domingo, 24 de julho de 2022

Cecília Meireles (Antologia Poética) = 8 =

CORPO NO MAR

Água densa do sonho, quem navega?
Contra as auroras, contra as baías:
barca imóvel, estrela cega.

Bate o vento na vela e não a arqueia.
— Não foi por mim!
Partiram-se as cordas, rodaram os mastros,
os remos entraram por dentro da areia...

Os remos torceram-se, e trançaram raízes.
— Inútil forçá-los — alastram-se, fogem
na sombra secreta de eternos países...

Mudou-se a vela em nuvem clara!
Choraram meus olhos, minhas mãos correram...
— Alto e longe! — Não foi por mim...

E apenas para
um corpo na barca vazia,
à mercê das metamorfoses,
olhos vertendo melancolia...

O vento sopra no coração.

Adeus a todos os meridianos!
Deito-me como num caixão.

Ah! sobrevive o mar no meu ouvido...
«Marinheiro! Marinheiro!»

(Ilhas...Pássaros...Portos... — nesse ruído,
— O mar...O mar!...O mar inteiro!...)

Mas é tempo perdido!
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DESCRIÇÃO

Há uma água clara que cai sobre pedras escuras
e que, só pelo som, deixa ver como é fria.

Há uma noite por onde passam grandes estrelas puras.
Há um pensamento esperando que se forme uma alegria.

Há um gesto acorrentado e uma voz sem coragem,
e um amor que não sabe onde é que anda o seu dia.

E a água cai, refletindo estrelas, céu, folhagem...
Cai para sempre!

E duas mãos nela mergulham com tristeza,
deixando um esplendor sobre a sua passagem.

(Porque existe um esplendor e uma inútil beleza
nessas mãos que desenham dentro da água sua viagem
para fora da natureza,

onde não chegará nunca esta água imprecisa,
que nasce e desliza, que nasce e desliza...)
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DIÁLOGO

Minhas palavras são a metade de um diálogo obscuro
continuado através de séculos impossíveis.

Agora compreendo o sentido e a ressonância
que também trazes de tão longe em tua voz.

Nossas perguntas e respostas se reconhecem
como os olhos dentro dos espelhos. Olhos que choraram.

Conversamos dos dois extremos da noite,
como de praias opostas. Mas com uma voz que não se importa...

E um mar de estrelas se balança entre o meu pensamento e o teu.
Mas um mar sem viagens.
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ESTRELA

Quem viu aquele que se inclinou sobre palavras trêmulas,
de relevo partido e de contorno perturbado,
querendo achar lá dentro o rosto que dirige os sonhos,
para ver si era o seu que lhe tivessem arrancado?

Quem foi que o viu passar com sues ímãs insones,
buscando o polo que girava sempre no vento?
— Seus olhos iam nos pés, destruindo todas as raízes líricas,
e em suas mãos sangrava o pensamento.

E era o seu rosto, sim, que estava entre versos andróginos,
preso em círculos de ar, sobre um instante de festa!
Boca fechada sob flores venenosas,
e uma estrela de cinza na testa.

Bem que ele quis chamar pelo seu nome em voz muito alta,
— mas o desejo não foi além do seu pescoço.
E ficou diante de sua cabeça, estruturando-se
como o frio dentro de um poço.

E não pode contar a ninguém seu fim quimérico.
A ninguém. Pois a língua que fora sua estava morta,
e ele era um prisioneiro entre paredes transparentes,
entre paredes transparentes, mas sem porta.

Disto ele soube. O que nunca entendeu, porém, e o que lhe amarra
o coração com ardentes cordas de desgosto
é aquela estrela de cinza — aquela estrela grande e plácida —
derramando sombra em seu rosto.
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NOTURNO

Volto a cabeça para a montanha
e abandono os pés para o mar.
— Coitado de quem está sozinho
e inventa sonhos com que sonhar!

Minhas tranças descem pela casa abaixo,
entram nas paredes, vão te procurar.
Envolvem teu corpo, beijam-te os ouvidos.
— Querido, querido, devias voltar.

Meus braços caminham pelas ruas quietas:
— caminho de rios, fluidez de luar... —
levam minhas mãos por todo o seu corpo:
— Querido, querido, devias voltar.

Partem os meus olhos, parte a minha boca,
Na noite deserta, ninguém vê passar,
pedaço a pedaço, minha vida inteira,
nem na tua casa me escutam chegar.

Meu quarto vazio só pensa que durmo...

Coitado de quem está sozinho
e assiste o seu próprio sonhar!

Fonte:
Cecília Meirelles. Viagem. Lisboa: Império, 1938.

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