quinta-feira, 2 de novembro de 2023

Marques de Carvalho (O banho da tapuia)

Clareara há pouco a manhã e o dia anunciava-se formoso, na serena pompa das galas equatoriais. Todo o céu escancarava a limpidez da abóbada de turqueza, à espera do sol. Tênue viração suspirava nas ramarias do mato, de onde vinham o papaguear dos periquitos, arrulhos de rolas, trinados de aves invisíveis. Pela praia arenosa, as garças, pousadas sobre folhagens rasteiras, nos milharais grandes, estranhas flores de imaculada alvura. E rente à agua, atravessando o rio caudaloso, um bando de marrecos desdobrava a escura fita do seu voo compassado, quase de margem a margem.

No alto da ribanceira, ao fim do caminho do sítio, entre dunas verdejantes de ajurús (tipo de árvore pequena), apareceu Hortência, a jovem tapuia. Vinha estremunhada ainda. Nas pálpebras, que longos cílios ensombravam, demoravam-se preguiças de sono. A úmida polpa dos lábios tinha esboços de bocejos. O farto cabelo, preso pelo pente de tartaruga ao alto da cabecinha doidivana, a custo se fixava ali, não tão bem que, rebelde, não formasse dos dois lados da nuca, sobre os ombros, pesadas quedas sedosas.

Deteve-se a rapariga, mordiscando folhas silvestres. Seu olhar devassou o listrão serpeante do rio deserto de embarcações e foi-se para o alto, a mirar o nascente enrubescido. Mas a frescura da riba fustigou-lhe os tenros membros mal vestidos pelo saiote curto e pela camisinha branca, de decote rendado. Estremeceu Hortência num arrepio e, alongando os braços, gemeu voluptuosa no derradeiro espreguiçamento matinal. E, já deslaçando o cós da saia, desceu a correr para a água, pregozando a delícia do banho.

Minutos depois, caindo pelos quadris a camisinha cheirosa, Vênus tapuia ostentava na claridade da manhã o encanto irresistível da sua juventude, a triunfal perfeição de sua nudez.

No matagal, houve como um redobramento de canto de passarinhos, ao tempo que o sol, vencendo a floresta, mordia com a tepidez dos primeiros raios as carnes morenas de Hortência. Chapinharam os pequeninos pés; a frialdade líquida provocou brandos ofegos: começara o banho da tapuia.
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Um tempo demorado esteve a rapariga dentro da água. Quem pode resistir à tentação de um banho ao ar livre, na costa marajoara, pela manhã? Já o sol, aguçando os quentes dardos, vencera larga distância pelo espaço. A ela, porém, pouco importavam os insidiosos ataques do astro. Sem parar um momento, ora percorria consideráveis extensões a nado, à flor do rio, ora caprichava em experimentar o próprio fôlego, com aturados mergulhos. Quando emergia a formosa cabeça atrás da qual a correnteza espalhava a negra cabeleira, tinha nos olhos uma jucunda expressão de gáudio, tentadoramente. Ali estava uma das mais requestadas mulheres de Soure, ignorante dos próprios méritos, apenas interessada no desfrute das sensações de bem-estar proporcionadas pela imersão no rio. No entanto, descrer da existência das sereias amazônicas certo não poderia quem a visse então, no banho, erguendo sobre a superfície das águas o bronzeado busto palpitante, de que se destacavam, numa sedução vertiginosa, as linhas corretíssimas dos pequenos seios virginais.

Tais eram, por certo, as reflexões que também estava a fazer, mirando-a, o negro Manoel, por entre as folhagens que limitam o areal da praia. Filho de africanos, enamorado, atrevera-se a amar Hortência. Feio e boçal, bem compreendera a impossibilidade desta paixão pela criatura que tantas vezes repudiara varonis caboclos das fazendas e até dengosos brancos da cidade. Mas o que não pudera evitar e ninguém no mundo conseguiria impedi-lo, era essa cotidiana emboscada, para a ver no banho. Cada dia, não trinavam ainda os primeiros pipilos dos pássaros, já ele estava entre os montículos de areia, agachado na verdura, à espera da tapuia. Enxerga-la nua, era a sua alegria suprema. Não lhe perdia um gesto; nem uma só linha daquele corpo desejado deixava de ser perscrutado, beijado, deflorado pela sua lascívia de hotentote. Concentrava nos olhos todos os arrancos de um vigoroso anseio de posse. Os apetites libidinosos da sua raça ferviam-lhe no peito, à vista da rapariga. Entretanto, jamais ousara sair-lhe ao encontro. É que o receio de uma repulsa quase certa e a consequente descoberta do seu criminoso recurso, detinham-lhe o atrevimento, limitando-o hoje à mesma observação inerte de muitos meses antes. E quem o divisasse mais de uma vez ali parado perante a conturbativa visão, diria erroneamente que, à força de a admirar com respeito, o negro ao fim depurara os desejos, transmudando-os em culto á beleza incoercível.

O momento, porém, que ele, o africano sórdido, mais prezava, era aquele em que Hortência, saindo da água, vinha secar aos toques da brisa a nudez amena do corpo. Ei-la justamente que nada para a beira, fatigada enfim dos prolongados brincos. Já tomou pé e a pouco e pouco vêm aparecendo os braços, o busto com os seios e a doce curva abdominal, os quadris salientes, as roliças pernas, toda a perfeição de linhas femininas; já palmilha sobre a areia, que lhe cobre os pés como com um par de sandálias de missanguinhas brilhantes. E agora, o mádido corpo fica ereto aos beijos do vento, enquanto os longos cabelos pendem sobre as costas, gotejantes. É esta a feroz alucinação do negro. Toda a formosura da virgem ali está patente à sua vista, na majestade do quadro paraense, saudado pelo trinar das aves. Bastar-lhe-ia dar alguns passos, reflete, e estender as mãos, para alcançar e possuir tamanha perfeição. Detém-no, contudo, o receio de trair-se. E o medo de perder a posse mental da tapuia que o inibe de saltar para junto dela, bramando como sátiro silvícola.

Inocente e tranquila, sem desconfiar da luxuriosa surpresa, a banhista, num gesto peculiar, que desvenda o emocionante emaranhamento das axilas, toma os cabelos, torce-os à direita, esgotando-os e os enastra (ata com fita) em trança farta, que prende sobre a cabeça. Veste depois a camisa, passando por último a saia de riscado azul. E ainda amarrando-lhe o cós, dirige-se cantando por entre as dunas cobertas de ajurús, até o caminho que leva ao sítio.

Só então, o negro Manoel sai do matagal, corre à praia, ao ponto onde, momentos antes, estivera a tapuia. Tem os olhos injetados de sangue, os lábios entreabertos: arqueja. O rosto, coberto de ralos pelos que se juntam em ponta bipartida sobre o mento (queixo), é bem o de um fauno espicaçado pela animalidade da berra (cio). Revolve-se no chão, gemendo em ansioso deliquio (prostração) de erotômano. E, para acalmar o veemente anelo insatisfeito, espoja-se, crava os dentes no solo, — esfrega as faces e a fronte no lugar onde a água, escorrendo do corpo da rapariga, tinha ensopado a areia, enchendo-a de frescura.

Do seio da mata, sobe, expirando à distancia, o canto jovial da tapuia; e ali perto, qual ironia da floresta, uma ave sibila persistente a escarninha palavra que lhe deu o nome:

— Bem te vi!

Fonte:
João Marques de Carvalho. Contos do Norte. Belém/PA: Typographia Elzeveriana, 1907. Disponível em Domínio Público. Convertido para o português atual por JFeldman.

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