sábado, 3 de dezembro de 2011

Contos de Sempre (Os Seis Companheiros Invencíveis)


Era uma vez um homem que tinha muita habilidade para tudo: sentou praça, serviu o rei e, quando a guerra acabou, o rei mandou-o embora e deu-lhe dois vinténs para as despesas da viagem. O homem não gostou do presente, e protestou, no caso de encontrar quem o ajudasse, vingar-se do rei, que fora tão ingrato para ele.

Quando ia andando, viu no meio de uma grande mata um homem que arrancava árvores, como quem arranca cebolas.

- Ó homem! Queres vir daí comigo? – perguntou-lhe o soldado.

- Com a melhor das vontades, mas primeiro deixa-me levar este feixezito de lenha a minha mãe.

E pegando em cinco árvores, atou-as, pô-las às costas e partiu.

- Olha, nós dois havemos de conseguir tudo.

Foram andando, andando, e encontraram um caçador, de joelhos, com a espingarda apontada.

- O que estás a fazer aí, caçador?

- O que estou fazendo? Daqui a duas léguas está um mosquito numa folha de carvalho! Quero ver se lhe meto um grão de chumbo no olho esquerdo.

- Anda daí, caçador, nós três havemos de conseguir tudo.

Foram andando, andando, e chegaram a uns moinhos que se moviam muito depressa. Mas o que era melhor é que não havia vento.

O soldado observou:

- Ora esta! Não faz vento, e os moinhos andam.

E nisto foram andando, até que encontraram um homem em cima de uma árvore. Tapava com uma das mãos uma venta e assoprava pela outra venta.

- Que diacho estás tu aí a fazer, não me dirás? - perguntou o soldado.

- A dez léguas daqui há sete moinhos: como vês, sou eu que os faço andar com o sopro da minha venta esquerda.

- Anda daí, meu rapaz, nós quatro havemos de conseguir tudo.

O homem desceu e foi ter com os três. Foram andando, andando, quando deram com um indivíduo que estava firmado numa perna só, tendo a outra no chão, ao seu lado.

- Aqui está um maganão que quer com certeza descansar - notou o soldado.

- Corro muito - respondeu o tal indivíduo -, e para não correr tanto, desatarraxei a outra perna. Quando tenho ambas as pernas, corro mais depressa do que as andorinhas voam.

- Que me dizes?

- Anda daí, nós cinco conseguiremos tudo.

Foram andando, andando, quando no meio do caminho encontraram um indivíduo que tinha o chapéu inclinado sobre uma orelha.

- Salvo o devido respeito, meu caro senhor, - disse o soldado - parece-me que podia pôr o chapéu de um outro modo.

- Nessa é que eu não caio, meu amigo; quando ponho o chapéu direito na cabeça, faz um frio tal que os pássaros caem mortos, gelados, no chão.

- Anda daí, homem, nós seis havemos de conseguir tudo.

Foram andando, andando, até que chegaram a uma cidade, onde o rei anunciava que, se houvesse alguém que vencesse na carreira sua filha, receberia em prémio a mão da princesa, mas que se fosse vencido era degolado.

O soldado foi ter com o rei, e disse-lhe que tinha um criado que estava pronto para correr com a princesa.

O rei respondeu:

- Pois sim, mas olha que, se for vencido, as cabeças de vocês ambos são cortadas.

O soldado aceitou, e ordenou ao andarilho que atarraxasse a perna e que não se deixasse vencer.

A aposta era que seria vencedor o que trouxesse primeiro uma bilha de água de uma fonte que havia dali a uma légua.

A princesa e o andarilho receberam cada um a sua bilha, e partiram ao mesmo tempo. Ainda bem a princesa não tinha dado dois passos, e já o diacho do homem se perdia de vista. Chegou à fonte, encheu a bilha, e vinha já de volta, quando no meio do caminho lhe dá o sono; pôs a bilha no chão, e deitou-se. Pegou porém num crânio de cavalo e encostou nele a cabeça, julgando que a dureza do travesseiro o não deixaria dormir muito.

A princesa, que corria como outra qualquer pessoa, chegara à fonte, enchera a bilha e vinha já de volta, quando deu com o seu rival que estava ferrado num profundo sono.

- Bem, tenho o inimigo em minhas mãos!

E esvaziando a bilha do dorminhoco, pôs-se a caminho. Mas o caçador, que estava no alto de um castelo, vira tudo.

- Nada! A princesa não levará a melhor.

E apontando a espingarda, fez fogo e quebrou, sem fazer mal ao que dormia, o crânio do cavalo que lhe servia de travesseiro.

O homem acorda, dá com a bilha esvaziada, e vê que a princesa levava já uma grande distância.

Não perdeu o ânimo, voltou à fonte, encheu a bilha, e chegou a vencer a princesa.

- Até que enfim! - disse o andarilho. - Isto é que eu chamo andar e mexer as pernas.

O rei e a filha estavam furiosos. O vencedor não passava de um miserável soldado com baixa; resolveram dar cabo dele e dos cinco que o acompanhavam.

- Tenho um meio, um bom meio, verás. Não escaparão da que lhes vou preparar!

E com o pretexto de lhes querer dar um banquete, fê-los entrar num quarto cujo soalho, paredes e portas eram de ferro.

No meio do quarto estava uma mesa coberta de pastéis, doces e frutas.

- Entrem, entrem, e comam até fartar!

E assim que os viu dentro foi-se à chave e fechou-os por fora. Depois ordenou ao cozinheiro que acendesse um fogão debaixo daquela sala, até que o ferro ficasse vermelho.

Os seis companheiros, que estavam comendo e bebendo, começaram a sentir calor: ao princípio imaginaram que era do comer, mas o calor ia cada vez a mais, até que eles levantaram-se e foram até à porta para a abrirem. Estava a porta fechada por fora. Viram logo que o rei lhes queria fazer alguma das suas.

- Deixá-lo lá - observou o homem do chapéu. - Vou já fazer um frio tal, que não haverá calor que possa com ele.

E pôs o chapéu direito na cabeça. O calor desapareceu logo e os pratos gelaram na mesa.

Duas horas depois, o rei, imaginando que os homens estavam cozidos e recozidos, mandou abrir a porta, e veio ele mesmo em pessoa ver a sua obra. Achou os seis companheiros contentes e felizes, e dizendo que queriam sair dali para se aquecerem um pouco, tal era o frio que havia dentro daquela sala.

O rei, furioso, foi ter com o cozinheiro e perguntou-lhe porque não cumprira as suas ordens.

- Real senhor, saiba vossa majestade que cumpri. Aqueci o ferro até ele ficar vermelho.

O rei foi ver e reconheceu que o cozinheiro não mentia. Não sabendo porém como desfazer-se daqueles hóspedes tão incómodos, mandou chamar o soldado e falou assim:

- Se prescindires dos direitos que tens sobre minha filha, dar-te-ei tanto ouro quanto quiseres.

- Aceito, meu senhor, aceito, mas há-de dar-me tanto quanto puder levar um dos meus criados: nesse caso não exijo a mão da princesa.

O rei bateu as palmas de contente; o soldado disse que havia de vir buscar o dinheiro dentro de quinze dias. No entretanto reuniu os alfaiates que havia em todo o reino e encomendou-lhes um grande saco. Quando aquele saco, que levara quinze dias a coser por um exército de alfaiates, estava pronto, o valentão que arrancava árvores, como quem arranca cebolas, pegou nele às costas e apresentou-se no palácio.

O rei perguntou que espécie de homem era aquele valentão que trazia às costas um saco tão grande... Quando soube quem era, ficou desesperado por ver que dinheirão caberia ali dentro...

Mandou vir um tonel que fazia suar os dezasseis homens que o trouxeram: o valentão pegou no tonel com uma só mão e, metendo-o no saco, perguntou:

- Então é só isto?

O rei mandou buscar todos os seus tesouros, que foram direitinhos para o fundo do saco.

- Mais! Mais! Mais! - gritava o homem.

O rei mandou buscar setecentas carruagens carregadas de ouro e o valentão meteu-as, assim como os bois que as puxavam, dentro do enorme saco.

- Enfim, o melhor é ir metendo a esmo tudo o que eu apanhar ao alcance da mão!

E foi metendo, metendo tudo!

- O saco ainda não está cheio, mas afinal fechemo-lo assim mesmo.

E atando com uma grande corda a boca do saco, atirou-o para os ombros e partiu.

Assim que o rei viu que todas as suas riquezas iam às costas de um só homem, mandou reunir toda a sua cavalaria e deu ordem para que prendessem os seis companheiros, e que lhes tirassem o saco. Os regimentos abalaram atrás dos fugitivos.

- Alto aí! Alto aí! Senão, sereis esquartejados - gritaram os comandantes da tropa.

- O que é que vossemecês dizem? - tornou o homem que soprava pela venta -nós esquartejados! Esperem que eu vos ensino a todos!

E tirando a mão da venta, soprou, soprou, e não lhes digo nada!, soldados, cavalos, comandantes, tudo foi pelos ares.

Um velho general pediu misericórdia e o homem deixou de soprar, não sem lhe dizer:

- Vai dizer ao teu rei que não mande mais tropa contra a gente, que eu atiro-a toda por esses ares...

O rei, quando tal soube, redarguiu:
- Deixá-los lá, parece que aqueles homens são feiticeiros. Os seis companheiros dividiram todas aquelas riquezas, casaram-se, tiveram muitos filhos e foram muito felizes até à hora da morte.

Fonte:
José António Gomes e Isabel Ramalhete (Seleção e coordenação). Contos de Sempre. Porto/Portugal: Porto Editora, Setembro de 2004.

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