segunda-feira, 11 de julho de 2022

Hans Christian Andersen (Cada coisa no seu lugar)


Isto aconteceu há mais de um século.

Na margem do grande lago, junto ao bosque, assentava uma velha mansão cercada de profundos fossos, todos cheios de juncos, junto à ponte um frondoso salgueiro curvava os galhos sobre os caniços.

Ouviu-se de repente, subindo a vereda que ali ia dar, um som de trompas de caça, e a pastorinha que cuidava dos patos apressou-se a apartá-los da ponte, antes que os espezinhasse o bando de caçadores, que se aproximavam a galope. Contudo, vindo à rédea solta, chegaram antes que ela tivesse escapado, e a pastorinha teve de escalar precipitadamente um pilar da ponte, para não ser atropelada.

Era quase uma menina, e de frágil compleição, o olhar, suave, traía-lhe a inteligência e a bondade. Mas o barão, esse não atentou em nada disso ao passar, a toda disparada, empurrou-a com o cabo do chicote, atirando-a de costas no fosso. E gritou:

- Cada coisa no seu lugar! O teu é no fosso!

Soltou então uma gargalhada, como se tivesse dito coisa muito espirituosa. Imitaram-no os companheiros, e às risadas estrepitosas de todo o bando, juntaram-se também os latidos dos perdigueiros.

A sorte foi que a pastorinha, ao cair, tivesse podido agarrar-se a um galho do salgueiro, ficando assim suspensa sobre a água e, quando o barão e sua comitiva desapareceram com a matilha, tratou ela de içar-se, conforme podia. mas o galho quebrou-se, e ela teria caído entre os juncais, se um pulso forte, vindo de cima da ponte, não a tivesse segurado. era um mascate que, tendo visto de alguma distancia o que acontecera, corria em seu auxílio.

- Cada coisa no seu lugar! - disse ele, arremedando o nobre barão, quando depunha a menina em terra enxuta.

Tentou então endireitar o galho quebrado, que não se separara totalmente do tronco, mas como não o conseguiu, convencido de que nem sempre se pode por cada coisa no seu lugar, fincou-o na terra fofa.

- Cresce aí, se puderes - disse ele - e produz boas flautas para aquela gente lá de cima...

É que, a seu ver, o barão e toda a sua malta mereciam boas varadas.

Contudo, atravessou a ponte e foi direito à casa nobre. Não se dirigiu, porém, à sala do banquete - era muito humilde para isso, é claro. Entrou pelos fundo, onde se encontrava a criadagem. Todos eles, homens e mulheres, remexeram nas bagatelas que carregava, regateando. E enquanto isso, vinham lá de cima a gritaria e os bramidos dos hóspedes, pois que aquelas vozes dissonantes não mereciam o nome de canções. Pelas janelas abertas ouviam-se as risadas estridentes e os latidos dos cães, nos copos e canecas espumavam o vinho e a cerveja. Os cães de estimação comiam com os donos, e não era raro ver um daqueles fidalgos segurar a longa orelha do seu favorito, limpar-lhe com ela o focinho e depois dar-lhe um beijo.

Querendo divertir-se à custa do mascate, ordenaram-lhe que subisse com a sua mercadoria. O vinho velava-lhes a razão, e a luz do entendimento, já de si escassa, extinguira-se por completo naqueles cérebros. Deitaram vinho em um pé de meia, e queriam que o mascate o bebesse a toda pressa. Achavam extraordinária graça na brincadeira, e riam a bom rir. Depois, já cansados, passaram a jogar - e campos, granjas e outros bens foram ganhos e perdidos no baralho.

- Cada coisa no seu lugar! - disse o mascate, afastando-se daquela casa de perdição. - O meu é na estrada livre. Não me sentia bem ali.

E a menina dos patos, vendo-o atravessar o pátio, enviou-lhe um adeus, sorridente.

Passaram-se os dias, passaram-se as semanas, e o galho de salgueiro, plantado pelo mascate à beira do fosso conservava-se fresco, e ia brotando. Compreendeu a menina que o ramo criara raízes, e ficou muito contente, porque  aquela nova arvorezinha era a sua árvore, segundo dizia. E, à medida que crescia a planta, ia a casa solarenga desmoronando, entre as libações, e a jogatina–  dois passatempos admiráveis, que levam depressa à ruína. E seis anos depois, o barão, de cajado e sacola, atravessava pela última vez a porta do castelo, adquirido havia pouco por um rico negociante.

Ora, o rico negociante outro não era senão aquele mascate, a quem ele pretendera obrigar a tomar vinho em um pé de meia, para divertimento seu e dos amigos. E como a honestidade e o trabalho levam à prosperidade, era agora o mascate o dono e senhor do baronato. E desde então foi terminantemente proibido o jogo de cartas em todo o feudo.

– É um péssimo divertimento. - dizia ele - Quando o demônio viu a Bíblia pela primeira vez, procurou uma arma para guerreá-la e inventou o baralho.

Um dia casou o novo proprietário. E com quem? Ora, com quem havia de ser? Com aquela pastorinha que cuidava dos patos, e que conservou sempre a mesma meiguice e bondade de coração. E era tão bela agora nos seus ativios elegantes como se tivesse nascido em um berço nobre. Como se processou tanta  mudança é uma história muito longa para contar agora, nestes tempos em que tudo corre com tanta precipitação, mas isso aconteceu - e é que importa ao caso.

Corria a vida agora tranquila e feliz na velha mansão: a mãe cuidava do governo da casa, enquanto o pai atendia os negócios, de dia em dia mais prósperos, como se a bênção do céu os protegesse. É que a prosperidade atrai a prosperidade.

O castelo foi restaurado e todo pintado de novo, limparam-se os fossos, plantaram-se árvores frutíferas. Naquela casa tudo tinha aspecto acolhedor e amigo. O assoalho brilhava como um espelho. Nas longas noites de inverno a dona da casa e suas aias trabalhavam, fiando na roca, instaladas na sala principal. Todos os domingos o conselheiro - porque o mascate, na idade madura, chegou a ser o representante da lei - lia a Bíblia em voz alta. Aos filhos, que foram nascendo, deu o casal a melhor educação, ainda que nem todos mostrassem a mesma inteligência, o que não é caso raro. Entretanto o salgueiro da estrada convertera-se em uma bela árvore: crescera sempre em liberdade, sem que nunca ninguém a podasse.

- É a árvore genealógica. - dizia o casal.

Era preciso, pois, honrá-la e tratá-la com respeito. E isso mesmo advertiam aos filhos, até aos que não tinham lá muito boa cabeça.

Transcorreu um século. Vemo-nos transportados à época. O lago transformou-se em um charco, e o velho solar quase desapareceu. Do fosso profundo só resta hoje uma vala de água estagnada, ao pé de uns restos de muros em ruínas, sobre as quais se eleva, magnífico, um belo salgueiro, a árvore genealógica, sobrevivendo a tudo, e demonstrando a que ponto pode chegar a beleza de um salgueiro, quando ninguém o mutila. É certo que o tronco está fendido da raíz à copa - é a honrosa cicatriz a recordar os combates que sustentou contra  as tempestades. Mas ainda se ergue altaneiro,  e em cada fenda, que o vento e as chuvas encherem de terra, crescem plantas e flores - condecorações da sua galhardia. Na copa, onde os ramos se entrelaçam, floresce todo um jardim de framboesas, que lhe dão um aspecto pitoresco, até uma pequena sorveira ali enraizou, elevando-se , esbelta e delicada, no meio da folhagem do salgueiro, que se mira na água pardacenta da vala, quando o vento impele o limo para um lado.

No topo do cerro próximo, cercado de bosques, onde se descortina esplêndida vista, ergue-se a nova casa solarenga. É vasta e magnifica, os vidros das janelas são tão transparente, que elas parecem sempre abertas. A ampla escadaria que conduz à entrada sobe à sombra de um verdadeiro caramanchão de flores e folhagens trepadeiras. A grama do prado é tão verde, que dá impressão de que alguém a lava todos os dias. E dentro, nos salões suntuosos, pendem das paredes quadros de grande valor. Sofás e poltronas, estofados de veludo e de seda, podem ser transportados facilmente de um lado para outro, sobre os rodízios. Mesas artisticamente esculpidas, cobertas de mármore polido, ostentem livros encadernados em marroquim, com os cantos dourados. Não há dúvida de que é uma residência de gente de gosto: é a morada do barão e de sua família.

Tudo ali se harmoniza: móveis e cores não destoam dos ornatos e alfaias. E o lema da família continua sendo: "Cada coisa no seu lugar!" E em obediência a esse princípio é que os quadros, que em outro tempo tinham sido a glória e a honra da casa, foram relegados para o corredor dos quartos da criadagem. Estavam já alterados pela pátina e carcomidos, principalmente os retratos, um dos quais representava um homem de peruca e casaca escarlate e outro, uma dama de cabeleira empoada, e segurava na mão uma rosa. Esses dois quadros tinham uma cercadura de ramos de salgueiro e estavam ambos crivados de orifícios, porque os filhos do barão se serviam deles para alvo de seus tiros - a despeito de serem os retratos do conselheiro e de sua esposa, dos quais descendia toda a família.

- Em rigor - dizia um dos barõezinhos - não pertencem à nossa estirpe: ele era mascate, e ela, pastora. Não se pareciam nem de longe  com o papai e a mamãe!

E como os retratos estavam muito estragados, cheios de manchas, trastes velhos, enfim, foram estragados, foram os bisavós confinados nos aposentos da criadagem: "Cada coisa no seu lugar!"

Era professor da família o filho do pastor. Passeava um dia com os discípulos, entre os quais se achava a irmã mais velha, e seguiam pelo caminho estreito que ia dar ao salgueiro. A mocinha ia colhendo flores silvestres. "Cada coisa no seu lugar!" E, de fato, o ramalhete nas suas mãos formava um belo conjunto, e não a impedia de ir escutando o que se dizia. Gostava muito de ouvir o professor falar sobre a natureza, ou sobre os personagens que desempenham nobilíssimos, e de uma alma que transbordava de amor por toda a obra do Criador.

Detiveram-se à sombra do salgueiro e, para satisfazer o menor dos irmãos, que queria uma flauta de salgueiro, o filho do pastor quebrou um ramo da árvore.

- Oh! Que fez o senhor! - exclamou a jovem - Enfim... Agora já não há remédio! Essa é  a nossa árvore lendária. Meus irmãos riem de mim, porque lhe tenho amor, mas isso pouco me importa. Ela possui a sua história, não sabe?

Contou-lhe então o que já sabemos a respeito do salgueiro, do velho solar, do mascate e da menina que cuidava dos patos; contou que se viram pela primeira vez à sombra daquela árvore; que vieram a ser os fundadores da família; e que essa, com andar do tempo, tinha sido empossada também no antigo baronato. E explicou afinal:

- Esses nossos antepassados não quiseram incorporar-se à nobreza, porque, aferrados ao seu lema - "Cada coisa no seu lugar!" não achavam acertado adquirir um título nobiliárquico à custa de dinheiro. Foi meu avô, que era filho daquele casal, o primeiro barão da família. Era justamente reputado homem erudito, e gozava do favor dos príncipes,  que o convidavam para as festas da Corte. Em casa, todos o membros da família lhe tributam muito respeito e carinho; contudo, não sei dizer por que sempre me vai o coração em busca do velho casal, filho do povo, e que me atrai... Que espírito de família, tão singelo e tão íntimo, devia presidir à vida do antigo solar patriarcal, onde a dona fiava na roca com as suas aias, enquanto o marido lia a Bíblia em voz alta!

- Era certamente gente boa e sensata. – disse o filho do pastor.

E passaram a conversar sobre nobre nobres e burgueses; e dir-se-ia que o moço não procedia da burguesia, quando falava do significado na nobreza.

- É grande felicidade pertencer a uma família distinta, possui uma espécie de acicate do sangue, que nos impele a praticar boas ações, e ter um nome de família que vale por um cartão, que nos abre as portas dos círculos mais elevados. A nobreza do sangue, unida à nobreza da alma, é a moeda de ouro que tem o cunho do valor próprio. E é um erro do nosso tempo afirmar, como fazem muitos escritores, que toda a nobreza é má e estúpida, e que quanto mais se desce na escala social, mais brilhantes são as virtudes. Não partilho dessa opinião. Encontra-se também nas classes elevadas muita bondade e rasgos de grande e comovente beleza. Ouvi de minha mãe alguns episódios e eu mesmo poderia apontar muitos caso semelhantes. Contou-me ela que estava um dia de visita em uma casa nobre, na cidade. Se bem me recordo, minha avó fora ama da senhora. Conversava ela na sala com o dono da casa, cavalheiro distintíssimo, quando viu ele que uma velhinha de muletas entrava no jardim. Ia receber a esmola de todos os domingos, mas andava com grande dificuldade, apoiada nas muletas. Ao avistá-la, exclamou o fidalgo:

"- Coitada da velinha... como lhe custa caminhar!"

E antes que minha mãe compreendesse o que se passava, já ele tinha saído da sala e descido a escada, a fim de poupar à pobre velha o penoso trabalho de subir, para receber o auxílio que lhe dava. É claro que o caso em si não passa de um pequeno exemplo, mas como o óbulo  da viúva pobre, de que fala a Escritura, vai ecoar no íntimo do coração, nas profundezas da natureza humana. Esses fatos é que os escritores deviam buscar e mostrar: porque são coisas que consolam, comovem e trazem reconciliação - principalmente nos dias de hoje. Mas quando um homem, só porque é de sangue azul, se empina em plena rua, como um cavalo árabe, para gritar  a nobreza de sua linhagem, e, ao  entrar em uma sala onde tenha estado uma pessoa humilde diz que ali andou gente da plebe, porque o ar cheira a povo - então é senão a máscara daquele tipo criado por Téspis, o pai da tragédia; e não passa de objeto de escárnio, que a sátira se encarrega de ridicularizar.

Fora talvez um tanto  estirado e sermão do filho do pastor. Mas a flauta estava pronta.

Na mansão senhorial celebrava-se uma grande festa, a que assistiam muitos convidados, dos arredores e da capital. Era grande o número de senhoras, trajadas com ou sem elegância, conforme o  gosto de cada uma. Os representantes do clero ficaram discretamente de lado, como se estivessem em  um velório, contudo, era bem uma festa, e festa alegre, apenas a alegria ainda não tinha começado.

Consistia uma das atrações em um grande concerto, e por isso o menino tinha pedido ao professor que lhe fizesse uma flauta. Mas, por mais que tentasse, não pode tirar dela som algum, nem tampouco seu pai o conseguiu, de modo que o instrumento de nada servia.

Não faltaram as músicas e canções, daquele gênero que deleita antes ao executante do que a quem o ouve. A não ser esse senão, tudo era encantador. Um dos presentes, um jovem fidalgo, virou-se para o professor e perguntou:

- O senhor também é artista, não? Toca flauta e fabrica-a por suas mãos... Que coisa genial! Merece ser exibido.

E, dizendo isto, ofereceu-lhe a flauta, aquela flauta feita da vara do salgueiro do fosso. E, em voz bem alta, proclamou que o professor ia regalá-los com um solo.

Compreendendo - o que era evidente - que queriam divertir-se à sua custa, negou-se o moço a tocar, embora pudesse desempenhar-se admiravelmente dessa incumbência. Tanto, porém, instaram e porfiaram com ele, que acabou por pegar na flauta.

Mas era uma flauta singular, aquela! Lançou primeiro um som estridente e confuso, como o silvo de uma locomotiva; depois soou ainda com mais força que a máquina, pois aquele silvo foi ecoar no jardim, no parque, nos bosques, e foi ouvindo a muitas milhas de distância. A nota ferida produziu um vendaval, que bramia incessantemente:

- Cada coisa no seu lugar!

E o dono da casa, o barão saiu voando, arrebatado pela ventania, e lá se foi, até parar na choça dos porcos; esse também voou, não para a sala de festas do castelo, onde não era o seu lugar, mas para a sala da criadagem, onde os fâmulos se pavoneavam, de meias de seda. Ficaram todos mudos de assombro, ao verem aquele intruso, que ousava assim sentar-se à sua mesa.

Na sala do banquete a filha do barão voou para o lugar de honra, à cabeceira da mesa, onde merecia sentar-se;  e a seu lado veio parar o filho do pastor: assim juntos pareciam um casal de noivos. Um conde velho, membro de uma das famílias de mais alta linhagem do país, permaneceu no seu lugar, imóvel: a flauta distribuía justiça. O jovem inconsequente que provocara todo aquele estrondo, e que era um fidalgo, fez , de cabeça para baixo, um voo até o curral, onde outro o acompanharam.

O som da flauta troou em toda a região, produzindo fenômenos estranhos. Os filhos de um rico banqueiro, que viajava em um carro puxado por duas parelhas, viram-se lançados fora da carruagem e não acharam lugar sequer na boleia. Dois granjeiros, ricos demais para a terra que possuíam, e que os tempos modernos tinham alcançado acima dos seus trigais, foram arrojados ao açude. Era uma flauta perigosa, aquela! Por sorte partiu-se ao dar a primeira nota. e ainda bem que assim foi ! O professor mete-a no bolso, dizendo:

- Cada coisa no seu lugar!

No dia seguinte ninguém mais falou no caso, e foi então que nasceu a expressão: " meter a flauta no bolso", que noutros países significa: " meter a viola no saco."

Quanto ao mais, tudo voltou ao antigo estado, isto é, continuou como dantes. A única modificação foi a dos retratos do casal de velhos: o mascate e a pastora estavam na parede do salão de festas, no lugar onde os colocara a ventania.

E como um perito de arte declarou que eram obra de mão de mestre, foram devidamente restaurados, e ali ficaram : "Cada coisa no seu lugar!"

Longa é a eternidade - e o mundo dá muita volta!

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