domingo, 10 de julho de 2022

Raul Pompéia (História cândida)


Vou contar-lhes hoje uma história cândida, a história da Rachadinha. Cândida pela heroína, não tanto pelo assunto.

Rachadinha chamava-se assim por ser filha de João Vasco Rachado, correeiro, que por sua vez possuía esse extravagante apelido por causa de um traço de família que de pais a filhos distinguia a sua gente do resto da humanidade. A natureza, humorística que se diverte a rachar beiços, ranarizes, rachar queixos, como é tão comum, rachava-lhes a orelha ao nascer com um pequenino talho.

Vou contar-lhes a história de Rachadinha, uma pobre menina que perdeu, quer dizer, que perderam.

Era cândida, disse eu, antes ingênua.

Nada conheço mais arriscado, e logo arriscado para dois, nada mais arriscado do que uma menina ingênua. Rachadinha (não lhe sei outro nome) era ingênua. De sorte que se aplicava a fazer ingenuidades, enquanto o pai, correeiro, fazia correias.

Namorava, por exemplo, ingenuamente, quer dizer, deixava-se namorar. Passava horas e horas, numa tripeça de pinho à porta da loja, vadiando infinitamente, de saias curtas e tamanquinhos, sem meias, prendendo os calcanhares dos tamancos ao travessão da tripeça.

Lia então jornais. Ela sabia ler: um luxo de escola pública que o zelo paterno cuidara em proporcionar-lhe muito cedo. Lia muito jornais, sem escolha: do dia ou da véspera, da véspera ou do ano passado, conforme vinham, embrulhando encomendas de remendo à indústria da oficina. Lia romances de rodapé, da melhor maneira de serem lidos, baralhadamente, ora de um jornal, ora de outro, encartando as aventuras da Gazeta nas do País, interessando-se muito por uma situação dramática que começava pela Gazeta da Tarde em Boisgobey e ia desprender-se pela Cidade do Rio, em Montepin.

Com uma tal facilidade de critério, não custa compreender como a donzelinha levava a existência, lendo também as horas e os dias sem atenção nem coerência, como se fosse a vida um longo rodapé de jornal, abstruso e confundido. Um meio sono de preguiça e ininteligência, que lhe era suave, por isso que o pai, que não tinha recursos para dar-lhe gozos, caprichava esforços para poupar-lhe a mínima contrariedade.

Passava assim o melhor do tempo, ali, na tripeça, como um mostrador de porta, escandalizando, perturbando o trânsito com a presença de sua beleza, enchendo a rua, o arrabalde, com a irradiação perene da sua reputação de formosíssima.

E era bonita a valer, o diabo da pequena! Vasco Rachado, seu pai, era brasileiro e mestiço. A mãe era uma italiana, já morta, que alguns tinham conhecido na loja e que afirmavam ter sido bela. A Itália dera-lhe os olhos negros, onde morava a febre da campanha de Roma, onde vivia a lenta insônia do vulcão de Nápoles, onde nadava a onda tarda dos canais venezianos e a gôndola sonolenta; o Brasil fizera o resto: a pele de pêssego que lhe forrava as formas, mil frutos tenros despidos para vesti-la, e o sabor acre, de aguar a boca, que lhe transudava a beleza, como a impressão reflexa da pitanga, do tamarindo, do cajá dourado... Façam lá por sua conta um juízo como possam, daquela soberba moreninha a ponto de quinze anos, que um banho róseo de sangue e saúde fazia arder, sobre a tripeça, como um braseiro de corações.

O pai venerava-a, pobre operário sórdido, com acanhamento, como confundido de ser pai daquele milagre.

Ela, entretanto, ingênua, nada sabia disso. Sempre a mesma. Bela! Era a voz dos outros; pouco se lhe dava. Também, havia na loja um aprendiz levado, que, quando o mestre estava fora, vinha devagarinho, por trás dela na tripeça e repuxava-lhe o paletó para beijá-la na espinha, no meio das costas. E ela nem percebia a cócega. Que tinha ela com isso? O beijo era dos outros.

Havia tempo em que o pintor Juvenal, vizinho da frente, não lhe tirava de cima os olhos. Ela não percebera ainda. Mesmo por isso, não se dava ao trabalho de rebater a barra da saiazinha impúbere que ainda usava, quando a posição na tripeça descobria-lhe mais algumas linhas de canela.

Sucedeu que um dia, o pintor Juvenal, passou pela tripeça e entrou na loja de João Vasco. Vinha trazer encomendas.

Preparava-se para uma excursão artística no campo, donde pretendia tirar paisagens d'après nature. Queria que João Vasco lhe fizesse umas pastas ou bolsas especiais para o transporte de objetos de sua arte e, além disso, que lhe fixasse uma correia à caixa das tintas, de modo que fosse possível levá-la a tiracolo.

— Pregue-me aqui assim, assim... Olhe assim, deste jeito...

João Vasco observou que era melhor o contrário, parecia mais natural com as dobradiças da caixa para baixo.

— Ora, tem razão! Estava eu pedindo uma asneira...

E estava besta, efetivamente, o nosso Juvenal, sentindo Rachadinha a dois passos dele, respirando-a como um aroma bêbado, no cheiro das graxas da oficina, no fedor das grandes pelancas de couro curtido, que caíam tesas pelas paredes ao redor. Rachadinha, entretanto, nem sequer o vira entrar, preocupada com um rodapé muito interessante do Diário de Notícias, que tinha outro embaixo, do Novidades, que ia servir, daí a pouco, de continuação.

Depois desta entrada, houve outras visitas do pintor Juvenal.

Depois das duas bolsas da primeira encomenda, seguiram-se outras bolsas, uma série inacabável de bolsas...

E ele vinha saber do trabalho e tomava uma banca para admirar a perícia do correeiro...

As paisagens d'après nature, já se sabe, adiadinhas para o largo futuro. Na ocasião, muito mais o preocupava, d'après nature, um desenho de figura.

— Tento contigo! diziam as murmurações da rua inteira. Não dê cuidado, replicava ele, nós cá, pintores, é só plástica...

Quando o correeiro percebeu o sentido exato da encomenda de Juvenal, abriu-se-lhe um grande claro de alegria n'alma.

Desde muito lhe ocorrera a ideia de um noivo para a filha. E ele o desejava intimamente como um guarda para aquele tesouro que lhe não cabia nas mãos, alguém que o libertasse daquela esplêndida pessoazinha, cuja presença ali o envergonhava de ser humilde, daquele adorável trambolho que lhe vexava a liberdade de ser pobre.

Aceitou então o pintor, exultando. Passou a recebê-lo no interior da loja, na saleta de jantar, onde havia, perto de umas vidraças de área, uma mesa preta, de abas pendentes como orelhas de cão, que se erguiam para o serviço. Bebiam. Palestravam em boa companhia, Rachadinha presente sempre, em cândido silêncio ou cortando a palestra com disparates ingênuos.

Passou depressa a facilitar a qualquer hora solidões de noivados aos supostos noivos. Junto da mesa, ficaram os dois calados da primeira vez. A menina, abstrata, enrolando no dedo uma ponta de cordel, Juvenal, incendiado, na contemplação ardente da menina. Fora, na oficina, ouvia-se o correeiro batendo a sola.

Depois familiarizaram-se. Rachadinha mostrava a Juvenal bonecas antigas, malfeitas e sujas, trazia-lhe álbuns infantis para mostrar as pinturas, metia-lhe nas mãos agulhas de crochê e novelos para ver o que saía. Tudo a sério, com um sorriso quando muito, na sua maneira inocente de criança grave; sem reparar que o pintor beijava-lhe as mãos, os pulsos, pegava-lhe a cintura sem reparar que ela mesma tocava-lhe ao outro joelho com joelho, quando ensinava o chochê e pousava-lhe os seios nos ombros para mostrar estampas.

Juvenal bebia em êxtase toda aquela simplicidade deliciosa.

Uma noite que ela estava mais calada e mais distraída que de costume, Juvenal ouviu-lhe bruscamente:

— Não acha esquisito?... nós aqui sozinhos!...

Fora, na oficina, ouvia-se João Vasco, batendo a sola do serão.

Essa pergunta a Juvenal alvoroçou-lhe um fogo novo em toda a natureza.

— Não acho, não, disse em tom de grande calma... Demais, sabe... eu sou pintor...

— Ah, então és pintor?...

Juvenal foi deixando gradualmente a calma.

— Sim, sim... tudo!... Sou pintor, queridinha. Não sabes?... A pintura é inocente. Nós, pintores, temos para as mulheres uma admiração pura. Inteiramente pura, meu bem! Os outros buscam amor: nós queremos modelos. Uma menina... que fortuna para nós! Despimo-la, meu anjo! acomodamos num cavalete, num estrado, numa posição qualquer, e ficamos adiante, adorando a forma. Depois, temos a tela, tomamos um carvão, os pincéis... Vamos passando para a tela o feitio do corpo. Com a tinta fazemos caros cabelos, os bonitos olhos. Dai a pouco, em vez de uma bela menina há duas: a que fica no quadro para sempre, como uma coisa de se adorar, e a outra, que se veste e parte, com um beijo do artista na fronte... Estás aqui comigo... É como se não estivesses. Ah! um beijo do artista! Não sabes, anjo! anjo! o que é um beijo de artista? É sempre casto: nós beijamos estátuas! Tens medo de mim, agora? da minha adoração platônica?!... Tens? tens medo?...

Rachadinha não entendia muito aquilo. Viu bem, contudo, que a cadeira de Juvenal caminhava para ela aos saltos, enquanto o pintor falava.

— Que é isto. – exclamou surpresa, sentindo um braço brusco pegar-lhe a cintura com muita força.

— Nada de mal!... Eu sou pintor, minha queridinha. – murmurou Juvenal, prendendo-a e enchendo-lhe o ouvido de fios de bigode e repetidos beijos.

— Mas espere!... espere um pouco. - pediu ela, relutando.

Mas o braço fechava-se cada vez mais rijo ao redor da cintura, e os bigodes ásperos arranhavam-lhe a face toda, colando cáusticos de beijos.

— Eu sou pintor!... Eu sou pintor!...

Era tão sincera a veemência daquela desculpa, que Rachadinha começou a achar razão no rapaz. Desde que ele era assim pintor, ela foi cedendo...

Juvenal estava fora de si. Um lampião de gasolina no meio da mesa, de luz baixa, oferecia urna meia obscuridade cúmplice. Percebendo que a resistência decrescia da parte da moça, Juvenal, assaltou-a como uma fera. Dilacerou-lhe a roupa, para morder-lhe o seio.

— Eu sou pintor... Eu sou pintor... – balbuciava sem mais ligar sentido às palavras.

Do corpo da moça desprendia-se aquele cheiro de couros que o entontecera um dia; das roupas impregnadas do ambiente da oficina, crescia uma emanação grosseira, bestial de vernizes e curtume que o encarniçava.

O movimento da luta, o pudor do assalto, o calor da noite na saleta, a chama da gasolina purpureavam divinamente a carne morena da vítima. Juvenal estava perdido.

— Eu sou pintor, gaguejava em ofego. Queremos modelo... modelo... modelo...

A moça não lutava mais. Juvenal caiu com ela para o escuro embaixo da mesa, como para um abismo.

Soube ser pintor o platônico!

Na oficina, o correeiro continuava a martelar o serão.

Conclusão, a esperada. Ventre, fuga do pintor, desespero paterno, um pouco de polícia no meio, e a vida como dantes.

Rachadinha sempre a mesma... na sua tripeça. Quando alguma conhecida petulante pergunta rindo o que foi aquilo, ela apresenta uma trombinha de Santa Ingenuidade:

— Como ele era pintor...

Somente para o correeiro, ela perdeu um pouco aquela auréola de superioridade que o acabrunhava.

Fonte:
Raul Pompéia. Contos. Núcleo de Pesquisas em Informática, Literatura e Linguística da UFSC.

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