O pequeno Santo de pedra ocupava um nicho escondido numa ala lateral da velha catedral. Ninguém se lembrava muito bem a quem ele pertencera, embora tal fato constituísse de certo modo uma garantia de respeitabilidade. Pelo menos era isso o que o Duende dizia. O Duende era um belíssimo espécime antigo de pedra cinzelada, e encontrava-se instalado sobre uma mísula* que se sobressaia da parede fronteira ao nicho do pequeno Santo. Relacionava-se assim com alguns dos mais distintos habitantes da catedral, tais como as pequenas e bizarras esculturas dos bancos do coro e da divisória de madeira que separava o altar-mor do resto do templo, e até as gárgulas alcandoradas nas alturas do telhado. Todos os animais e homúnculos fantásticos que se acaçapavam ou se espiralavam em madeira ou pedra ou chumbo lá no cimo das abóbadas, ou ao fundo da cripta, eram de certo modo seus parentes; tratava-se portanto de um ser de reconhecida importância no mundo da catedral.
O pequeno Santo de pedra e o Duende se davam muito bem, embora tivessem pontos de vista diferentes sobre a maior parte das coisas.
O Santo, um filantropo à moda antiga, pensava que o mundo, tal como ele o via, era bom, mas poderia ser melhor. Particularmente, compadecia-se dos ratos de igreja, que eram miseravelmente pobres. Por outro lado, o Duende entendia que o mundo, tal como o conhecia, era mau, embora considerasse preferível não tentar reformá-lo. Fazia parte da natureza dos ratos de igreja serem pobres.
- Mesmo assim - dizia o Santo -, sinto muita pena deles.
- Claro que sente - dizia o Duende -, é da tua natureza sentir pena deles. Se deixassem de ser pobres, o senhor não poderia preencher as suas faculdades de Santo. O seu lugar se transformaria numa sinecura*.
Sua esperança era de que o Santo lhe perguntasse o que era "sinecura", mas ele refugiou-se num silêncio de pedra. Talvez o duende tivesse razão, pensava ele, mas de qualquer forma gostaria de fazer alguma coisa pelos ratos de igreja antes que o inverno chegasse. Eram uns pobres coitados! Enquanto refletia sobre esta questão surpreendeu-se com algo que lhe caiu aos pés, produzindo um pesado tilintar de metal. Era uma moeda de um taler novinha em folha; um dos corvos da catedral, que costumava colecionar objetos diversos, voava com a moeda no bico até uma cornija de pedra que ficava bem em cima do nicho do Santo, enquanto o bater de uma porta lá na sacristia veio a sobressaltá-lo, soltando assim sua presa. Desde a invenção da pólvora para a caça que os nervos dos corvos já não eram os mesmos...
- O que foi que caiu aí? - perguntou o Duende.
- Um taler de prata - disse o Santo. - É muita sorte; agora já posso fazer alguma coisa pelos ratos de igreja.
- Fazer, como? - perguntou o Duende.
O Santo parou para pensar.
- Vou aparecer em visão para a empregada que varre a igreja. Direi a ela que irá encontrar um taler de prata entre os meus pés e que deverá apanhá-lo e com ele comprar farinha e deixá-la no meu nicho. Quando encontrar a moeda, ela entenderá que o sonho era verdadeiro e se apressará para cumprir minhas instruções. Assim os ratos terão comida para todo o inverno.
- Claro que você pode fazer isso - observou o Duende. - Quanto a mim, só consigo aparecer em sonhos para as pessoas depois que tenham jantado bem tarde um prato cheio de comida pesada. As minhas oportunidades com a empregada seriam portanto bastante limitadas. Afinal de contas, ser canto sempre tem lá suas vantagens.
Enquanto isso, a moeda continuava aos pés do Santo. Estava bem lustrosa e rutilante e mostrava numa das faces uma bela estampa das armas do Eleitor. O Santo pôs-se a pensar que tal oportunidade era rara demais para ser desperdiçada precipitadamente. Talvez a caridade indiscriminada se tornasse nociva para os ratos de igreja. Afinal, era da natureza deles serem pobres, como dissera o Duende, e o Duende em geral tinha sempre razão.
- Estou pensando cá comigo - disse a seu vizinho - que seria muito melhor se eu, em vez de farinha, mandasse comprar velas para serem colocadas no meu nicho.
Desejara muita vezes, por mera questão de salvaguardar as aparências, que acendessem de vez em quando uma vela no seu nicho; mas como há muito tinham esquecido quem ele fora, as pessoas achavam que não valia a pena investir o dinheiro de uma vela para lhe prestar uma homenagem de rendimento bastante duvidoso.
- As velas são bem mais ortodoxas - disse o Duende.
- Com toda a certeza - concordou o Santo -, e os ratos poderão comer os cotos das velas que são muito nutritivos.
O Duende era educado demais para piscar o olho; além disso, sendo um duende de pedra, isso estava além das suas possibilidades.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =
- Ora, ei-la, não tenho dúvida! - disse a empregada da limpeza, na manhã seguinte. Pegou a moeda rutilante do gélido nicho e revolveu-a várias vezes nas mãos enegrecidas. Depois levou à boca e mordeu-a.
"Será que ela vai comer a moeda?", pensou o Santo, fixando nela seu granítico olhar.
- Ora, bolas! - exclamou a mulher, num tom ligeiramente mais agudo. - Quem haveria de dizer? E ainda por cima um santo!
Depois, proferiu um palavrão que não devemos repetir. Procurou no fundo do bolso um pedaço de pano, atou-o na transversal com uma grande laçada em torno da moeda e pendurou-o no pescoço do pequeno Santo. Em seguida foi embora.
- A única explicação plausível - disse o Duende - é que a moeda seja falsa.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =
- Que condecoração é aquela que colocaram no meu vizinho? - perguntou um dragão alado talhado no capitel de um pilar ao lado.
Arrasado, o Santo sentia-se a ponto de chorar, só não o fazendo por ser de pedra.
- É uma moeda de... hm!... de um valor fabuloso - respondeu o Duende, com muito tato.
E correu a notícia por toda a catedral de que o nicho do pequeno Santo de pedra fora enriquecido por uma inestimável dádiva.
- Afinal de contas, sempre serve para alguma coisa ter uma consciência de Duende - disse o Santo, lá com seus botões.
E os ratos de igreja continuaram tão pobres como antes e como sempre. Mas isso já é outra história.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =
* NOTAS
Mísula =Suporte sobre o qual se coloca um objeto de arte.
Sinecura =Cargo ou trabalho bem remunerado que não requer muito esforço.
Fonte> Flávio Moreira da Costa. Os Cem Melhores Contos de Humor da Literatura Universal.
Disponível em Domínio Público.
Nenhum comentário:
Postar um comentário