sábado, 2 de outubro de 2010

Antônio de Alcântara Machado (Brás, Bexiga e Barra Funda) Parte III, final


ALGUMAS OBSERVAÇÕES A MAIS SOBRE BRÁS, BEXIGA E BARRA FUNDA

Como foi possível perceber, os contos forma, sem seu conjunto um panorama de um determinado fragmento social em um determinado momento histórico. Desse modo, podemos dizer que sua grande personagem é a cidade de São Paulo no início do século, vista a partir de um aspecto: a imigração.

O subtítulo do livro – Notícias de São Paulo – já define o posicionamento do autor: a realidade captada por pequenos fragmentos. A mesma relação entre literatura e o jornalismo será ainda mais detalhada em “Artigos de Fundo”, o prefácio que não é prefácio. E é a partir daí que encontramos mais claramente a unidade do livro. Em todos os contos, o realismo jornalístico está presente nos assuntos cotidianos, na ausência de idealização, na linguagem enxuta. E sempre ao lado do humor iconoclasta modernista.

Os contos abordam questões corriqueiras do mundo do imigrante italiano e do brasileiro que com ele convive. Em “Gaetaninho” e em “Lisetta”, vemos o sonho da criança que é interrompido pela tragédia da morte ou pelo preconceito sócio-econômico. Em “Carmela” e em “Coríntians (2) vs. Palestra (1)”, os amores das mocinhas que sonham com príncipes e buscam no relacionamento amoroso um reconhecimento social. Em “Amor e Sangue”, o amor já descamba para a irracionalidade e para o crime passional. “Tiro de Guerra nº 35”, “Notas Biográficas do Novo Deputado” e ainda “Nacionalidade” trazem a discussão do patriotismo e do xenofobismo. Aristodemo Guggiani, Gennarinho, os filhos de Tranquillo e o próprio barbeiro vão passando por etapas de aculturação e se tornam filhos do país que os recebeu. “A sociedade” e “Armazém Progresso de São Paulo” mostram o italiano numa ânsia de ascensão econômica e social e, a partir disso, sua prepotência e arrogância. Finalmente, a crítica à imprensa que se faz fortemente presente em “O monstro de rodas”, retratando o abandono em que vivia o imigrante.

Cabe dizer ainda que foi com Alcântara Machado que o tema da imigração firmou-se no Modernismo. Preocupado com o momento social de profunda transformação em que vivia sua cidade, o autor tornou-se o escritor de São Paulo. E falar da São Paulo de sua época era falar daqueles que a estavam compondo: os italianos.

ANTOLOGIA

Artigo de fundo

Assim como quem nasce homem de bem deve ter a fronte altiva quem nasce jornal deve ter artigo de fundo. A facha explica o resto.

Este livro não nasceu livro: nasceu jornal. Estes contos não nasceram contos: nasceram notícias. E este prefácio portanto também não nasceu prefácio: nasceu artigo de fundo.

Brás, Bexiga e Barra Funda é o órgão dos ítalo-brasileiros de São Paulo.

Durante muito tempo a nacionalidade viveu da mescla de três raças que os poetas xingaram de tristes: as três raças tristes.

A primeira as caravelas descobridoras encontraram aqui comendo gente e desdenhosa de mostrar suas vergonhas. A segunda veio nas caravelas. Logo os machos sacudidos desta se enamoraram das moças bem gentis daquela que tinham cabelos mui pretos, compridos pelas espadoas.

E nasceram os primeiros mamelucos.

A terceira veio nos porões dos navios negreiros trabalhar o solo e servir a gente. Trazendo outras moças gentis, mucamas, mucambas, mumbandas, macumas.

E nasceram os segundos mamelucos.

E os mamelucos das duas fornadas deram o empurrão inicial no Brasil. O colosso começou a rodar.

Então os transatlânticos trouxeram da Europa outras raças aventureiras. Entre elas uma alegre pisou na terra paulista cantando e na terra brotou e se alastrou como aquela planta também imigrante que há duzentos anos veio fundar a riqueza brasileira.

De consórcio da gente imigrante com o ambiente, do consórcio da gente imigrante com a indígena nasceram os novos mamelucos.

Nascem os italianinhos.
O Gaetaninho.
A Carmela.
Brasileiros e paulistas. Até bandeirantes.

E o colosso continuou rolando.

No começo a arrogância indígena perguntou meio zangada:
Carcamano pé de chumbo
Calcanhar de frigideira
Quem te deu a confiança
De casar com brasileira?

O pé de chumbo poderia responder tirando o cachimbo da boca e cuspindo de lado: A brasileira, per Bacco!

Mas não disse nada. Adaptou-se. Trabalhou. Entregou-se. Prosperou.

E o negro violeiro cantou assim:
Italiano grita
Brasileiro fala
Viva o Brasil
E a bandeira da Itália!

Brás, Bexiga e Barra Funda como membro da livre imprensa que é tenta fixar tão-somente alguns aspectos da vida trabalhadeira, íntima e quotidiana desses novos mestiços nacionais e nacionalistas. É um jornal. Mais nada. Notícia. Só. Não tem partido nem ideal. Não comenta. Não discute. Não aprofunda.

Principalmente não aprofunda. Em suas colunas não se encontra uma única linha de doutrina. Tudo são fatos diversos. Acontecimentos de crônica urbana. Episódios de rua. O aspecto étnico-social dessa novíssima raça de gigantes encontrará amanhã o seu historiador. E será então analisado e pesado num livro.

Brás, Bexiga e Barra Funda não é um livro.

Inscrevendo em sua coluna de honra os nomes de alguns ítalo-brasileiros ilustres este jornal rende uma homenagem à força e às virtudes da nova fornada mameluca. São nomes de literatos, jornalistas, cientistas, políticos, esportistas, artistas e industriais. Todos eles figuram entre os que impulsionaram e nobilitam neste momento a vida espiritual e material de São Paulo.

Brás, Bexiga e Barra Funda não é uma sátira.

O Autor define sua obra como um não-livro, o que, reforçado pelo tom de humor do texto, provoca um estranhamento no leitor que, conseqüentemente, terá que se situar de outra forma que não leitor de contos. A aproximação com o estilo jornalístico vai além do conteúdo. Chega à forma por meio das frases curtas e da linguagem enxuta, garantindo ao texto um ar de contemporaneidade. E também por meio dos espaços em branco entre os fragmentos do texto, que lembram a organização jornalística. Com essa divisão, o autor consegue passar as informações em formas de “flashes”, mostrando a realidade de modo fragmentado, assim como o jornal.

Artigo de Fundo procurar registrar um ponto de vista positivo sobre o imigrante, diz até mesmo representá-los. E cria uma imagem do imigrante esperto, que se adaptou e se integrou à terra brasileira. Logo a seguir, porém, procura a objetividade jornalística: “Não tem partido nem ideal”. E realmente a visão predominante ao longo da obra é do narrador que observa de longe.

A Sociedade

- Filha minha não casa com filho de carcamano!

A esposa do conselheiro José Bonifácio de Matos e Arruda disse isso e foi brigar com o italiano das batatas. Teresa Rira misturou lágrimas com gemidos e entrou no seu quarto batendo a porta. O conselheiro José Bonifácio limpou as unhas com o palito, suspirou e saiu de casa abotoando o fraque.

O esperado grito do cláxon fechou o livro de Henri Ardel e trouxe Teresa Rira do escritório para o terraço.

O Lancia passou como quem não quer. Quase parando. A mão enluvada cumprimentou com o chapéu Borsalino. Uiiiiia – uiiiiia! Adriano Melli calcou o acelerador. Na primeira esquina fez a curva. Veio voltando. Passou de novo. Continuou. Mais duzentos metros. Outra curva. Sempre na mesma rua. Gostava dela. Era a rua da liberdade. Pouco antes do número 259-C já sabe: uiiíiia-uiiiiia!
- O que você está fazendo aí no terraço, menina?
- Então nem tomar um pouco de ar eu posso mais?

Lancia Lambda, vermelhinho, resplendente, pompeando na rua. Vestido do Camilo, verde, grudado à pele, serpejando no terraço.
- Entre já para dentro ou eu falo com seu pai quando ele chegar!
- Ah meu Deus, meu Deus, que vida, meu Deus!

Adriano Melli passou outras vezes ainda. Estranhou. Desapontou. Tocou para a Avenida Paulista.

Na orquestra o negro de casaco vermelho afastava o saxofone da beiçoarra para gritar:

Dizem que Cristo nasceu em Belém...

Porque os pais não a haviam acompanhado (abençoado furúnculo inflamou o pescoço do conselheiro José Bonifácio) ela estava achando um suco aquela vesperal do Paulistano. O namorado ainda mais.

Os pares dançarinos maxixavam colados. No meio do salão eram um bolo tremelicante. Dentro do círculo palerma de mamãs, moças feias e moços enjoados. A orquestra preta tonitroava. Alegria de fozes e sons. Palmas contentes prolongaram o maxixe. O banjo é que ritmava os passos.
- Sua mãe me fez ontem uma desfeita na cidade.
- Não!
- Como não? Sim senhora. Virou a cara quando me viu!
... mas a história se enganou!

As meninas de ancas salientes riam porque os rapazes contavam episódios de farra muito engraçados. O professor da faculdade de Direito citava Rui Barbosa para um sujeitinho de óculos. Sob a vaia do saxofone: turururu-turururum!
- Meu pai quer fazer um negócio com o seu.
- Ah sim?
Cristo nasceu na Baía, meu bem...

O sujeitinho de óculos começou a recitar Gustave Le Bon mas a destra espalmada do catedrático o engasgou. Alegria de vozes e sons.
... e o baiano criou!

Olhe aqui, Bonifácio: se esse carcamano vem pedir a mão de Teresa para o filho você aponte o olho da rua para ele, compreendeu?
- Já sei, mulher, já sei.

Mas era cousa muito diversa.

O cav. uff. Salvatore Melli alinhou algarismos torcendo a bigodeira. Falou como homem de negócios que enxerga de longe. Demonstrou cabalmente as vantagens econômicas de sua proposta.
- O doutor...
- Eu não sou doutor, senhor Melli.
- Parlo assim para facilitar. Non é para ofender. Primo o doutor pense bem. E poi me dê a sua resposta. Domani, dopo domani, na outra semana, quando quiser. Lo resto à sua disposição. Ma pense bem!

Renovou a proposta e repetiu os argumentos pró. O conselheiro possuía uns terrenos em São Caetano. Cousas de herança. Não lhe davam renda alguma. O cav. uff. Tinha a sua fábrica ao lado. 1200 teares. 36.000 fusos. Constituíam uma sociedade. O conselheiro entrava com os terrenos. O cav. uff. Com o capital. Arruavam, os trinta alqueires e vendiam logo grande parte para os operários da fábrica. Lucro certo, mais que certo, grandíssimo.

- É. Eu já pensei nisso. Mas sem capital o senhor compreende é impossível...
- Per Baco, doutor! Mas io tenho o capital. O capital sono io. O doutor entra com o terreno mais nada. E o lucro se divide no meio.

O capital acendeu um charuto. O conselheiro coçou os joelhos disfarçando a emoção. A negra de broche serviu o café.
- Doppo o doutor me dá a resposta. Io só digo isto: pense bem.

O capital levantou-se. Deu dois passos. Parou. Meio embaraçado. Apontou para um quadro.
- Bonita pintura.

Pensou que fosse obra de italiano. Mas era de francês.
- Francese? Não é fio non. Serve.

Embatucou. Tinha qualquer cousa. Tirou o charuto da boca, ficou olhando para a ponta acesa. Deu um balanço no corpo. Decidiu-se.
- Ia dimenticando de dizer. O meu filho fará o gerente da sociedade... sob a minha direção si capisce.
- sei, sei... O seu filho?
- Si. O Adriano. O doutor... mi pare... mi pare que conhece ele?

O silêncio do conselheiro desviou os olhos do cav. uff. Na direção da porta.
- Repito un’altra vez: o doutor pense bem.

O isotta Franschini esperava-o todo iluminado.
- E então? O que deve responder ao homem?
- Faça como entender, Bonifácio...
- Eu acho que devo aceitar.
- Pois aceite...

E puxou o lençol.

A outra proposta foi feita de fraque e veio seis meses depois.

O conselheiro José Bonifácio de Matos e Arruda e senhora

Têm a honra de participar a V. Exa. E Exma. Família, o contrato de casamento de sua filha Teresa Rita com o sr. Adriano Melli.

Rua da Liberdade, n. 259-C.

O cav. uff. Salvatore Melli e senhora

Têm a honra de participar a V. Exa. E Exma. Família o contrato de casamento de seu filho Adriano com a senhorinha Teresa Rita de Matos e Arruda.

Rua da Barra Funda, n. 427.

São Paulo, 19 de fevereiro de 1927

No chá do noivado o cav. uff. Adriano Melli na frente de toda a gente recordou à mãe de sua futura nora os bons tempinhos em que lhe vendia cebolas e batas, Olio di Lucca e bacalhau português quase sempre fiado e até sem caderneta.

Neste conto, Alcântara Machado procura retratar a dificuldade de integração sofrida pelos italianos e, ao mesmo tempo, sua capacidade de adaptação e até superação diante das famílias tradicionais e preconceituosas. Os personagens, verdadeiros estereótipos de uma sociedade, representam as etapas que vão da dissociação até a integração de duas culturas. A esposa do conselheiro retrata todo o preconceito existente em relação aos imigrantes. Rejeita qualquer tipo de união entre a sua família paulistana tradicional e a do “novo rico” italiano. Revela os últimos vestígios de resistência da aristocracia. Teresa Rita alude à aceitação decorrente de qualquer processo de assimilação cultural. Para as novas gerações, o caráter estrangeiro, imigrante, perde seu valor depreciativo, assume naturalidade. O conselheiro José Bonifácio de Matos e Arruda, como o próprio nome revela, representa a verdadeira família aristocrata e passadista em decadência. O outro lado da questão é retratado primeiramente por Adriano Melli, estereótipo do “novo rico”, caracterizado pelo seu vestuário meticuloso e afetado. O carro, as luvas, o chapéu contrastam com o traço aristocrático e ultrapassado do fraque do conselheiro. Ainda mais contrastante é a figura do imigrante Salvatore Melli, que em oposição ao tradicional título de conselheiro, ostenta o de cavagliere ufficiale, denunciando a novidade da posição alcançada no novo país. Porém, a mobilidade social ascendente através do prestígio econômico não diminui a distância cultural marcada na linguagem, no gosto, nos símbolos do prestígio. O novo rico ainda usa a “bigodeira” característica dos primeiros imigrantes. Dirige-se ao conselheiro ainda com certa humildade, ao menos no tratamento, chamando-o de “doutor”, mesmo certo de sua superioridade econômica. E a língua de origem não é esquecida nos mementos de maior afetividade do personagem.

A questão do narrador adapta-se ao estilo jornalístico de narra. O caráter realista do conto exige uma observação direto dos fatos. Outro traço forte neste conto, assim como nos demais, conforme já foi abordado, é a variação dos pontos de vista por meio dos diálogos. Com essa técnica, o leitor toma conhecimento das idéias que caracterizam as personagens e sugerem uma visão de mundo. Daí surge o desenvolvimento da tensão entre as partes.

A Sociedade aborda o tema da assimilação cultural de uma perspectiva um pouco diversa da habitual nos demais contos. A família imigrante aqui é vista a partir da já atingida ascensão econômica e prestes a conseguir a almejada posição social. Em relação ao restante da obra, Adriano Melli é o menino que sonhava andar de carro já crescido e adaptado. Essa ascensão fica mais evidenciada ao final do conto. No chá de noivado, Salvatore Melli relembra à preconceituosa mãe de Teresa Rita os tempos em que o imigrante lhe vendia cebolas. E dá destaque à já clara decadência da família aristocrata: vendia fiado. Fica óbvia a denotação do esforço de trabalho daquele que sofre o preconceito em contraste com a ociosidade da camada social aparentemente estabilizada.

Alcântara Machado aproveitou-se de uma característica comum ao Modernismo para dar um traço pessoal à sua obra: o cômico. Era essa a base de sua visão de mundo. Não buscava criar situações corriqueiras. A situação, a linguagem e os personagens é que ficam marcadas pelo cômico. Em “A Sociedade”, o ridículo é produzido pela situação ambígua da família paulistana: ao mesmo tempo em que é preconceituosa, precisa do imigrante. Os personagens estereotipados, permitindo ao leitor uma rápida associação com a realidade, também tornam-se cômicos. Finalmente a linguagem relaciona-se com o anedótico tanto pelo estilo coloquial, com traços que lembram muito o estilo modernista de Mário de Andrade, como pela imitação das expressões típicas dos italianos. Esse último aspecto traz não só a comicidade devido à sua estranheza dentro do texto, mas traz também a associação com a realidade da personagem. Em sua, Alcântara Machado faz com que a sociedade paulistana ria de sua própria imagem.
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Fonte:
Estudo copiado do material do Curso Universitário, disponível em http://www.portrasdasletras.com.br/pdtl2/sub.php?op=resumos/docs/barrafunda

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