sexta-feira, 14 de outubro de 2011

Carmen Lucia Tindó Ribeiro Secco (Entre Fábulas e Alegorias: Diálogos Transoceânicos de Monica Fares de Menezes)


Entre Fábulas e Alegorias: Ensaios sobre literaturas infanto-juvenis. Diálogos Transoceânicos Mônica Fares de Menezes

Na nota de abertura a autora defende que: «Uma verdade manifesta-se em uma narrativa. Uma narrativa desemboca em uma sabedoria. O narrador é alguém que sabe dar um conselho. E antigamente foi uma coisa muito importante saber aconselhar. E mais ainda talvez, deixar-se aconselhar era algo de bom e saudável. (Walter Benjamin)

1 Introdução: Confim, Confins

A estudante da pós-graduação em literatura, Mônica Menezes, começa da seguinte forma a sua introdução: «Venho de um lugar onde o imaginário é tão forte que chega a explicar, além de outros fenómenos, a origem da própria região: Amazônia é palavra que, (...), se origina de amazonas (etimologicamente, a = sem, mazon = seio). As mulheres guerreiras, segundo a lenda, extraem o seio direito para mais habilmente manipularem o arco e a flecha. Belém do Pará, primeiro ponto de fortificação portuguesa na Amazônia brasileira, (...). Bruno de Menezes, poeta introdutor do modernismo na Amazônia, em 1924, reconta o facto, em "Belém e o seu poema":

«Já se sabe da empreitada do luso Castelo Branco/ Fazendo a indiada e a soldadesca levantarem o Forte do Presépio/ Com licença da Boiúna/ Devido à força da enchente e à correnteza das marés… / (MENEZES, 1993, P. 520)».

Com este rodeio, Mônica Menezes pretende dizer que «provavelmente, há muito em comum entre o universo das narrativas orais populares Amazônicas e o das estórias relatadas em Sunguilando: contos tradicionais angolanos. A senhora Peixarrão dos Confins do Espadarte, por exemplo, tem algo que assemelha à Iara amazónia, aquela que enfeitiça os homens e os leva para o fundo dos rios. É bem provável que, ao pesquisar o imenso caudal de narrativas orais amazónicas, encontremos várias que se aproximem às recolhidas por Óscar Ribas, no livro supracitado».

A autora considera que «as narrativas de tradição oral tratam de importantes registos da memória de uma sociedade. Passam de boca em boca, perpetuando-se de geração em geração. Conservam-se pela memória. Asseguram a sobrevivência do passado e garantem a certeza do presente e do futuro».

Segundo Mônica Menezes, «de acordo com Lourenço Rosário, as narrativas “são o reservatório dos valores culturais de uma comunidade com raízes e personalidades regionais, muitas vezes perdidas na amálgama da modernidade” (ROSÁRIO, 1989, p. 47). Advêm da vivência do contador, numa tentativa de que a experiência seja incorporada pela colectividade como valor e conhecimento capazes de influenciar e modificar a comunidade».

Mônica M. teoriza que: «Ainda segundo Rosário (1989), as narrativas de tradição oral africanas veiculam “regras e as interdições que determinam o bom funcionamento da comunidade e previnem as transgressões” (p. 47). As narrativas orais que integram o imaginário amazónico também apontam para uma preocupação com o “bom funcionamento da comunidade”, quando não prevenindo transgressões, justificando-as através dos elementos da narração».

A ensaísta, na vertente comprovativa, traz à luz o «caso da famosa lenda do boto, “uma lenda amazónica que conta a história de um pequeno delfim encantado, capaz de se transformar em um belo rapaz e que, sob a forma humana, seduz de maneira irresistível as mulheres (…)” (SIMÕES, 1999, P. 125). O boto é uma espécie de “Dom Juan das águas”, sedutor das jovens virgens e mulheres casadas. A narrativa, desta forma, aplaca a ira dos maridos, dos pais e namorados traídos. Assim, justificam-se as traições de mulheres (…). A narrativa, portanto, denota a preocupação do narrador com a manutenção da ordem social do grupo. “Entendemos que na Amazónia paraerense a sobrenaturalidade é naturalizada, isto é, a cultura busca a segurança na natureza, ou, pelo menos, em explicações que nos suscitam acontecimentos que não podem ser explicados pelas leis do mundo familiar” (SIMÕES, 1999, p. 114).

A autora explica que «na concepção de Tzvetan Todorov (1975), “a função do sobrenatural é subtrair o texto à acção da lei e com isso mesmo transgredi-la” (p.168). Tal posicionamento reafirma que as narrativas orais em que o sobrenatural aparece revelam o permitido e não permitido de determinada sociedade, como se observa no contexto de Lourenço Rosário.

Para Mônica, «provavelmente há muita coisa em comum entre o universo das narrativas orais populares amazónicas e os contos tradicionais angolanos. (…), onde ainda persiste o modo de vida ribeirinho, que abre espaço para a ocorrência do imaginário oral. (…), nas localidades afastadas dos centros urbanos. Ali o respeito aos mais velhos, detentores de sabedoria e por isso narradores privilegiados, proporciona um interesse culto ao aprendizado oral, em volta das fogueiras, ritual que propicia às gerações mais novas apreenderem valores com as mais experientes.

A ensaísta informa que escolheu como objecto de ensaio, «o conto “O Peixarrão”, recolhido por Óscar Ribas, e a amazónica narrativa da “Iara”», e pretende desse modo, «comparar, através da literatura oral, os “sotaques” africano e amazónico.

Sobre o conto intitulado «Peixarrão», a autora explica que «O enredo trata de uma família de pescadores, que vive privações, até o momento em que a sereia Peixarrão propõe a João Pobreza uma estranha troca. Seu filho casaria com a filha dela, e a família “Pobreza” passaria a viver na abastança. Tudo seria resolvido se a mulher do pescador Maria, não se opusesse à estranha e mágica solução para o problema por eles vivido. Percebendo então a situação, a sereia arruma um estratagema para livrar-se de D. Maria, que, grávida, deseja comer um bagre falante. Após ingerir o estranho peixe Maria falece. É como se aí se encerrasse a primeira parte da narrativa. Prossegue Mônica Menezes: «a continuação faz confrontar a força do maravilhoso – a sereia – com o político – o todo-poderoso rei de Portugal. A partir de então a narrativa ficcional passa a aludir à situação colonial de Angola, dominada por Portugal. A sereia e o soberano português disputam o João Pobreza, filho de João e Maria, que se caracteriza como destemido herói. João filho deve casar-se com uma das princesas, a do mar ou da terra. A tensão entre os poderes humanos e maravilhoso se desenrola, como se estivessem num mesmo patamar.

A autora considera que: «O conto insere-se certamente na melhor tradição oral de Angola. Entretanto, ao ser “traduzido” para a língua escrita, pareceu-me formal demais e com isso comprometeu a performance oral do texto. (…) o que compromete, penso eu, a fluência – e por que não dizer? – a espontaneidade do enunciado» e mais adianta: «Examinemos uma passagem do texto narrado por Rita Manuel, uma “sexagenária de Luanda”. O exemplo ilustra o tom artificial da escrita de Óscar Ribas, que recolheu e reescreveu a referida narrativa (falo em reescrita, porque tenho certeza de que “quem conta um conto aumenta um ponto”):

«…E não o como por quê? Agora, como-o em pirão; logo:/ Como-o assado; amanhã, como-o em funji. Sozinha, / há uns dias! / Encheu o prato. Ao mastigá-lo, o peixe cantou:/ Não me mastigues, canoeiro! / (RIBAS, 1989, P. 32)». M. M. observa que o reiterado uso da ênclise comprova o que já foi dito anteriormente: «É como se a escrita traísse a espontaneidade da fala.»

“O Peixarrão” é identificado como uma fábula, pois se caracteriza como: «Narrativa curta, não raro identificada com o apólogo e a parábola, em razão da moral, implícita ou explícita, que deve encerrar, e de sua estrutura dramática. No geral é protagonizada por animais irracionais, cujo comportamento, preservando as características próprias, deixa transparecer uma alusão, via de regra, satírica ou pedagógica, aos seres humanos (MOISÉS, p. 226)».

A ensaísta Mônica M. considera que «a classificação de Moisés, se aplica ao conto em questão, reitera a marca de efabulação do “texto oral” angolano».

Mônica M. faz um breve esclarecimento a respeito da lenda de Iara, «a lenda da Iara (ou Uiara) faz parte do rico imaginário ribeirinho da Amazônia – onde os rios são fonte de vida e morte, daí Ruy Barata, poeta ligado à música popular, escrever “esse rio é minha rua/minha e tua mururé/piso no peito da lua, deito no chão da maré” (BARATA, s/d)», «Mas voltemos agora à Iara, a “deusa das águas”, que vive às margens dos rios e igarapés, seduzindo os caboclos para arrastá-los ao fundo das águas».

A autora afirma que «segundo João de Jesus Paes Loureiro, a Iara – mãe-d’água – vive no fundo dos rios. Ela atrai os moços e os fascina, (…). Para seduzi-los faz promessa de todos os géneros. Para aumentar o estado de encantamento canta belas melodias com voz maviosa. Convida-os para irem com ela ao fundo das águas do rio – onde se localiza a encantaria – sob a promessa de uma eterna bem-aventurança em seu palácio, onde a vida é uma felicidade sem fim. Quem tiver visto seu rosto uma única vez nunca poderá esquecê-lo. (…), acabará por se atrair no rio em sua busca, levado pelo desejo ardoroso de juntar seu corpo ao dela (LOUREIRO, 2007). E mais adiante que «pode-se, de imediato, fazerem dialogar as narrativas, que têm suas origens ligadas ao imaginário popular. Assim verifiquemos algumas aproximações entre a senhora Peixarrão dos Confins do Espadarte e a Iara amazónica».

A ensaísta Mônica considera ainda que «em ambas narrativas, as sereias, amazónica e angolana, oferecem riquezas e promessas de bem-aventurança que acabam seduzindo. Porém, nos dois casos, os homens são atraídos por suas ambições. João Pobrezinho da Pobreza perde a mulher, morta de forma estranha (de suas costas sai um bagre de tamanho natural). Maria morre, devido a um estratagema do Peixarrão para eliminá-la, impedindo que atrapalhasse seus planos e o pacto feito com João. Depois perde o filho, levado pela sereia angolana, cumprindo o trato com ela acertado. Tal qual a Iara que leva os homens para o fundo das águas, Peixarrão submerge com João Filho: O senhor João ficou apreensivo. O seu filho não morreria mesmo debaixo d’água? Mas acabou sossegado. Quem vai com a sereia, vivo continua. Na manhã seguinte o senhor João fez-se acompanhar do filho. Cada qual num extremo da canoa. O pai arremessou a sua tarrafa. O filho imita-o. Rápido a senhora Peixarrão submerge-o. Nem um grito (ROSÁRIO, 1989, P. 34)».

Mônica Menezes conclui: «está selada a desgraça dos homens, tanto africanos como amazónicos, que se deixam enfeitiçar pelas sereias e promessas de luxúria e riquezas por elas oferecidas. O elemento mágico que interfere no futuro das personagens, nos dois contos, condiciona uma espécie de modo de vida em sociedades, nas quais ainda persistem as formas singulares de viver e “ler” o mundo».

Fonte:
Críticas e ensaios
http://www.uea-angola.org/artigo.cfm?ID=969

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