quinta-feira, 28 de julho de 2022

Lima Barreto (Um fiscal de jogo)

Conheci e conheço Antunes Segadas Bustamante. Quando, porém, o conheci, há anos, era um pronto, mais pronto ainda do que eu. Era cuidadoso com o seu corpo e a sua roupa e tinha meios e modos de sempre andar com ternos novos e bengalas de apuro. Ninguém sabia como ele arranjava aquilo, tanto mais que todos o sabíamos honesto.

Ele viera ao Rio de Janeiro estudar qualquer coisa, mas não se formara em nada. E, como quem não se forma em nada tem a mania de que é poeta e jornalista, dado a frequentar as rodas de poetas e jornalistas. Não tinha jeito para a coisa, aos poucos foi deixando de publicar sonetos nas revistas e crônicas insulsas (insossas) nos jornais de pouca circulação. Não era nem mau, nem bom rapaz, era um simples e tolerável companheiro. Não fumava, não bebia. Sentava-se no café, ouvia o que os mais sábios diziam, guardava-lhes as opiniões e ia repeti-las em outro grupo como sendo dele.

A sua ambição era um emprego e casar bem, e para casar bem, era preciso ter um bom emprego. Uma coisa era função da outra. Por isso, ele desdenhava os empregos de amanuense e escriturário e “cavava” coisa melhor. Era tenaz e nunca cedeu em tal propósito, no que fez bem, como veremos.

Veio a agitação nacionalista e ele logo se alistou num dos muitos clubes que têm esse qualificativo. Com a força que dá falso entusiasmo, Antunes conseguiu sobressair na “causa”. Aproximou-se das altas personagens da República, fez-se conhecido delas, não deixava de cumprimentá-las na rua, frequentava-as e procurava sempre. Enfim, mostrava-se.

Surgiu a regulamentação do jogo, com impostos sobre as respectivas casas, fiscais e todo um aparelho de sociedade, para tornar sério o pano verde e dar dinheiro ao Estado severo e paternal.

Bustamante logo ambicionou um lugar de fiscal, cargo lucrativo e, para obtê-lo, pôs em campo todas as suas relações e toda a sua tenacidade.

Interessou fulano na sua pretensão, rogou a beltrano, falou a sicrano e conseguiu a coisa.

Depois de nomeado, foi há dias que o encontrei e, após os cumprimentos, perguntei-lhe:

— Como te tens dado com o lugar?

— Magnificamente! Ceio lautamente todas as noites, vejo lindas mulheres e bebo champanhe a rodo. Tudo isto de graça. Não é bom?

Fonte:
Lima Barreto. Histórias e sonhos. 2a. edição. Publicado originalmente em 1951.

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