sexta-feira, 2 de dezembro de 2011

Emiliano Perneta (Ilusão) Parte 17


PUNIÇÃO DO HEREGE

Ao Leite Junior

Foi no ano de mil setecentos e treze,
No meio do esplendor de vasta diocese.
Perante o tribunal da inquisição feroz,
Ninguém ousava erguer os olhos nem a voz.
Era tal o terror, então, que só de vê-lo,
O sangue dos heróis se transformava em gelo.
Tempos nefandos de catástrofe moral,
Dos holocaustos e do veneno e punhal.
A vileza, a traição, a vergonha e o crime,
Tudo para servir a igreja era sublime.
Para a louvar, enfim, para a satisfazer,
Toda abominação era um grande prazer,
Um prazer ideal, um prazer infinito,
Insaciável, mau, diabólico, esquisito...

Ora, morava ali, quase à beira do mar,
Um moço, um fazedor de castelos no ar...
Tinha uma velha mãe e uma jovem esposa,
Que era como se fosse o aroma de uma rosa.
E viviam os três numa tal união
Como três almas a bater num coração!
Elas, metidas em lucubrações tamanhas,
Dia e noite a tecer como duas aranhas,
Teciam com amor, com singeleza e com
Arte, o linho ideal, o linho puro e bom.
Ele, sempre febril, mas de aspecto risonho,
No mármore do verso ia gravando o sonho...
Mas com tal limpidez e com uma graça tal
Como um raio de sol que ferisse um cristal.
E por isso também lhe corriam as horas,
Por esse vasto azul, magníficas, sonoras,
Bem como um colar de pérolas a cair,
Pérolas do Ceilão e pérolas d’Ofir...

O tribunal, porém, da inquisição não via
Com bons olhos crescer essa águia que subia...
Causava-lhe temor, assombrações até,
Que ele tivesse gênio e não tivesse fé.
Mas a imaginação dos filhos de Loyola,
Arrastando o bordão, de burel e sacola,
Para fazer o mal terrível e sutil,
É mais fértil talvez e maior que o Brasil.
E pois, quando passava em certo dia pela
Rua a jovem mulher formosíssima, ao vê-la,
Um abade a chamou pelo nome. Ela, assim
Interpelada, olhou: “Que desejais de mim?”
O abade era um senhor poderoso, que tinha
A ventura de ser o amante da rainha.
Tinha de Don Juan a maneira cortês,
O olhar, o gesto, a voz, o manto e a languidez.
Com o pulso de Sansão e a garganta de Baco,
Era gordo e taful, insolente e velhaco.
Tinha essas frases vãs, que sempre uma mulher
Acolhe com desdém, mas ouve com prazer.
Quando o sangrava o amor, um ferrão que aguilhoa,
Era o abade Manuel a luxúria em pessoa.
Mas, sem medo de errar, também direi, que então
Era o esteio da igreja e da religião.
“Que desejais de mim, senhor abade?” – “Filha,
O nosso encontro aqui foi uma maravilha.
Eras a ovelha ruim, que ia se desgarrar,
E eu fui, por bem dizer, teu anjo tutelar.
Pude agarrar-te, por um fio de cabelo,
Que por sinal é de um louro acendrado e belo...
Intervenção talvez daquele que nos céus
Tudo vê, minha flor. Foi o dedo de Deus.
Hoje, pela manhã, relendo teu marido,
Eu comigo pensei: eis um homem perdido!
Simbólico, através do símbolo, porém,
Ele diz o que quer, e à cabeça lhe vem.
É o inimigo, pois, mais duro e mais violento
Que investe contra nós, porque ele tem talento.
Mas é um doido também, um pobre doido, que
Não sabe contra quem está lutando, crê...
Tenho pena de ti, mas uma enorme pena,
Tu não deves seguir esse maluco, Helena.
Fui eu quem te benzeu na pia batismal,
E os santos óleos pôs e a pedrinha de sal...
Contra aquele que o mundo e as coisas todas rege
Esse doido te quer arrastar. É um herege.
Vamos, foge do mal, foge da tentação,
Entra naquela igreja e faze a tua oração. –”
A moça, erguendo o olhar, límpido como a estrela,
Feriu o abade assim, nervosamente bela:
“Se meu marido é herege eu não o sei, porém
Posso afirmar, senhor, que ele é um homem de bem;
Que é incapaz de fazer o que fazeis agora,
Encontrando na rua uma pobre senhora...
Nunca me proibiu de ir à igreja, bem sei,
Mas onde ele não for, eu também não irei.”
E inclinando de leve a formosa cabeça,
No seu passinho curto ela seguiu depressa.
Findava a luz do sol, como uma guerra em paz,
Toda vestida assim de um roxo de lilás.
Quando Helena chegou à casa, disse tudo.
O marido cingiu a blusa de veludo,
A espada; a mãe, porém, interveio: que não,
Que não fizesse tal, não havia razão,
Quem o dissera foi aquele doce guia:
Não havia razão... É porque não havia!
Ele, cuja cerviz ninguém ousou curvar,
De sua mãe bastava o mais simples olhar...
No outro dia, porém, quase ao romper da aurora,
Vieram-no chamar: que fosse sem demora...
Sem saberem por que, despedindo-se os três,
Choraram, como se fosse a última vez.

Ele foi posto, sem piedade nem mágoa,
Dentro de calabouço escuro, a pão e água.
O cabelo cortado à escovinha e os pés
Algemados, assim como os pobres galés...

Mas, um dia, através daquela estreita grade,
O perfil lobrigou asqueroso do abade,
Que lhe disse: “Tu és de uma injustiça atroz,
De uma injustiça vil para com todos nós.
Embora penses tu e a mocidade clame
Que sou mau e traidor e rancoroso e infame,
No fundo sou cristão e sou filho de Deus:
Sei perdoar, não sou como vocês, ateus!
Todo perdão, porém, somente frutifica
Quando há luz e calor e a natureza é rica.
Assim, ó meu irmão, sobretudo é mister
Que haja arrependimento em ti e tua mulher...
Que ambos saiam do mal criminoso e tamanho
Como as ovelhas que tornam ao seu rebanho.
Foi pela pena que te perdeste, pois é
Com a pena que farás a profissão de fé...
Para traçá-los já com brilho esses poemas,
Depressa mandarei arrancar-te as algemas...
Mas teu crime maior, tua condenação
Sobretudo provém dessa irreligião,
Que tu levaste ao lar, ao coração da esposa,
Que não tem mais amor nem fé religiosa...
Trêmulo de remorso ante o teu Criador,
Confessa o teu orgulho e abate o teu furor.
E antes que desça, pois, como um fogo que arde,
A ira do Senhor, que desce cedo ou tarde,
Possas remediar esse pecado vil,
Insidioso, mau, cativante e sutil,
Fazendo que essa flor, cuja doçura alveja,
Torne como um cordeiro ao seio bom da igreja:
Que chorando de dor, de vergonha e pesar,
Venha hoje mesmo aqui para se confessar.
Quero vê-la tremer, quero ter esse gozo,
Aos pés daquele que é pai todo poderoso!”
E calou-se, entreolhando o prisioneiro... Em vão...
Este a rugir de dor só respondeu-lhe: cão!

Mas dessa hora em diante, ó céu piedoso e justo,
Transformou-se a masmorra em leito de Procusto,
Em dilacerações bárbaras de punhais,
Carnificina atroz, ugolina e secreta,
Mais aguda do que se fosse uma lanceta...
Para lhe mitigar a sede mais cruel,
Faziam-no sorver taças cheias de fel.
Entre sussurros e místicos padrenossos,
Trituravam-lhe a carne e quebravam-lhe os ossos...
De tal modo que em breve esse pobre infeliz
Não foi menos nem mais do que uma cicatriz,
E nem menos nem mais do que um triste esqueleto,
De longas mãos febris e de olhar inquieto...

Vendo o verdugo, enfim, numa dessas manhãs,
Que as torturas brutais não tinham sido vãs;
Vendo que finalmente a luz dessa candeia,
Sob o vento feral da morte bruxuleia,
Como um requinte mau, jesuítico, feroz,
Alçando o olhar, erguendo as mãos, erguendo a voz,
Ele fala do céu, triunfalmente belo,
Lembra que a vida é um sonho, e a morte, um pesadelo;
E antes que de uma vez se apagasse essa luz,
Deu-lhe para beijar o corpo de Jesus.

O moribundo olhou o pálido Rabino,
Esquelético, nu, macerado e divino:
“Sei que foste, Jesus, uma espada em favor
Da justiça, do bem, da luz e do amor;
Hoje, porém, estás do lado do carrasco,
Dos que me fazem mal, dos que me causam asco:
Não te posso querer, sincero como sou!”
E virando-lhe a face, em verdade expirou.
Fevereiro – 1909

Fonte:
Emiliano Perneta. Ilusão e outros poemas. Re-edição Virtual. Revista e atualizada por Ivan Justen Santana. Curitiba: 2011

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