terça-feira, 12 de julho de 2022

Miriam Leitão (O poeta e as palavras órfãs)

Quando um poeta morre as palavras ficam órfãs. Cada poeta é único e sabe do seu labor. Desentendido de tantos, o ofício é delicado e misterioso. Por que os versos escolhem umas pessoas e não outras? E por que passam a ser de todos após lapidados? Sabe-se pouco da poesia. Apenas que dela nada se sabe.

Não tenho bens de acontecimentos.
O que não sei fazer desconto nas palavras.
Entesouro frases.
Manoel de Barros


Esta semana ele nos deixou. Fiquei numa tristeza! Viveu tanto. Quase um século, recluso no seu pantanal. Quando foi embora, versos dele aparecerem no Twitter em lamento e eu fiquei com aquela necessidade urgente da sua poesia.

Que a palavra parede não seja símbolo
de obstáculos à liberdade.


Estava em Brasília e meu livro Poesia completa — Manoel de Barros, no Rio de Janeiro. Foi presente de um amigo querido a quem nem sei se agradeci direito. Na cabeceira grande que fiz para colocar muitos livros, como sonhei na infância, está lá o poeta. Tem boa companhia. João Cabral, Drummond, Cecília.

São tantos e tão grande a cabeceira — rodeia a cama inteira — que eu perco os livros algumas vezes, mas sabia onde aquele estava e tinha precisão.

Foi uma semana dura de muito trabalho e pouco sono. Palestras, aulas, entrevistas, comentários, colunas e crises. A fiscal é crise velha, porém reaparece todo dia.

Os políticos: os que perderam mandato, os que querem ganhar, os que vão dar o troco, todos iam de um lado para outro como formigas confusas quando perdem o centro do formigueiro. Fui ao Planalto, de lá olhei Brasília. É bonita a vista.

Manoel de Barros fazia poesia sobre bichos, sobre pássaros, sobre água.

No chão da água
luava um pássaro
por sobre espumas
de haver estrelas.


A semana dura terminou num dia longo, cheio de acontecimentos. Todos presos. Os suspeitos de sempre, mas que nunca eram visitados pela lei. A polícia chegou e disse que era o dia do juízo final. A sujeira é muita, o povo desconfia. Daqui a pouco: todos soltos. Bons advogados. No entanto, o dia, véspera do aniversário da República, foi bem republicano. Os jornalistas tiveram muito o que fazer. A economia e a política foram parar na polícia. No fim da sexta, comecei a voltar para o Rio. O Brasil ainda estava confuso. Escrevi a coluna enquanto o avião atrasava.

Chove torto no vão das árvores.
Chove nos pássaros e nas pedras.

Tinha dito ao autor deste blog, ao ver a chuva cair forte sobre uma Brasília nervosa com a prisão dos empreiteiros, homens de posses e doações, uma frasezinha assim: "Que a chuva lave e não me leve."

Não devia ter dito, porque quase que o avião não sai. Espera longa no fim do dia, atraso demais dentro do avião, fila grande para pegar o táxi, e uma mulher ainda caiu em cima da minha mala. Pedi mil desculpas. Achei que tinha colocado a mala no caminho. Ela disse que caiu porque estava olhando "pra ontem" e que minha culpa era nenhuma. Era noite e o trânsito estava todo fechado no Rio. Demoro a chegar em casa. Estava exausta da semana e do dia, longos demais.

Na minha cabeça, a poesia única de Manoel de Barros: "O sentido normal das palavras não faz bem ao poema." Tentava me lembrar de cabeça, mas era difícil.

Ir recebendo um pouco de poesia no peito
Sem lembranças do mundo, sem começo...


Foi chegar em casa e me preparar para descansar de tanto trabalho. Apaguei a luz para dormir, quase dormia, quando a precisão ficou forte demais. Acendi a luz de novo, puxei lá debaixo numa das pilhas dos livros, sabia onde estava, derrubei os outros, eles hão de me desculpar, necessidade forte. Abri meu Manoel de Barros e li aos saltos o que está salteado neste texto doido.

Concluindo: 
há pessoas que se compõem de atos, ruídos, retratos.
Outras de palavras.
Poetas e tontos se compõem com palavras.

Dormi muito bem. Sonhei que escrevia um artigo que começava assim: "Quando um poeta morre, as palavras ficam órfãs."

Fonte:
Miriam Leitão. Refúgio no sábado. RJ: Intrínseca, 2018.

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