dor impressos na fisionomia. Seus olhos denunciavam o cansaço das lágrimas.

Permaneci calado por uns instantes, sem ter o que dizer. Quem rompeu o silencio foi ela.

— Obrigada, senhor Ayrton. A sua visita me fará bem, me acalmará os nervos, coisa que nunca supus que tivesse... A minha solidão é hoje extrema. Como castigo de ter tido ás mãos o tudo, vejo-me agora sem nada. Este casarão vazio... os laboratórios já sem função... o porviroscopio, onde passei anos a me deslumbrar com visões inéditas, morto, reduzido a simples matéria inerte, sem alma... A alma de tudo era meu pai...

Alcancei a situação da querida criatura e foi com a alma á boca que lhe disse:

— Compreendo como ninguém o seu caso, miss Jane, e sei que até hoje no mundo pessoa alguma num só dia perdeu tanto. Horas apenas convivi com o professor Benson e apesar disso a sua lembrança viverá em mim como não vive a de meu pai. Imagino, pois, a falta que faz ele á sua filha, á sua companheira de estudos e visões...

Miss Jane sacudiu a cabeça como a espantar ideias importunas. Depois esboçou o sorriso mais triste que inda vi. E com um suspiro murmurou:

— Paciência. Meu pai ensinou-me o estoicismo, mas é bem difícil o estoicismo nos grandes momentos de dor. O estoicismo é uma atitude...

Três horas passei em companhia da desolada jovem, e consegui afinal distrair o seu espirito contando-lhe o meu reaparecimento no escritório. Chegou a sorrir quando lhe desenhei a imagem hipopotamica do senhor Pato, todo a reluzir berloques de ouro maciço.

Que felicidade ser como esse homem, agir como ele, formar de si próprio a ideia que ele forma! comentou miss Jane. Ignora tudo, mas não tem a sensação disso. Meu pai era o contrario. Levava ao extremo oposto o conceito da sua própria pequenez — e o senhor Ayrton sabe que se houve no mundo criatura mais que todas as outras foi meu pai... Imagine se tomba nas mãos desse senhor Pato a maquina de sondar o futuro!

Aplica-la-ia em enriquecer-se como dez Cresos, pendurando no corpo tanta quinquilharia de ouro que quando andasse na rua havia de tilintar. E a pobre humanidade, assombrada, era bem capaz de meter-se de joelhos á sua passagem, certa de que resurgira no mundo o Bezerro de Ouro disfarçado em homem.

Bem razão tinha meu pai em não tornar publica a sua descoberta. Só mesmo um espirito de eleição como o dele poderia resistir ás tentações resultantes, concluiu miss Jane.

Soube nesse domingo muitos detalhes curiosos da vida do professor Benson, e de como chegara á descoberta da onda Z, ponto de partida para o mais.

— Foi o psiquismo que lhe revelou essa onda que resume e reflete a vida universal do momento. O fato de certos indivíduos agirem como polarizadores de uma força desconhecida impresionara profundamente a sua agudissima inteligência. Meteu-se a estudar o fenômeno sob uma luz nova e chegou a apreende-lo de modo
integral. Pobre pai!

Falamos depois do nosso romance sobre o choque das raças na América.

— Sim, disse miss Jane animando-se. Contínuo a pensar que o senhor Ayrton não deve perder a oportunidade. Ouvirá de mim tudo o que sei a respeito e escreverá um livro deveras interessante. Não lhe prometo já, já, fazer essas revelações. Neste meu estado, compreende que me seria penoso. Mas o tempo cicatriza, eu sei, e lá chegaremos. Para mim será até um derivativo á dor da saudade. Dizem que recordar é reviver e eu pressinto que minha vida vai resumir-se nisso: recordar, reviver o que tenho acumulado na memória. Venha todos os domingos e creia que sua presença me será sempre agradável — além de que estamos ligados pelo grande segredo...
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continua… X – Céu e Purgatório

Fonte:
Monteiro Lobato. O Presidente Negro. Editora Brasiliense, 1979.

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