quarta-feira, 5 de outubro de 2011

Monteiro Lobato (O Presidente Negro) XI – No Ano 2228


CAPITULO XI
No Ano 2228


Voltei ao castelo e minha amiga deu começo enfim as suas revelações sobre o choque das raças.

— Decifrou o quebra-cabeças? perguntou-me logo que entrei.

— É dos indecifráveis, respondi — dos indecifráveis para quem não inventou nenhum porviroscópio. Um ponto, entretanto, me intriga. Acho que a população negra da América é muito pequena em relação á branca para que possa jamais constituir perigo.

– Seria assim, de fato, emendou a moça, se com o crescer do país a proporção se conservasse sempre a mesma. Não foi exatamente isso o que se deu. Enquanto a corrente imigratória europeia trazia ondas e mais ondas de brancos a somarem-se aos já estabelecidos no país, nada alarmava, nem deixava vislumbrar um futuro agravamento da situação. Mas essas ondas foram diminuindo em virtude dos obstáculos opostos á entrada de imigrantes, e por fim sobreveio um maquiavélico sistema de drenagem. Em vez de entrada franca a quem quisesse vir localizar-se no país, organizou o governo americano em todas as nações do velho mundo um serviço de importação de valores humanos, consistente em atrair para lá a fina flor eugênica das melhores raças europeias. Já aliviada do seu ouro em favor da América, viu-se a Europa tambem aliviada da sua elite.

– Desnataram a pobre Europa! Só deixaram no velho mundo o soro…

– Isso mesmo. Daí a qualificação de maquiavélico dada ao sistema. Os mais perfeitos tipos de beleza plástica, as mais fortes inteligências, os mais puros valores morais, eram descobertos onde quer que florescessem e seduzidos, de modo a, mais cedo ou mais tarde, se localizarem na Canaã americana. Por fim achou-se o
país bastante povoado; e a mentalidade proibicionista, assustada com o espectro do super-povoamento, suplantou a imigracionista. Fecharam-se todas as portas ao fluxo europeu e a nação passou a crescer vegetativamente apenas. Data daí a "inflação do pigmento".

Até essa época a população negra representava um sexto da população total do país. A predominância do branco era pois esmagadora e de molde a não arrastar o americano a ver no negro um perigo sério. Mas com o proibicionismo coincidiu o surto das ideias eugenisticas de Francis Galton. As elites pensantes convenceram-se de que a restrição da natalidade se impunha por mil e uma razões, resumíveis no velho truismo: qualidade vale mais que quantidade. Deu-se então a ruptura da balança. Os brancos entraram a primar em qualidade, enquanto os negros persistiam em avultar em quantidade. Foi a maré montante do pigmento. Mais tarde, quando a eugenia venceu em toda a linha e se criou o Ministerio da Seleção Artificial, o surto negro já era imenso.

– Ministerio da Seleção Artificial?

– Sim. O grande Ministerio, o verdadeiro fator da espantosa transformação sofrida pelo povo americano. O seu espirito criador, a coragem de enveredar por sendas novas sem esperar que outros o fizessem primeiro, deu àquele povo um enorme avanço sobre os demais.

Essas restrições melhoraram de maneira impressionante a qualidade do homem. O numero dos malformados no físico desceu a proporções. mínimas — sobretudo depois do ressurgimento da sabia lei espartana.

— A que matava no nascedouro as crianças defeituosas? exclamei arrepiado. Tiveram eles a coragem de fazer isso?

– Se o senhor Ayrton visse, como eu vi, o resultado dessa e de outras leis semelhantes, só se admiraria da estupidez do homem em retardar por tanto tempo a adoção de normas tão fecundas. Entre cortar no inicio o fio da vida a uma posta de carne sem sombra de
consciência e deixar que dela saia o ser consciente que vai vegetar anos e anos na horrível categoria dos "desgraçados", a crueldade está no segundo processo. A lei espartana reduziu praticamente a zero o numero dos desgraçados por defeito físico. Restavam os desgraçados por defeito mental.

– De numero infinito…

– Esses foram impedidos de se reproduzirem pela Lei Owen, fruto das grandes ideias pregadas por Walter Owen. Walter Owen foi o verdadeiro remodelador da raça branca na América. Apareceu cento e poucos anos antes do choque das raças com o seu famoso livro O Direito de Procriar, onde lançava os fundamentos do Código da Raça, conjunto de leis tão sabias e fecundas em resultados que, podemos dizer, a Era Nova da raça humana datou da sua promulgação. A lei Owen, como era chamado esse Código da Raça, promoveu a esterilização dos tarados, dos malformados mentais, de todos os indivíduos em suma capazes de prejudicar com má progenie o futuro da espécie. Só depois da aplicação de tais leis é que foi possível realizar o grandioso programa de seleção que já havia empolgado todos os espíritos. Os admiráveis processos hoje em emprego na criação dos belos cavalos puro-sangue passaram a reger a criação do homem na América.

– E lá se foram os peludos!…

– Exatissimamente... Desapareceram os peludos — os surdos-mudos, os aleijados, os loucos, os morféticos, os histéricos, os criminosos natos, os fanáticos, os gramáticos, os místicos, os retóricos, os vigaristas, os corruptores de donzelas, as prostitutas, a legião inteira de malformados no físico e no moral, causadores de todas as perturbações da sociedade humana. Essas leis está claro que eram fortemente restritivas da natalidade, sobretudo, no começo, quando havia quasi tanto joio quanto trigo. Crescer para a América não equivalia mais a avultar ás tontas em numero, como hoje, e sim a elevar o indice mental e físico dos seus habitantes. Os Estados Unidos (e o Canadá, que já se fundira neles) cresciam dessa maneira admirável, se bem que incompreensível para nós hoje, que vivemos em plena licenciosa anarquia procriadora.

Miss Jane tomou fôlego e prosseguiu:

— Mas... o "mas" perturbador de todos os cálculos humanos surgiu. Apesar de submetida aos mesmos processos restritivos dos brancos, a raça negra começou desde logo a apresentar um indice mais alto de crescimento. A proporção do negro puro relativa ao branco subiu a um quinto, a um quarto, a um terço, e por fim chegou á metade... Quer dizer que o binômio racial, desprezado na era do crescimento imigratório e descurado no inicio do regime seletivo, passou a entrar na fase aguda do "resolve-me ou devoro-te".

— Em quantos eram calculados os negros nesse momento?

– Na era em que tomamos este corte anatômico do futuro, ano 2228, as estatísticas apresentavam dados alarmantes. Negros, 108 milhões; brancos, 206 milhões. E como o coeficiente da natalidade negra acusasse uma nova subida, o instinto de conservação dos brancos eriçou-se nos primeiros arrepios da legitima defesa. Dos muitos alvitres propostos para de uma vez por todas arrancar a América do seu beco sem saída predominavam duas correntes de ideias contrarias, conhecidas por "solução branca" e "solução negra". A solução branca…

– Já sei! exclamei aflito por acertar uma só vez que fosse. A solução branca era expatriar o negro!…

– Muito bem! confirmou miss Jane, alegre de ter-me proporcionado um inocente prazer mental. Queriam os brancos a expatriação dos negros para o…

– Vale do Amazonas! exclamei de novo, radiante do meu sucesso anterior e esperançoso de segunda vitoria. Dias antes eu lera não sei onde uma qualquer coisa que me deixara entrever isso.

– Bravos! Nesse andar vai o senhor Ayrton substituir com vantagem o nosso porviroscópio perdido. Para esse vale, sim. O antigo Brasil cindira-se em dois países, um centralizador de toda a grandeza sul-americana, filho que era do imenso foco industrial surgido ás margens do rio Paraná. Com as cataratas gigantescas ao longo do seu curso, acabou esse fecundo Nilo da América transformado na espinha dorsal do país que em eficiencia ocupava no mundo o lugar imediato aos Estados Unidos. O outro, uma republica tropical, agitava-se ainda nas velhas convulsões políticas e filológicas. Discutiam sistemas de voto e a colocação dos pronomes da semimorta lingua portuguesa. Os sociólogos viam nisso o reflexo do desequilíbrio sanguíneo consequente á fusão de quatro raças distintas, o branco, o negro, o vermelho e o amarelo, este ultimo predominante no vale do Amazonas.

Não pude deixar de estremecer diante das revelações de miss Jane sobre o futuro do meu país.

– Que tristeza, miss Jane! exclamei compungido. Pois vai dar-se isso então?

– Não vejo motivos para a sua tristeza, respondeu ela. Acho até que a divisão do país constitui uma solução ótima, a melhor possível, dado o erro inicial da mistura das raças. A parte quente ficou a sofrer o erro e suas consequências; mas a parte temperada salvou-se e pode seguir o caminho certo. A sua tristeza vem da ilusão territorial. Mas reflita que a muita terra não é que faz a grandeza de um povo e sim a qualidade dos seus habitantes. O Brasil temperado, além disso, continuou a ser um dos grandes paises do mundo em território, visto como fundia no mesmo bloco a Argentina, o Uruguai e o Paraguai.

Enchi-me de orgulho patriótico e sem querer levantei-me da cadeira com um hurrah entalado na garganta.

– Vencemos a Argentina, então? Conquistamos todo o Prata?

– Errou desta vez, senhor Ayrton. Não houve guerra, nem conquista de qualquer espécie. Os povos deste sul abriram os olhos a tempo, viram que a espinha dorsal da zona era o rio Paraná e foram-se arrumando ao longo das suas quedas como costelas, formando um todo único, mais ligados pelos interesses econômicos e geográficos do que por vinculas de sangue.

– Mas a velha rivalidade entre brasileiros e argentinos?

– Não passava de uma ingênua voz de sangue. Brasileiros e argentinos, descendentes de lusos e espanhóis, encampavam sem o saber o velho antagonismo que sempre dividiu a península ibérica. Mas tantas ondas de sangue novo despejou cá a imigração, que o
elemento inicial luso-espanhol foi suplantado e não teve forças para perpetuar a ingênua rivalidade hereditaria

– Mas por que dividiram o Brasil? perguntei ainda mal consolado. Era só povoar o norte da mesma maneira que o sul…

– Um país não é povoado como se quer, senhor Ayrton, ou como apraz aos idealistas. Um país povoa-se como pode. No nosso caso foi o clima que estabeleceu a separação. Dos europeus só os portugueses se aclimavam na zona quente, onde, graças ás afinidades com o negro, continuaram o velho processo de mestiçamento, acabando por formar um povo de mentalidade incompatível com a do sul.
Mas voltemos á América do Norte. O nosso caso é o americano. Mais tarde revelarei ao senhor Ayrton o que se passou no Brasil e como surgiu a grande Republica do Paraná. Estávamos na solução branca, e direi que todos os brancos americanos só queriam uma coisa: exportar, despejar os cem milhões de negros americanos no vale do Amazonas. Isso, entretanto, constituia uma empresa formidável ou, melhor, impraticável, não só em virtude de tremendas dificuldades materiais como por ferir de face a Constituição Americana. O pacto fundamental do grande povo era profundamente sábio, tão sábio que conseguira elevar a antiga colônia inglesa á liderança universal e, pois, gozava de um respeito na verdade supersticioso. Essa carta impedia uma duplicidade de tratamento para cidadãos iguais entre si perante a sua serena majestade de lei substantiva.
Já os negros se batiam por uma solução muito mais viável e justa. Queriam a divisão do país em duas partes, o sul para os negros e o norte para os brancos. Alegavam que era a América tanto de uma raça como de outra, visto como saíra do esforço de ambas; e já que não podiam gozar juntas da obra feita em comum, o razoável seria dividir-se o território em dois pedaços. Mas como os brancos preferiam continuar no status-quo a resolver o caso por esse processo, o problema racial permanecia de pé, cada vez mais ameaçador.
Dez anos antes começara a aparecer na cena americana um vulto de excepcional envergadura: Jim Roy, o negro de gênio. Tinha a figura atlética do senegalês dos nossos tempos, apesar da modificação craniana sofrida por influencia do meio. Tal modificação o aproximava do tipo dos antigos aborígines encontrados por Colombo. Era esse, aliás, o tipo predominante no país inteiro, e cada vez mais acentuado depois que a interrupção da corrente imigratória permitiu um evoluir étnico não perturbado por injeções estranhas. Até na tez levemente acobreada começava a transparecer nos americanos a misteriosa influencia do ambiente geográfico.

– Engraçado! Quer dizer que com o tempo todos iam virando indios…

– Não quer dizem bem isso, e sim que se aproximavam um pouco do tipo ameríndio, no que pude observar. Talvez que dentro de vinte ou trinta mil anos a sua hipótese esteja realizada. Infelizmente o aparelho que meu pai construiu não ia além do ano 3257.
Em Jim Roy a sua semelhança com um mestiço de senegalês e pele-vermelha (coisa impossível, pois de há muito já não existia um só indio na América) acentuava-se pela cor da pele, nada relembrativa da cor clássica dos pretos de hoje.

– Influencia do meio?

– Não. Não foi isso milagre da influencia do meio, nem era coisa singular, privativa de Jim Roy. Quasi toda a população negra da América apresentava pele igual á sua. A ciência havia resolvido o caso de cor pela destruição do pigmento. De modo que se Jim Roy aparecesse diante de nós hoje, surpreenderia da maneira mais desconcertante, visto como esse negro de raça puríssima, sem uma só gota de sangue branco nas veias, era, apesar de ter o cabelo carapinha, horrivelmente esbranquiçado.

– Albino?

– Não albino. Esbranquiçado — um pouco desse tom duvidoso das mulatas de hoje que borram a cara de creme e pó de arroz…

– Barata descascada, sei.

– Mas nem eliminando com os recursos da ciência o característico essencial da raça deixavam os negros de ser negros na América. Antes agravavam a sua situação social, porque os brancos, orgulhosos da pureza étnica e do privilegio da cor branca ingenita, não lhes podiam perdoar aquela camouflage da despigmentação.
Era Jim Roy na realidade um homem de imenso valor. Nascera fadado a altos destinos, com a marca dos condutores de povos impressa em todas as facetas da sua individualidade. Como organizador e menear talvez superasse os mais famosos organizadores surgidos entre os brancos. A história da humanidade poucos exemplos apresentava de uma eficiencia igual á sua. Consagrara-se desde muito jovem á execução dum plano de gênio, traçado nas linhas mestras com a mais perfeita compreensão do material humano sobre que pretendia agir.

– Está me lembrando o velho Moisés…

– Jim Roy conseguira o milagre da associação integral da população negra sob a bandeira dum partido político cujas forças, coletadas por extensa cadeia de agentes distritais, vinham, como fios telefônicos, ter á estação central da sua chefia suprema. Sempre sabias e construtoras, suas instruções desciam com autoridade de dogmas sobre todas as células da Associação Negra (era o nome do partido) e as fazia moverem-se como puros autômatos. Esta abdicação, ou melhor, esta sujeição consciente e consentida de todas as vontades a uma vontade única aperfeiçoara-se de tal modo que no ano da tragédia a situação politica dos Estados Unidos passou de fato a depender do lider negro.

– Passou a depender dele como? Pois não eram os negros apenas cem para duzentos milhões de brancos?

– Não se impaciente, senhor Ayrton. Temos que ir por partes. Disse eu que a situação politica da América passou a depender de Jim Roy e foi fato. Mas antes de lá chegarmos temos que fazer um rodeio politico. Gosta de politica, senhor Ayrton?

– Nem eleitor sou, miss Jane.

– E da politica feminina?

– Essa desconheço. Suponho, entretanto, que ha de ser mais felina que a dos homens...
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continua… XII – A Simbiose Desmascarada

Fonte:
Monteiro Lobato. O Presidente Negro. Editora Brasiliense, 1979.

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