CORPO NO MAR
Água densa do sonho, quem navega?
Contra as auroras, contra as baías:
barca imóvel, estrela cega.
Bate o vento na vela e não a arqueia.
— Não foi por mim!
Partiram-se as cordas, rodaram os mastros,
os remos entraram por dentro da areia...
Os remos torceram-se, e trançaram raízes.
— Inútil forçá-los — alastram-se, fogem
na sombra secreta de eternos países...
Mudou-se a vela em nuvem clara!
Choraram meus olhos, minhas mãos correram...
— Alto e longe! — Não foi por mim...
E apenas para
um corpo na barca vazia,
à mercê das metamorfoses,
olhos vertendo melancolia...
O vento sopra no coração.
Adeus a todos os meridianos!
Deito-me como num caixão.
Ah! sobrevive o mar no meu ouvido...
«Marinheiro! Marinheiro!»
(Ilhas...Pássaros...Portos... — nesse ruído,
— O mar...O mar!...O mar inteiro!...)
Mas é tempo perdido!
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =
DESCRIÇÃO
Há uma água clara que cai sobre pedras escuras
e que, só pelo som, deixa ver como é fria.
Há uma noite por onde passam grandes estrelas puras.
Há um pensamento esperando que se forme uma alegria.
Há um gesto acorrentado e uma voz sem coragem,
e um amor que não sabe onde é que anda o seu dia.
E a água cai, refletindo estrelas, céu, folhagem...
Cai para sempre!
E duas mãos nela mergulham com tristeza,
deixando um esplendor sobre a sua passagem.
(Porque existe um esplendor e uma inútil beleza
nessas mãos que desenham dentro da água sua viagem
para fora da natureza,
onde não chegará nunca esta água imprecisa,
que nasce e desliza, que nasce e desliza...)
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =
DIÁLOGO
Minhas palavras são a metade de um diálogo obscuro
continuado através de séculos impossíveis.
Agora compreendo o sentido e a ressonância
que também trazes de tão longe em tua voz.
Nossas perguntas e respostas se reconhecem
como os olhos dentro dos espelhos. Olhos que choraram.
Conversamos dos dois extremos da noite,
como de praias opostas. Mas com uma voz que não se importa...
E um mar de estrelas se balança entre o meu pensamento e o teu.
Mas um mar sem viagens.
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ESTRELA
Quem viu aquele que se inclinou sobre palavras trêmulas,
de relevo partido e de contorno perturbado,
querendo achar lá dentro o rosto que dirige os sonhos,
para ver si era o seu que lhe tivessem arrancado?
Quem foi que o viu passar com sues ímãs insones,
buscando o polo que girava sempre no vento?
— Seus olhos iam nos pés, destruindo todas as raízes líricas,
e em suas mãos sangrava o pensamento.
E era o seu rosto, sim, que estava entre versos andróginos,
preso em círculos de ar, sobre um instante de festa!
Boca fechada sob flores venenosas,
e uma estrela de cinza na testa.
Bem que ele quis chamar pelo seu nome em voz muito alta,
— mas o desejo não foi além do seu pescoço.
E ficou diante de sua cabeça, estruturando-se
como o frio dentro de um poço.
E não pode contar a ninguém seu fim quimérico.
A ninguém. Pois a língua que fora sua estava morta,
e ele era um prisioneiro entre paredes transparentes,
entre paredes transparentes, mas sem porta.
Disto ele soube. O que nunca entendeu, porém, e o que lhe amarra
o coração com ardentes cordas de desgosto
é aquela estrela de cinza — aquela estrela grande e plácida —
derramando sombra em seu rosto.
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NOTURNO
Volto a cabeça para a montanha
e abandono os pés para o mar.
— Coitado de quem está sozinho
e inventa sonhos com que sonhar!
Minhas tranças descem pela casa abaixo,
entram nas paredes, vão te procurar.
Envolvem teu corpo, beijam-te os ouvidos.
— Querido, querido, devias voltar.
Meus braços caminham pelas ruas quietas:
— caminho de rios, fluidez de luar... —
levam minhas mãos por todo o seu corpo:
— Querido, querido, devias voltar.
Partem os meus olhos, parte a minha boca,
Na noite deserta, ninguém vê passar,
pedaço a pedaço, minha vida inteira,
nem na tua casa me escutam chegar.
Meu quarto vazio só pensa que durmo...
Coitado de quem está sozinho
e assiste o seu próprio sonhar!
Água densa do sonho, quem navega?
Contra as auroras, contra as baías:
barca imóvel, estrela cega.
Bate o vento na vela e não a arqueia.
— Não foi por mim!
Partiram-se as cordas, rodaram os mastros,
os remos entraram por dentro da areia...
Os remos torceram-se, e trançaram raízes.
— Inútil forçá-los — alastram-se, fogem
na sombra secreta de eternos países...
Mudou-se a vela em nuvem clara!
Choraram meus olhos, minhas mãos correram...
— Alto e longe! — Não foi por mim...
E apenas para
um corpo na barca vazia,
à mercê das metamorfoses,
olhos vertendo melancolia...
O vento sopra no coração.
Adeus a todos os meridianos!
Deito-me como num caixão.
Ah! sobrevive o mar no meu ouvido...
«Marinheiro! Marinheiro!»
(Ilhas...Pássaros...Portos... — nesse ruído,
— O mar...O mar!...O mar inteiro!...)
Mas é tempo perdido!
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DESCRIÇÃO
Há uma água clara que cai sobre pedras escuras
e que, só pelo som, deixa ver como é fria.
Há uma noite por onde passam grandes estrelas puras.
Há um pensamento esperando que se forme uma alegria.
Há um gesto acorrentado e uma voz sem coragem,
e um amor que não sabe onde é que anda o seu dia.
E a água cai, refletindo estrelas, céu, folhagem...
Cai para sempre!
E duas mãos nela mergulham com tristeza,
deixando um esplendor sobre a sua passagem.
(Porque existe um esplendor e uma inútil beleza
nessas mãos que desenham dentro da água sua viagem
para fora da natureza,
onde não chegará nunca esta água imprecisa,
que nasce e desliza, que nasce e desliza...)
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DIÁLOGO
Minhas palavras são a metade de um diálogo obscuro
continuado através de séculos impossíveis.
Agora compreendo o sentido e a ressonância
que também trazes de tão longe em tua voz.
Nossas perguntas e respostas se reconhecem
como os olhos dentro dos espelhos. Olhos que choraram.
Conversamos dos dois extremos da noite,
como de praias opostas. Mas com uma voz que não se importa...
E um mar de estrelas se balança entre o meu pensamento e o teu.
Mas um mar sem viagens.
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ESTRELA
Quem viu aquele que se inclinou sobre palavras trêmulas,
de relevo partido e de contorno perturbado,
querendo achar lá dentro o rosto que dirige os sonhos,
para ver si era o seu que lhe tivessem arrancado?
Quem foi que o viu passar com sues ímãs insones,
buscando o polo que girava sempre no vento?
— Seus olhos iam nos pés, destruindo todas as raízes líricas,
e em suas mãos sangrava o pensamento.
E era o seu rosto, sim, que estava entre versos andróginos,
preso em círculos de ar, sobre um instante de festa!
Boca fechada sob flores venenosas,
e uma estrela de cinza na testa.
Bem que ele quis chamar pelo seu nome em voz muito alta,
— mas o desejo não foi além do seu pescoço.
E ficou diante de sua cabeça, estruturando-se
como o frio dentro de um poço.
E não pode contar a ninguém seu fim quimérico.
A ninguém. Pois a língua que fora sua estava morta,
e ele era um prisioneiro entre paredes transparentes,
entre paredes transparentes, mas sem porta.
Disto ele soube. O que nunca entendeu, porém, e o que lhe amarra
o coração com ardentes cordas de desgosto
é aquela estrela de cinza — aquela estrela grande e plácida —
derramando sombra em seu rosto.
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NOTURNO
Volto a cabeça para a montanha
e abandono os pés para o mar.
— Coitado de quem está sozinho
e inventa sonhos com que sonhar!
Minhas tranças descem pela casa abaixo,
entram nas paredes, vão te procurar.
Envolvem teu corpo, beijam-te os ouvidos.
— Querido, querido, devias voltar.
Meus braços caminham pelas ruas quietas:
— caminho de rios, fluidez de luar... —
levam minhas mãos por todo o seu corpo:
— Querido, querido, devias voltar.
Partem os meus olhos, parte a minha boca,
Na noite deserta, ninguém vê passar,
pedaço a pedaço, minha vida inteira,
nem na tua casa me escutam chegar.
Meu quarto vazio só pensa que durmo...
Coitado de quem está sozinho
e assiste o seu próprio sonhar!
Fonte:
Cecília Meirelles. Viagem. Lisboa: Império, 1938.
Cecília Meirelles. Viagem. Lisboa: Império, 1938.
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