sábado, 8 de outubro de 2011

Monteiro Lobato (O Presidente Negro) XII – A Simbiose Desmascarada


— Mais felina, sim, e muito mais pitoresca, prosseguiu miss Jane. Não imagina o senhor Ayrton como o cérebro da mulher é rico de estratagemas, e com que ardor conduzem elas uma campanha politica. Vinha daí que o proximo pleito se desenhava renhidíssimo. Ia a republica dos Estados Unidos eleger dentro de poucos dias o seu 88.° presidente, proporcionando assim a um mundo perturbado por sucessivas mudanças de forma politica um exemplo de fixidez na forma inicial só comparável ao passado monárquico da Inglaterra. Os velhos partidos Democrático e Republicano haviam-se fundido num forte bloco sob a denominação de Partido Masculino. Mesmo assim não se via seguro da vitoria, porque o partido contrario, o Feminino, dispunha de maior numero de vozes. Estava pois em jogo o prestigio político do homem, batido pelo da mulher em todos os campos de atividade e a defender agora o seu ultimo reduto — a presidência da republica. Até então nenhuma mulher conseguira alcançar ao posto supremo, embora no pleito anterior miss Evelyn Astor houvesse perdido por insignificante minoria.

– Quem era essa bicha? Alguma chefa do partido feminino?

– Sim, uma chefa que insistia na sua candidatura, e agora com mais probabilidade de vitoria, visto como era possível que o grande líder negro se deixasse levar pela sedução dos seus argumentos e desse apoio ao Partido Feminino.
Do outro lado o senhor Kerlog, presidente em exercício e candidato á reeleição, só via possibilidade de êxito se obtivesse o concurso de Jim, como sucedera no pleito anterior.
As melhores estatísticas davam ao Partido Masculino 51 milhões de vozes, ao Partido Feminino 51 e meio e á Associação Negra, contados os votantes de ambos os sexos, 54 milhões. A próxima eleição dependeria pois exclusivamente da atitude do grande negro.

– Miss Evelyn Astor! exclamei. Lindo nome. Já me estou simpatizando por essa criatura, que talvez esteja no meu próprio calcanhar. Havia de ser linda, não?

– De fato, nessa criatura habilíssima, rica de todos os dotes da inteligência, da cultura e da maquiavélica sagacidade feminina, se juntava um elemento perturbador, novo no jogo político presidencial: a sua rara beleza fisica.

Embora, graças á vitoria da eugenia, fosse regra a beleza, em vez de exceção como hoje, mesmo assim a formosura de miss Evelyn Astor se destacava de modo obsedante. Ninguém a defrontava sem sentir-se envolvido por uma aura de harmonia transfeita em força de dominação.

Em todas as épocas as mulheres dotadas de beleza sempre dominaram, atrás dos tronos como favoritas, na sociedade como cortesãs, no lar como boas deusas humanas, mas sempre por intermédio do homem — o déspota, o amante, o marido, detentores em sua qualidade de machos de todas as prerrogativas sociais. No futuro a dominação da beleza feminina não se fará mais por intermédio do macho. Era da Harmonia, a beleza se tornará uma força pura, como pura expressão que é da harmonia.

Nesse ano de 2228 já a mulher vencera o seu estágio de inferioridade política e cultural, consequência menos duma pretensa inferioridade do cérebro, como dizia miss Elvin…

– Miss Elvin?

– Espere. Menos de uma pretensa inferioridade de cérebro do que de uma organização cerebral diversa da do homem e, portanto, inapta a produzir o mesmo rendimento quando submetida ao mesmo regime de educação. Miss Elvin... Como está assanhado o senhor Ayrton! Não se contentou com a mulher futura que já lhe dei, miss Astor, e quer outra?

Que ilusão a de miss Jane! Eu queria apenas, de todas as mulheres passadas, presentes e futuras, uma só — a que me falava naquele momento, tão alheia ás emoções borbulhantes em meu coração...

— Miss Elvin era a autoria de Simbiose Desmascarada, um livro que graças á alegria do estilo e ao fulgor dos argumentos vinha causando verdadeira reviravolta no publico. A ideia central de miss Elvin cifrava-se em que a mulher não constituía a fêmea natural do
homem, como a leoa o é do leão, a galinha do galo, a delfina do delfim. A fêmea natural do homem ele a repudiara em época recuadissima — e tudo levava a crer na extinção desse pobre animal. Repudiara-a e tomara para si, como os antigos romanos fizeram ás sabinas, a fêmea de um outro mamífero de vagas semelhanças
anatômicas com o Homo. Supunha miss Elvin que seriam anfíbios esses "sabinos" pre-historicos, assim romanamente despojados das suas fêmeas. E recreando a imaginação com um pouco de fantasia, chegou a descrever num segundo livro de igual sucesso o "mas
sacre dos sabinos" quando, do seio das ondas acudiram ás praias em defesa das raptadas metades. Vinha daí o caráter ondeante da mulher. "She was false as water", já o dissera Shakespeare.

— Que topete! exclamei. Pelo que vejo as mulheres do futuro não beneficiaram grandemente os miolos com o remédio da eugenia...

— O senhor Ayrton está um pouco passadista e corre muito depressa no Ford das suas conclusões, respondeu miss Jane com doce ironia. Nada há mais fecundo do que a ventilação das ideias aceitas, do que o abalo violento em certas bases mentais. Põe-nas á prova e
revelam-lhes alguma racha ou lacuna, se as há. Com o seu exagero, miss Glória Elvin não ressuscitou o sabino — mas quantas consequências indiretas não brotaram da sua revolta!

– Retiro o topete, miss Jane; continue.

– Pois o Homo suplantou o mamífero adverso e de posse da fêmea alheia veio através das idades tentando um equilíbrio sexual impossível. A falsa fêmea, o ser estranho ligado a ele por simbiose, sempre resistiu ao seu domínio, apesar de um processo de domesticação multi-milenar. Todas as formas de vida em comum, todos os modos de associação sexual existentes na natureza foram tentados sem sucesso. O harém muçulmano, a poligamia, a monogamia, a bigamia, a poliandria, o hetairismo, nada produzia bons resultados; e a mulher, por voz unânime dos poetas e pensadores, se viu classificada como um ser incompreensível.

Miss Elvin desvendou o mistério. Não era um ser incompreensível. Era apenas diferente.

Mais fraca em força física e, portanto, escravizavel, a sabina defendeu-se da tirania do raptor com o manejo de uma arma perigosíssima, a dissimulação — reflexo ainda do caráter ondeante do seu elemento primitivo, o mar. Quando no mundo surgiu o feminismo, toda a gente supôs que a solução do problema da mulher estava em nivela-la ao homem pela cultura e igualdade de direitos. Erro cascudo, demonstrou miss Elvin. A cultura como a criara o homem não se adaptava ao cérebro da mulher, de funcionamento especialíssimo e sempre influenciado por certas glândulas misteriosas. Falhou por isso o feminismo. De toda a sua agitação só veio a resultar uma coisa; a feminista, a odiosa mulher-homem, que pensava com ideais de homem, usava colarinhos de homem, conseguindo com isso apenas…

– ...não ser homem nem mulher, conclui eu, lembrando-me duma sufragista do meu conhecimento.

– Perfeitamente. Os estudos de miss Elvin modificaram por completo os termos de equação sexual. Basta de simbiose, dizia ela; basta de vida em comum em troca de serviços recíprocos. A mulher passa doravante a viver vida autônoma; e se ainda permanece ao lado do "gorila" no antigo status-quo sexual, será a titulo provisório apenas e em vista unicamente dos interesses proliferantes das especies respectivas. Porque miss Elvin não perdia a esperança de promover o descobrimento e a ressurreição do sabino pre-historico…

– Irra! exclamei com uma pontinha de despeito. Está aí: a coisa única que o homem jamais previu: o surto de uma espécie rival!

– De fato. Os arrojos de miss Elvin punham calafrios na espinha do Homo. Ela tirava todas as consequências lógicas da sua teoria, chegando ao extremo de pregar guerra de morte contra o "insolente raptor".

Miss Astor era elvinista e, pois, a sua candidatura á presidência inquietava de modo duplo o Partido Masculino. Sua vitoria coroaria o movimento feminino com a única sanção que lhe faltava, a do poder; seria, se não o crepúsculo do domínio dos homens (já de bases corroídas pelas vitorias parciais da mulher), pelo menos uma humilhante diminuição.

O problema americano se complicava assim da mais imprevista maneira. Alem do aspecto étnico — o inevitável choque da raça branca com a negra, — surgira o aspecto, como direi? especial, isto é, o conflito das duas especies de mamíferos — Homo e Sabinas — cuja simbiose fôra denunciada.

O lider masculino, o Presidente Kerlog, tinha esperanças de um acordo com Jim Roy. Jim era homem e havia de inclinar-se para a facção do seu sexo. Com miss Evelyn Astor é que não enxergava possibilidades de entendimento. Tivera com a formosa antagonista uma conferência, mas a sua impressão, resumida em poucas palavras na presença do ministerio, fôra inquietante.

– "Não nos entendemos, declarou ele. As palavras que nós homens usamos têm na boca de miss Astor um sentido diverso. Em certo ponto tive a sensação de que estávamos eu a falar inglês e ela a responder-me em hebraico, lingua que positivamente desconheço. Estou quasi convencido de que nasceu nas mulheres alguma glândula nova...”

– "Ou perderam alguma glândula velha", rosnou da sua poltrona Berald Shaw, o pachorrento ministro da Equidade.
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continua… XIII – Política de 2228

Fonte:
Monteiro Lobato. O Presidente Negro. Editora Brasiliense, 1979.

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