A categoria “indígena” é por si mesma problemática. O termo é aplicado como substantivo e adjetivo ao longo deste trabalho. No entanto, não foi sem hesitação que o adotamos, visto que, especialmente entre os autores norte-americanos, termos ligados à indianidade (Indianess) são rechaçados pelo bem de outros como Native Americans e First Nations. O termo indian é, de modo geral, considerado inapropriado, especialmente pela homonímia confusa indian (nativo-americano)/ indian (nativo da Índia). Além disso, autores como Louis Owens e Gerald Vizenor se opõem fortemente ao termo, afirmando que este é um nome generalizador imposto pelos desbravadores europeus, sem qualquer correspondência na realidade plural das diversas tribos indígenas. As alternativas Native Americans e First Nations são preferidas por reconhecerem o fato de que esses povos são autóctones e anteriores a qualquer "descobrimento". Contudo, cabe lembrar que nenhum dos termos é ou será considerado ideal, visto que a generalização peca sempre pelo apagamento de diferenças e peculiaridades de diferentes tribos.
No Brasil, o caso é bastante diferente: os autores parecem ter adotado os termos índio e indígena com orgulho, talvez por não se fazerem confusos como o correspondente anglófono. Contudo, em uma tentativa de manter uma terminologia semelhante ao falar dos dois contextos, decidimos adotar os vocábulos indígena e nativo para falar dessas populações e literaturas. O termo índio é apenas utilizado quando explicitamente reivindicado pelos autores. No que diz respeito ao caráter genérico dos termos, sustentamos a escolha, pois parece-nos que, assim como nos termos "europeu", “branco” ou "eurocêntrico", essa generalização se faz funcional ao tratarmos de uma experiência, se não idêntica, comum. A fim de minimizar o problema, e em respeito às diferentes ascendências dos autores aqui trabalhados, destacaremos sempre a filiação/afiliação tribal de cada autor. Perguntado sobre sua identificação (ou não) com o rótulo de “escritor canadense”, em uma entrevista dada a Hartmut Lutz (Lutz, 1991: 89-95), Thomas King respondeu com uma
afirmação que evidencia a complexidade identitária de muitos desses autores:
“Há apenas um problema no sentido de que não sou originalmente do Canadá e de que os cherokees certamente não são uma tribo canadense. Agora, isso se torna um problema apenas se você reconhece a linha política em particular que corre entre o Canadá e os Estados Unidos, e se você concorda com as presunções que essa linha faz. Penso em mim como um autor nativo e um autor canadense. Duvido que pudesse me considerar um autor nativo canadense, simplesmente porque não sou de uma das tribos aqui de cima. Mas todos os meus contos, e o romance, e as antologias, e o livro crítico que co-editei foram publicados no Canadá, e todos têm a ver com material canadense. Eu não fiz nada de que se possa falar nos Estados Unidos. Então, sim, eu me considero um autor canadense, eu escrevo sobre as pradarias canadenses, eu não escrevo sobre Nova Iorque”.(Lutz, 1991: 107-8).
Na mesma entrevista, o autor fala sobre o rótulo de “escrita nativa”. Como vamos definir quem é nativo ou não? Há, no contexto das literaturas aborígines australianas, o caso célebre de Colin Johnson (Mudrooroo) que, após uma vida escrevendo como um aborígine, sobre personagens e questões intrínsecas a essa identidade, descobriu que, em verdade, não possuía sangue aborígine. Para evitar as armadilhas de porcentagens sanguíneas e restrições temáticas, o melhor parece ser alinharmo-nos a King quando diz que se sente confortável em falar sobre uma literatura nativa sem tentar defini-la (Lutz, 1991: 108). O autor nativo será aquele que assim se identificar, aquele que apresentar em seu texto evidências dessa identificação.
Uma última questão é pertinente: o que é uma “literatura” indígena? É claro que as populações indígenas vêm se expressando de maneiras criativas e com qualidades estéticas desde o início dos tempos. Isso se revela nas canções, na oratória e no storytelling indígena. Já não é mais estranho falar de literaturas orais, oralitura e termos afins e, sabemos, muitas dessas produções indígenas mencionadas se encaixariam perfeitamente dentro do termo. No entanto, a proposta desta dissertação é estudar um ponto de hibridação, o momento em que as formas de expressão indígenas se encontraram com os conceitos ocidentais de literatura. É por isso que os textos escolhidos para o corpus são obras contemporâneas, escritas e com autores individualizados, dentro do conceito ocidental clássico de literatura. Isso não é de maneira alguma diminuir a importância das produções tradicionais coletivas, mas uma forma de manter o foco do trabalho.
Além disso, todos os autores de nosso corpus têm consciência de encontrarem-se em um entre-lugar, e afirmam que, embora o contato nem sempre seja fácil ou pacífico, não é mais possível ou desejável que se empreenda um retorno ao passado, reafirmando uma identidade de raiz. De acordo com os autores, como veremos, os povos indígenas americanos têm por característica uma abertura ao Outro a qual, através da busca de equilíbrio entre os aportes tradicional indígena e ocidental, resulta em uma identidade rizomática, marcada por uma eterna reconfiguração.
Com o interesse de investigar esse produto novo e fascinante, fruto das negociações transculturadoras que ocorrem já há mais de meio milênio, procuramos trabalhar com textos que explicitamente discordam de termos como "descoberta" e "Novo Mundo", apresentando leituras alternativas da História. Mas como delimitar um corpus tão grande, tendo em vista que, como dissemos, todos os autores da "literatura indígena" com que decidimos trabalhar são, em grande medida, frutos desse processo de hibridação?
No Brasil, a escolha foi pautada, em primeiro lugar, pela visibilidade atingida pelos autores, mas também pelo fato de estes serem alguns dos poucos autores indígenas brasileiros que se dirigem explicitamente a um público adulto. Trabalharemos com os textos Metade Cara, Metade Máscara e Todas as vezes que dissemos adeus, de, respectivamente, Eliane Potiguara e Kaká Werá Jecupé. Estes são, ao lado de Daniel Munduruku, os autores que alcançaram maior expressão em nosso país, trabalhando sempre com a identidade indígena e suas complexificações contemporâneas.
No contexto canadense, a escolha de apenas duas obras se fez extremamente difícil, visto que a quantidade de autores em circulação é muito maior, acumulando um volume impressionante de obras publicadas. Dentre os diversos critérios de escolha possíveis, optamos por trabalhar com os autores que receberam maior atenção de editoras, público e crítica. Essa instância tríplice levou à escolha de Thomas King (1943-) e Tomson Highway (1951-). O primeiro, por seu trabalho multidisciplinar que entrecruza constantemente fotografia, literatura, cinema e rádio, é inegavelmente o mais popular dos autores indígenas norte-americanos. Com um humor irônico e transgressor, King desfaz fronteiras, recolocando-as em um terreno instável e mutante.
Entre suas obras, escolhemos Green Grass, Running Water, romance que, a partir da reescritura de histórias bíblicas, questiona a história dos começos. A obra de Highway é também de extrema importância no contexto canadense, sendo não raro apresentada como iniciadora de um movimento literário indígena no país. Ao contrário dos Estados Unidos, onde há uma tradição forte de romances, o Canadá teve sua literatura indígena em foco a partir do conjunto de peças de Tomson Highway, as quais trazem ao primeiro plano a vida na reserva. Foi apenas em 1998 que o autor escreveu seu primeiro (e até o momento único) romance, Kiss of the Fur Queen. Para além da expressividade e significação do autor no histórico da Literatura Indígena Canadense, o romance nos pareceu de extrema valia para o presente estudo, visto que lida com o momento fulcral do encontro entre a tradição oral indígena e a escola católica em língua inglesa. Em seu romance, Highway toma como base a experiência vivida por ele e seu irmão René desde as residential schools até o momento de equilíbrio entre a tradição e o novo aporte cultural, em uma defesa da hibridação como meio de sobrevivência.
No Brasil, o caso é bastante diferente: os autores parecem ter adotado os termos índio e indígena com orgulho, talvez por não se fazerem confusos como o correspondente anglófono. Contudo, em uma tentativa de manter uma terminologia semelhante ao falar dos dois contextos, decidimos adotar os vocábulos indígena e nativo para falar dessas populações e literaturas. O termo índio é apenas utilizado quando explicitamente reivindicado pelos autores. No que diz respeito ao caráter genérico dos termos, sustentamos a escolha, pois parece-nos que, assim como nos termos "europeu", “branco” ou "eurocêntrico", essa generalização se faz funcional ao tratarmos de uma experiência, se não idêntica, comum. A fim de minimizar o problema, e em respeito às diferentes ascendências dos autores aqui trabalhados, destacaremos sempre a filiação/afiliação tribal de cada autor. Perguntado sobre sua identificação (ou não) com o rótulo de “escritor canadense”, em uma entrevista dada a Hartmut Lutz (Lutz, 1991: 89-95), Thomas King respondeu com uma
afirmação que evidencia a complexidade identitária de muitos desses autores:
“Há apenas um problema no sentido de que não sou originalmente do Canadá e de que os cherokees certamente não são uma tribo canadense. Agora, isso se torna um problema apenas se você reconhece a linha política em particular que corre entre o Canadá e os Estados Unidos, e se você concorda com as presunções que essa linha faz. Penso em mim como um autor nativo e um autor canadense. Duvido que pudesse me considerar um autor nativo canadense, simplesmente porque não sou de uma das tribos aqui de cima. Mas todos os meus contos, e o romance, e as antologias, e o livro crítico que co-editei foram publicados no Canadá, e todos têm a ver com material canadense. Eu não fiz nada de que se possa falar nos Estados Unidos. Então, sim, eu me considero um autor canadense, eu escrevo sobre as pradarias canadenses, eu não escrevo sobre Nova Iorque”.(Lutz, 1991: 107-8).
Na mesma entrevista, o autor fala sobre o rótulo de “escrita nativa”. Como vamos definir quem é nativo ou não? Há, no contexto das literaturas aborígines australianas, o caso célebre de Colin Johnson (Mudrooroo) que, após uma vida escrevendo como um aborígine, sobre personagens e questões intrínsecas a essa identidade, descobriu que, em verdade, não possuía sangue aborígine. Para evitar as armadilhas de porcentagens sanguíneas e restrições temáticas, o melhor parece ser alinharmo-nos a King quando diz que se sente confortável em falar sobre uma literatura nativa sem tentar defini-la (Lutz, 1991: 108). O autor nativo será aquele que assim se identificar, aquele que apresentar em seu texto evidências dessa identificação.
Uma última questão é pertinente: o que é uma “literatura” indígena? É claro que as populações indígenas vêm se expressando de maneiras criativas e com qualidades estéticas desde o início dos tempos. Isso se revela nas canções, na oratória e no storytelling indígena. Já não é mais estranho falar de literaturas orais, oralitura e termos afins e, sabemos, muitas dessas produções indígenas mencionadas se encaixariam perfeitamente dentro do termo. No entanto, a proposta desta dissertação é estudar um ponto de hibridação, o momento em que as formas de expressão indígenas se encontraram com os conceitos ocidentais de literatura. É por isso que os textos escolhidos para o corpus são obras contemporâneas, escritas e com autores individualizados, dentro do conceito ocidental clássico de literatura. Isso não é de maneira alguma diminuir a importância das produções tradicionais coletivas, mas uma forma de manter o foco do trabalho.
Além disso, todos os autores de nosso corpus têm consciência de encontrarem-se em um entre-lugar, e afirmam que, embora o contato nem sempre seja fácil ou pacífico, não é mais possível ou desejável que se empreenda um retorno ao passado, reafirmando uma identidade de raiz. De acordo com os autores, como veremos, os povos indígenas americanos têm por característica uma abertura ao Outro a qual, através da busca de equilíbrio entre os aportes tradicional indígena e ocidental, resulta em uma identidade rizomática, marcada por uma eterna reconfiguração.
Com o interesse de investigar esse produto novo e fascinante, fruto das negociações transculturadoras que ocorrem já há mais de meio milênio, procuramos trabalhar com textos que explicitamente discordam de termos como "descoberta" e "Novo Mundo", apresentando leituras alternativas da História. Mas como delimitar um corpus tão grande, tendo em vista que, como dissemos, todos os autores da "literatura indígena" com que decidimos trabalhar são, em grande medida, frutos desse processo de hibridação?
No Brasil, a escolha foi pautada, em primeiro lugar, pela visibilidade atingida pelos autores, mas também pelo fato de estes serem alguns dos poucos autores indígenas brasileiros que se dirigem explicitamente a um público adulto. Trabalharemos com os textos Metade Cara, Metade Máscara e Todas as vezes que dissemos adeus, de, respectivamente, Eliane Potiguara e Kaká Werá Jecupé. Estes são, ao lado de Daniel Munduruku, os autores que alcançaram maior expressão em nosso país, trabalhando sempre com a identidade indígena e suas complexificações contemporâneas.
No contexto canadense, a escolha de apenas duas obras se fez extremamente difícil, visto que a quantidade de autores em circulação é muito maior, acumulando um volume impressionante de obras publicadas. Dentre os diversos critérios de escolha possíveis, optamos por trabalhar com os autores que receberam maior atenção de editoras, público e crítica. Essa instância tríplice levou à escolha de Thomas King (1943-) e Tomson Highway (1951-). O primeiro, por seu trabalho multidisciplinar que entrecruza constantemente fotografia, literatura, cinema e rádio, é inegavelmente o mais popular dos autores indígenas norte-americanos. Com um humor irônico e transgressor, King desfaz fronteiras, recolocando-as em um terreno instável e mutante.
Entre suas obras, escolhemos Green Grass, Running Water, romance que, a partir da reescritura de histórias bíblicas, questiona a história dos começos. A obra de Highway é também de extrema importância no contexto canadense, sendo não raro apresentada como iniciadora de um movimento literário indígena no país. Ao contrário dos Estados Unidos, onde há uma tradição forte de romances, o Canadá teve sua literatura indígena em foco a partir do conjunto de peças de Tomson Highway, as quais trazem ao primeiro plano a vida na reserva. Foi apenas em 1998 que o autor escreveu seu primeiro (e até o momento único) romance, Kiss of the Fur Queen. Para além da expressividade e significação do autor no histórico da Literatura Indígena Canadense, o romance nos pareceu de extrema valia para o presente estudo, visto que lida com o momento fulcral do encontro entre a tradição oral indígena e a escola católica em língua inglesa. Em seu romance, Highway toma como base a experiência vivida por ele e seu irmão René desde as residential schools até o momento de equilíbrio entre a tradição e o novo aporte cultural, em uma defesa da hibridação como meio de sobrevivência.
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continua...
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Fontes:
Flávia Carpes Westphalen. Survivance: A Sobrevivência nas Literaturas Indígenas do Canadá e do Brasil. (Dissertação de Mestrado em Literatura Comparada). Porto Alegre: Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2007.
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