sábado, 3 de dezembro de 2011

Aluísio de Almeida (O lendário Peabiru)


Ernani Donato estreou na literatura de ficção com Os contos muito humanos, da editora A Gazeta de Limeira, curiosa e rara editora, já vitoriosa no interior do planalto milagroso, e conhecida além das fronteiras. Não podemos fazer a crítica desse livro, porque não nos sentimos autorizados a esses altos vôos, mas tão somente louvar, ao jovem autor, uma esplêndida força de vontade que vence os obstáculos de toda sorte, inclusive os encargos penosos da profissão e a limpeza de suas histórias, muito humanas e, entretanto, sem os realismos muito tristemente humanos que se vêem por aí, e, por isso, não é dos tais livros que os educadores, pais e mestres, têm de desaconselhar à juventude.

Em 1946, já havia o autor publicado O livro das tradições que é um pouco de ficção e muito de imaginação e estilo, associados a fatos históricos e lendários do povoamento do sertão paulista; de Botucatu para a frente. Aparecerá, enfim, alguém para seguir na esteira de Paulo Setúbal? Há quanto tempo não se tenta o romance histórico, o verdadeiro romance histórico, em que os fatos principais, os lugares e os personagens são descritos segundo os documentos, e a ficção se reduz aos diálogos, aos monólogos e psicologia dos comparsas, interpretada de acordo com os dados históricos, por sua voz. Resta ainda muito assunto, à procura de um estilo e de um escritor de pulso. Sem vocação nem autoridade de profeta, todavia, ficamos pensando que este moço está procurando o seu caminho entre a história e ficção, e merece o apoio dos que lhe podem dar.

Ernani Donato é tão entusiasta das nossas antigüidades, que chegou a organizar explorações de velhos caminhos a serra de Botucatu, por onde lhe parecia terem os bandeirantes viajado em suas passadas de sete léguas.

Sem inventar nada, mas copiando autores de boa nota, já escrevemos e publicamos que existiu um caminho, antes de 1500, ligando o Atlântico ao atual Paraguai, os tupis de São Vicente aos guaranis do Paraguai, estrada batida de nove palmos de largura... E com ramificações! Eis aqui o feixe de comunicações aludido: São Vicente, Piratininga, Cananéia-Itapetininga, Paranaguá-Curitiba, Santa Catarina-Tibagi, eram as descidas do planalto para o mar. Tronco: São Paulo-Tibagi. Ligando-se a este, dois novos ramais, um começando nos Campos Gerais (Paraná), outro em Itapetininga, para alcançarem o Guaíra e o Paraguai pelas Sete Quedas. E conhecendo um velho caminho fundo entre Itapetininga e a serra de Botucatu, chegamos a pensar que podia ter sido, ao menos, calcado sobre o antigo peabiru! Hoje, estamos convencidos de que toda essa argumentação só tem valor, expressa dessa forma: os bandeirantes e, depois os tropeiros, quando caminhavam por terra no centro e sul do Brasil, não iam às cegas, mas de um modo geral seguiam aqueles rumos e direções acima delineados. No mais, mito, puro mito!

O leitor curioso pode procurar, sobre esse tema, esta bibliografia: "A conquista espiritual", de padre Antônio Ruiz de Montoya, em Anais da Biblioteca Nacional, 1876. "História da República Jesuítica do Paraguai", pelo cônego João Pedro Gay, na Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, tomo 26. "O caminho do Paraguai a Santo André da Borda do Campo", por Gentil de Assis Moura, ma Revista do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo, tomo 13. "Antônio Raposo", por W. Luís, na coleção precedente, tomo 9. "O apóstolo São Tomé na América", por monge Camilo Passalaqua, mesma coleção, tomo 8. "São Paulo de Piratininga no fim do século XVI", Teodoro Sampaio, mesma coleção, tomo 4. "Historia de la conquista del Paraguai, Rio de la Plata y Tucuman", pelo padre Pedro Lozano da Companhia de Jesus, com notas de André Lamas Buenos Aires, 1873-1875, primeira e única obra da "Biblioteca del Rio de la Plata". Crônica da Companhia de Jesus no estado do Brasil", Simão de Vasconcelos, 1864. História geral das bandeiras, de Afonso de Escragnole Taunay. História do Paraná, Romário Martins etc.

Vimos pessoalmente esses livros, exceto o de Lozano, que é básico, mas em João Pedro Gay está a citação essencial. Conseguimos ler rapidamente a história do Paraguai, do padre Guevara (em manuscrito) e a "Argentina", de Ruy Dias de Guzman, na Biblioteca Nacional. Especialmente para as viagens de Álvaro Nunes Cabeça de Vaca, cujo itinerário de Santa Catarina a Assunção seria na direção do peabiru, e guiado pelos índios. Isto, porém, já é interpretação.

É curioso lembrar que Jaime Cortesão, escrevendo uma valiosa coleção de artigos sobre o bandeirismo, crê na existência de um peabiru, sem entrar em pormenores E. Taunay não nos pareceu muito entusiasta, apenas analisando os autores que o precederam, sem emitir o juízo definitivo. de sua grande obra sobressai como um estribilho a referência aos caminhos andantes dos rios.

Para compreender o mito do peabiru, é preciso não o separar do outro, o do Pai Sumé. Era a estrada de São Tomé. E se Pai Sumé é um mito, o caminho tem que o ser.

Os primeiros povoadores e catequistas da América do Sul encontraram entre as tradições orais dos indígenas essa de que um homem extraordinário, de barba e branco, viera ensinar-lhes o cultivo da mandioca e outras coisas de sua pequena cultura ou civilização material e, perseguido, retirou-se na direção do mar, deixando as pegadas nas pedras. Este é o arcabouço da lenda. Há tantas versões! Montoya atribui a essa personagem uma cruz de madeira enterrada no Guaíra e até um cemitério, o cemitério de Pai Sumé. Não faltaram exagerados para dizer que os indígenas derramavam água em forma de cruz nos recém-nascidos.

Em diversos lugares se dizia que o Pai Sumé passou. Também nos grandes rios. Também nos grandes rios. Pareceria que fosse um mito da raça ou grupo guarani, se não o houvesse entre os caraíbas, nas Antilhas.

Releva notar que Pai e Sumé não são palavras portuguesas e que, se a primeira é tão conhecida e de grafia uniforme, a segunda admite outras interpretações ortográficas da fonética indígena.

Desejamos lembrar que os jesuítas não foram nem os únicos, nem os primeiros a usar a lenda do Pai Sumé interpretando-a como história de São Tomé, e aproveitando-a para a catequese. Por exemplo, dela falaram os primeiros franciscanos que vieram a Santa Catarina, o agostiniano frei Joaquim Bráulio a menciona em sua História do Peru etc.

Pondo os pingos nos is, a coisa não se passou assim: vendo os inteligentes jesuítas que os índios acreditavam na existência de um Sumé, imediatamente traduziram para São Tomé a palavra e da lenda fizeram um reforço para a sua apologética, com o bom desejo de convencerem os índios a se batizarem.

Não. Quando eles começaram a catequese, a história do Sumé ? São Tomé, já existia e, se eles acreditaram piamente nisto, não estavam usando de nenhum estratagema e hipocrisia.

Nunca se poderá saber quem e onde foi o primeiro europeu que no Brasil traduziu Sumé por Tomé. Foi o primeiro cristão medianamente instruído que sabia ter São Tomé evangelizado os índios, segundo a tradição milenar. É bom também não simplificar o problema com um atestado de atraso mental aos portugueses, que teriam feito somente a troca de duas letras, pois os espanhóis também se deixaram levar pela semelhança de sons, mais longínquos no caso deles. E os mais altos espíritos da época acreditavam nisso. Um deles é o famoso exegeta, cujos comentários à Escritura são um monumento, o padre Cornélio a Lapide, que nunca veio ao Brasil. De seu comentário ("Epístola aos romanos"), tiramos só o finalzinho: "Zomé que parece não ser outro que são Tomé". Ele era professor universitário e escreveu "parece". Atitude científica.

É preciso ainda lembrar que não se trata de dogma de fé, mas de uma opinião dos católicos do tempo das descobertas acerca da vinda de São Tomé às Américas, um fato histórico, que explicavam pelo milagre e também inutilmente pelas antigas e certas comunicações da Ásia com a América. Inutilmente, pois o milagre da volta pelo oceano a pé enxuto podia ser invocado para a vinda.

O padre Simão de Vasconcelos (Crônica da Companhia de Jesus no estado do Brasil, edição de 1864, Rio de Janeiro) se estende sobre o assunto e enumera uma porção de pegadas de São Tomé que ele viu pessoalmente ou pessoas fidedignas lhes referiram, por exemplo, em São Vicente, em Cabo Frio, na Bahia; Logo ressalta a conclusão: o Sumé saiu, sim, pelo oceano, mas em tantos lugares! Mas como é possível que não enxergassem a lenda?

Supomos que, apertados, teriam que dizer que só duas dessas pegadas foram as últimas, e que nos outros casos ele teria, o Sumé, voltado a outras partes do Brasul, como em São Tomé das Letras, ali no sul de Minas Gerais...

Como chegaram a atribuir a São Tomé os vestígios? Não inventavam, os índios vizinhos explicavam: Pai Sumé! Eles traduziam: São Tomé.

Eis o resumo dessas considerações: é certíssimo que existiu o mito do Pai Sumé entre os indígenas americanos. Apelando para o milagre, os crentes podem atribuir a São Tomé o que os índios pagãos atribuíam a Sumé. Trata-se de uma hipótese, de uma possibilidade e o milagre, para os que cremos, é possível.

Não é fato histórico, provado, porque as pegadas são o único documento e tão mal interpretado. É um fato lendário, cuja tradução em linguagem vulgar é pode ser que sim, pode ser que não.

Dizíamos que Montoya foi o pai do peabiru, do caminho de São Tomé, nesse sentido que foi o primeiro a descrevê-lo. Ele encontrou um trecho de caminho a cem léguas do mar, no atual estado do Paraná, com oito palmos de largo etc. e perguntou aos índios o que era aquilo. A chave para todas as respostas veio logo: o caminho do pai Sumé.

Montoya é um nome que não pode ser alistado entre os mentirosos vulgares, nem mesmo um alucinado pelos sacrifícios da catequese, a ponto de criar caraminholas ou macaquinhos no sótão. Ele viu, e ouviu e marcou o lugar. Não, porém, o viu e ouviu dizer cem léguas de caminho, como parece que o interpretam, mas viu um pedaço de caminho num lugar distante cem léguas da costa. Podia ser um quilômetro e até menos. Agora temos o direito de emitir muitas hipóteses para explicar o que ele viu, viu e interpretou pegadas e vestígios da passagem de São Tomé. E isso não tem valor algum. É o mesmo que dissesse vendo um sambaqui, que São Tomé passou por ali, salvo a rima...

O caminho de São Tomé não existiu, sobrevivendo 1500 anos ou mais ao seu milagroso aparecimento. E que viu o padre Montoya? Alguma coisa parecida com caminho, um caminho natural, feito acaso por ação física e química das águas, um trechinho. Ele acreditava que fosse o derradeiro vestígio e resto da grande trilha de que lhe falavam os guaranis.

Eis o texto completo:

"Os habitantes do Brasil todos dão como certo que São Tomé Apóstolo veio a pé para estar bandas, e o lugar primeiro aonde chegou foi a vila de Santos chamada (tradução literal) que está para as bandas do sul, no dia de hoje mesmo se vê a pegada do santo, onde ele tinha saído em terra. Eu, por mim, não vi aquelas pedras, porém, a cem léguas de distância, do mar vi um caminho de cerca de oito palmos que ele tinha trilhado. Por aquele caminho tinha crescido um capim tenro e fino, pela borda dele, porém, cresceu até a altura de meia vara. Aquele caminho vai bastante comprido, e caminho de São Tomé chamam-no as gentes por ali moradoras. Os nossos filhos também declaram que aquele caminho era assim chamado". O texto vem junto com o original impresso em guarani, e este, assim como o manuscrito, existe na Biblioteca Nacional.

Fontes:
Almeida, Aluísio de. "O lendário peabiru". O Estado de São Paulo. São Paulo, 20 de junho de 1948. Disponível em http://www.jangadabrasil.com.br/revista/julho92/al92007a.asp
Imagem = http://www.gilsoncamargo.com.br

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