CAPÍTULO X
Céu e Purgatório
Regressei á cidade alegre como um pardal depois da chuva. As palavras de miss Jane valeram-me pela abertura do céu. Com que prazer não trabalharia a semana toda estimulado pela perspectiva de ve-la cada domingo! A firma chegou a notar o meu assanhamento. O senhor Sá olhou-me de soslaio e murmurou para o socio de fraque:
— Parece que o seresma viu passarinho verde...
Custou a passar o tempo, tanto a minha impaciência alongava as horas. Mas passou e no domingo, depois de apurar-me na toalete como nunca, e lançar ao pescoço uma gravata nova verde-oliva com pintas de tom mais sombrio, voei, positivamente voei, ao castelo dos meus sonhos.
Já mais senhora de si, nesse dia miss Jane não falou tão exclusivamente de seu pai. Muito falou dele ainda, mas tambem discorreu de outros assuntos, dando começo afinal ás revelações que me serviram de base á novela.
Antes de mais nada externou-se quanto á situação presente do povo americano — e com palavras que me derrancaram as ideias. Sim, porque eu tinha a ingenuidade de possuir ideias assentes sobre o povo americano, apesar da mais absoluta ignorância da psíquica e rumos que levava esse povo. Ideias pegadas no ar do escritório, nas palestras dos cafés, na leitura de jornais redigidos por criaturas tão ignaras como eu, ideias que se nos grudam ao cérebro como o pó do asfalto nos adere ao rosto nos dias de calor. Do senhor Sá, por exemplo, ouvi dizer do americano (não a mim, está claro, que me não daria esta honra, mas ao senhor Pato): "Povo sem ideais, o mais materialão da terra. A gente do the biggest..."
Era Sá quem o dizia e pois a afirmação me penetrou nos miolos como a própria Certeza. Nesse mesmo dia, num café, como na roda em que me achava se falasse da América, repeti a esmo, entre duas baforadas de um cigarro:
— Povo sem ideais, o mais materialão da terra. A gente do the biggest...
Causou sensação, e é provável que algum dos presentes fosse repetir alem, a bela síntese dos meus patrões — e por aqui se vê como certas ideias circulam á maneira de moeda e vão enriquecer o patrimonio ideológico de um povo...
Quando miss Jane abordou o assunto e de chofre perguntou-me que é que eu pensava do americano, imediatamente a bela síntese sapatesca me veio aos lábios:
— Povo sem ideais, o mais materialão da terra, a gente do the biggest... murmurei com ênfase.
O efeito, porém, falhou. Pela primeira vez não vi na cara de um interlocutor a expressão aprovativa a que eu já me afizera. Miss Jane, ao contrario, sorriu com o inesquecível sorriso do professor Benson e disse:
— Essa ideia não pode ser sua, senhor Ayrton. Soa-me a frase feita, das que se recebem no ar sem exame. A um povo que tenta romper com o álcool acha sem ideias? Poderá haver maior idealismo que o sacrifício de formidáveis interesses materiais do presente em vista de benefícios que só as gerações futuras poderão recolher? Se o senhor Ayrton observar um pouco a psique americana verá, ao contrario, que é o único povo idealista que floresce hoje no mundo. Único, vê? Apenas se dá o seguinte: o idealismo dos americanos não é o idealismo latino que recebemos com o sangue. Possuem-no de forma especifica, próprio, e de implantação impossível em povos não dotados do mesmo caráter racial. Possuem o idealismo orgânico. Nós temos o utópico. Veja a França. Estude a Convenção Francesa. Sessão permanente de utopismo furioso — e a resultar em que calamidades! Por que? Porque irrealizável, contrario á natureza humana. Veja agora a América. Em todos os grandes momentos da sua história, sempre vencedor o idealismo orgânico, o idealismo pragmático, a programação das possibilidades que se ajeitam dentro da natureza humana. Leia Emerson e leia Rousseau. Terá os expoentes de duas mentalidades polares. Não acha o senhor Ayrton que é assim?
Apressei-me em achar, se não de todo convencido ao menos vencido por tão ardorosos argumentos. Espantaram-me a fluidez, a clareza, o ímpeto com que miss Jane discordara. Vi bem clara a diferença que existe entre ter ideias próprias, frutos fáceis e lógicos de uma árvore nascida de boa semente e desenvolvida sem peias ou imposições externas — ser "árvore de natal", museu de ideias alheias pegadas daqui e dali, sem ligação orgânica com os galhos, donde não pendem de pedúnculos naturais e sim de ganchinhos de arame. E comecei a aprender a tambem ser árvore como as que crescem no campo, e a deixar-me engalhar, enfolhar e frutificar livremente por mim próprio. Sinto hoje que a minha árvore mental cresce desafogada no sítio tanto tempo ocupado por uma árvore-cabide, onde Sás, Patos et caterva penduravam papel-ideias, coisa pior que o papel-moeda. Foi com miss Jane que aprendi a pensar.
— Idealista como nenhum outro povo, prosseguiu ela, e do único idealismo verdadeiramente construtor da atualidade. Acompanhe a vida de Henry Ford, por exemplo, estude-lhe as ideias. Verá que nelas estão todas as soluções que no seu desvario de doida a Europa procura no despotismo. Por mais audacioso que nos pareça o pensamento de Henry Ford, que é ele senão o reflexo do mais elementar bom senso? Todos nós, creia, senhor Ayrton, temos conosco essas ideias, á primeira vista tão novas. No entanto, tamanha é a crosta que nos recobre o bom senso natural que Ford nos parece um messias da Ideia Nova. Há um aparelho de limpar os tubos das caldeiras por onde passa a chama vinda da fornalha. Esses tubos, com o tempo, vão se encrostando de resíduos carbônicos e acabam por se obstruírem. É necessário a espaços proceder-se a uma limpeza. Embora o uso das maquinas de vapor já seja bem velho, só recentemente se inventou o meio pratico de desencrosta-las: o martelo trepidante. Ford me dá a sensação desse instrumento. É o martelo trepidante que nos desencrosta os tubos do cérebro, obstruídos pela fuligem das ideias falsas. Ninguém melhor do que eu poderá dizer isto de Henry Ford, porquanto devassei o futuro e por toda parte vi reflexos do seu pensamento. É pois o melhor tipo atual do idealista orgânico. Sonha, mas sonha a realidade de amanhã. A desaglomeração da industria urbana, por exemplo, a estandardização de todos os produtos, a industria posta na base de uma associação de três sócios — trem abrange todas as classes sociais, a simplificação da vida pela eliminação dos milhares de coisas inúteis que hoje consomem tanto material e energia, tudo isso vai realizado no futuro e, no meu entender, com ponto de partida no idealismo pragmático de Henry Ford.
— Realmente!... exclamei. Agora vejo que fazemos cá uma ideia apressada desse povo.
Eu me sentia cada vez mais desencrostado das minhas ideias falsas ante a vibração do gentil martelinho trepidante que era miss Jane...
— E o mundo americano não podia deixar de ser assim, senhor Ayrton, continuou ela. Note apenas: que é a América, senão a feliz zona que desde o inicio atraiu os elementos mais eugenicos das melhores raças europeias? Onde a força vital da raça branca, se não lá? Já a origem do americano entusiasma. Os primeiros colonos, quais foram eles? A gente do Mayflower, quem era ela? Homens de tal tempera, caracteres tão shakespearianos, que entre abjurar das convicções e emigrar para o deserto, para a terra vazia e selvagem onde tudo era inhospitalidade e dureza, não vacilaram um segundo. Emigrar ainda hoje vale por alto expoente de audácia, de elevação do tonus vital. Deixar sua terra, seu lar, seus amigos, sua língua, cortar as raízes todas que desde a infância nos prendem ao solo pátrio, haverá maior heroísmo? Quem o faz é um forte, e só com esse fato já revela um belo índice de energia. Mas emigrar para o deserto, deixar a pátria pelo desconhecido, isto é formidável!
– Realmente, realmente...
– Pois bem, continuou miss Jane, o processo inicial da América tornou-se o processo normal do seu acrescentamento no decorrer da história. Ondas sucessivas dos melhores elementos europeus para lá se transportaram. Depois vieram as leis seletivas da emigração, e as massas que a procuravam, já de si boas, viram--se peneiradas ao chegar. Ficava a flor. O restolho voltava... Note o enriquecimento de valores humanos que isso representou para aquela nação.
Miss Jane falava com tanta alma, havia em suas palavras tal força persuasiva, que senti um ímpeto de revolta contra o senhor Sá. Se esse homem me aparece naquele momento, eu era capaz de erguer contra ele a minha outrora tão humilde mão!
— E hoje, prosseguiu miss Jane, hoje que se deslocou para lá o centro economico do mundo? Reflita um bocado na significação, não digo do povo americano, mas do fenômeno americano — o fenômeno eugenico americano. Estados Unidos querem hoje dizer um imenso foco luminoso num mundo de candieiros de azeite e velas de sebo. Todas as mariposas da terra têm os olhos fixos no deslumbrante foco — todos os artistas, todos os sábios, todos os espíritos animados da
centelha criadora, que na sua pátria não encontram condições propicias de desenvolvimento. Lá, a manhã radiosa de sol. No resto do mundo, varias especies de crepúsculos... Cada vez mais vai sendo a Europa drenada de seus melhores elementos — as suas mariposas, e a Europa acabará amarelada pela pigmentação mongólica. Isso vi eu já bem denunciado nos cortes feitos no século 25.
– Mas, miss Jane, atrevi-me a dizer, não é lógico que tambem invada a América esse asiatismo entrevisto?
– Lógico por que? O lógico é que da semente da couve nasça o pé de couve e da do jequitibá nasça o jequitibá. A semente americana lançada em Plymouth era sã e era de jequitibá. O espirito de casta matou a Asia — do espirito de classe morrerá a Europa. A semente de que nasceu a América não continha em seus
cotiledones essas venenosas toxinas.
– Mas deu origem a classes, tambem…
– Deu origem a classes, é certo, e os interesses das classes se tornaram antagônicos. Mas o espirito de exame dos fatos — e outra coisa não quer dizer o idealismo orgânico — interveio a tempo e harmonizou tais interesses. Quando Ford provou que não há hostilidade entre o capital e o trabalho e sim mal-entendido — e o
provou com o fato da sua formidável realização, todos os olhos se abriram, e a industria, até ali Moloch devorador da classe que produz e da que consome em proveito da que detém os meios de produção, passou a ser a mais harmonizada das associações. Esse maravilhoso remédio criou a grande barreira contra o asiatismo invasor e ergueu a América do século 25 á posição de um mundo sadio e vivo dentro de um marasmo fatalista.
– Está tudo muito bem, adverti eu, mas nos Estados Unidos não penetraram apenas os elementos espontâneos que miss Jane aponta. Entrou ainda, á força, arrancado da Africa, o negro.
– Lá ia chegar. Entrou o negro e foi esse o único erro inicial cometido naquela feliz composição.
– Erro impossível de ser corrigido, aventurei. Tambem aqui arrostamos com igual problema, mas a tempo acudimos com a solução pratica — e por isso penso que ainda somos mais pragmáticos do que os americanos. A nossa solução foi admirável. Dentro de cem ou duzentos anos terá desaparecido por completo o nosso negro em virtude de cruzamentos sucessivos com o branco. Não acha que fomos felicíssimos na nossa solução?
Miss Jane sorriu de novo com o meigo e enigmático sorriso do professor Benson.
– Não acho, disse ela. A nossa solução foi medíocre. Estragou as duas raças, fundindo-as. O negro perdeu as suas admiráveis qualidades físicas de selvagem e o branco sofreu a inevitável piora de caráter, consequente a todos os cruzamentos entre raças dispares. Caráter racial é uma cristalização que ás lentas se vai operando através dos séculos. O cruzamento perturba essa cristalização, liquefa-la, torna-a instâvel. A nossa solução deu mau resultado.
– Quer dizer que prefere a solução americana, que não foi solução de coisa nenhuma, já que deixou as duas raças a se desenvolverem paralelas dentro do mesmo território separadas por uma barreira de ódio? Aprova então o horror desse ódio e todas as suas tristes consequências?
— Esse ódio, ou melhor, esse orgulho, respondeu miss Jane, serena como se a própria Minerva falasse pela sua boca, foi a mais fecunda das profilaxias. Impediu que uma raça desnaturasse descristalizasse a outra, e conservou a ambas em estado de relativa pureza. Esse orgulho foi o criador do mais belo fenômeno da eclosão étnica que vi em meus cortes do futuro.
— Mas é horrível isso! exclamei revoltado, Miss Jane, um anjo de bondade, defende o mal...
Pela terceira vez a moça sorriu com o sorriso do professor Benson.
— Não há mal nem bem no jogo das forças cósmicas. O ódio desabrocha tantas maravilhas quanto o amor. O amor matou no Brasil a possibilidade de uma suprema expressão biológica. O ódio criou na América a glória do eugenismo humano...
Como era forte o pensamento de miss Jane! Dava-me a sensação dos fenômenos naturais, ora da brisa que passa e treme a folha das árvores, ora do jorro de sol que tudo ilumina. Seus olhos fulguravam e por vezes eu sentia neles o impeto sereno que os poetas gregos atribuíam a Palas. Meu sentimentalismo sofria com isso. "Poderia vir a amar-me uma criatura assim, tão alta de cérebro?". Tudo me levava a crer que não, e apesar disso eu esperava...
— Entre dar uma solução inepta e não dar solução nenhuma, o americano optou pela ultima alternativa, continuou miss Jane.
— Quer dizer que eternizou o problema, conclui vitorioso.
– A sua eternidade, senhor Ayrton, é bem precária. Durará apenas mais 302 anos. O inevitável choque das duas raças dar-se-á em 2228, e a solução…
– Já sei qual será! exclamei muito lampeiro. Um massacre em massa, uma chacina horrorosa!…
– Nada disso.
– Expulsam os negros de lá, então! adverti apressadamente, na minha ânsia de adivinhar.
– Nada, nada disso.
Parei atrapalhado, mas num clarão apresentou-se-me a terceira hipótese.
– Dividem o país em duas partes, a negra e a branca!
– Nada, ainda. Creio que por mais esforços que o senhor Ayrton faça não adivinhará.
Refleti alguns instantes a ver se me ocorria uma quarta hipótese. Não ocorreu coisa nenhuma e confessei-me vencido.
– Se a solução não vai ser alguma destas, quer dizer que o caso fica insolúvel, rematei.
– Ao contrario. Será solvido da maneira mais completa, sem sacrifício dos negros existentes e sem transigência dos brancos. O orgulho é criador, senhor Ayrton e além disso, extremamente engenhoso...
Era hora de retirar-me.
Beijei a mão de miss Jane e saí pela estrada afora a parafusar no tremendo quebra-cabeça. Depois volvi para ela os meus pensamentos e passei a semana inteira a recordar as suas palavras e gestos, num grande enlevo d'alma. O senhor Sá notou-o e disse ao socio:
— Isto ou é amor ou é espinhela caída.
Era amor. Em tudo eu via miss Jane. Nas moças que se cruzavam por mim nas ruas eu só via os traços que tinham de comum com miss Jane — esta a linha dos ombros; aquela o tom dos cabelos. Meus sonhos se complicavam estranhamente, mas neles Freud leria claro como numa cartilha infantil. O mundo futuro me surgia caótico, informe, com chins em Paris e homens sem pressa em New York, a conversarem sentados no meio das ruas — e que ruas! Wall Street, Broadway... Depois surgia miss Jane como o Tudo e eu mergulhava em êxtase.
Amor! Amor!
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continua… XI – O Ano 2228
Fonte:
Monteiro Lobato. O Presidente Negro. Editora Brasiliense, 1979.
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