quinta-feira, 5 de maio de 2011

Sérgio Napp (Da Arte da Palavra ao Prazer da Leitura) Parte 2


Dos sessenta e nove anos que carrego, com certa facilidade, sessenta deles, por certo, dediquei, entre milhares de outras coisas, à arte de catar palavras. Parece-me que trabalho com as palavras desde sempre ou, pelo menos, desde o primeiro ano do primeiro grau (naquele tempo, primário). E não julgo que tenha sido em vão.

O primeiro jogo de cartas a dinheiro; a perda do mesmo e o medo em contar para o pai. A primeira dança com a menina que, mais tarde, voltaria a encontrar em outras circunstâncias. As brincadeiras com os amigos conquistados na ocasião, as correrias pelos caminhos desvendados. Enfim, um pedaço da infância que se perdeu no tempo. E daquele território, livre de qualquer restrição, a primeira palavra descoberta que lembro. Digo a primeira porque é a que a memória registra neste momento em que cato as palavras para escrever esta crônica.

Disbordar. Isso mesmo, disbordar era a palavra encantada que me trazia um som diferente e um sentido que não percebia muito bem. Claro que a empreguei na primeira redação daquele ano que se iniciava. E causou espanto. Por este espanto, dediquei-me a outras. E outras. Procurar palavras desconhecidas ou cujo sentido fosse, ao menos, estranho passou a ser meu secreto desejo.

Dou-me conta disso tudo ao falar para um grupo de estudantes noite dessas. Dou-me conta, agora conscientemente, que em grande parte da minha vida fui um trabalhador da palavra. Um palavrador. E tem sido uma experiência incrível!

Surgem, as palavras, nas horas mais estranhas. Numa fria madrugada me acordam, me sacodem e dizem: Levanta-te e anda! E que faço senão obedecê-las? Tiritando, saio atrás de caneta e papel para registrá-las. No ônibus, na fila do Detran, na corrida no parque. Quando menos prevenido me encontro elas me encontram. Numa reunião com amigos, no momento em que me preparo para um comentário qualquer, ela surge. Suspendo o gesto para recebê-la e brindo intimamente sua aparição. Os amigos não entendem. Que pode uma palavra, uma simples palavra, para perturbar um discurso? Ah, os amigos nunca entenderão, mas ela pode tudo.

Em outros momentos eu a procuro em desatino e ela não se revela. Busco a palavra certa para completar a frase perfeita e ela se esconde. Então não durmo, quase não converso, me disperso entre dicionários e pesquisas na internet, que o objetivo é um só: a tal da palavra. E ela, feito mulher bonita e desejada, se enche de brios, se faz de gostosa, de difícil, e não cede. Sofrer por ela é quase como sofrer por um amor impossível.

Eu, palavrador, tenho feito delas uma companhia de muitas e muitas horas, entre um cálice de vinho e um concerto de Bach. Tenho, com elas, uma luta cotidiana. Com várias derrotas e algumas vitórias. Que as palavras, caros leitores, não se rendem por qualquer elogio. Não se entregam a um simples toque de dedos. São orgulhosas, as palavras. Conhecem o seu valor. Maravilhosamente carinhosas, as palavras, quando sabemos conquistá-las.

Elas se divertem com os escritores que pensam que as têm em seu poder. Riem daqueles que imaginam que elas estão a sua disposição em qualquer circunstância. Mas se deliciam com os que entendem que uma palavra não é feita tão somente de símbolos e caracteres, mas que elas contêm segredos e artimanhas. Uma palavra, caros amigos, possui alma. Perversa com quem a desdenha; generosa com quem desvenda sua intimidade.

Eu, no meu ofício a respeito. Essa que se entrega e se deixa burilar, diamantemente esplendida e luminosa, por tantos escritores, o que me causa inveja. Essa que, de vez em quando, pousa em mim cheia de encantamento.

Fonte:
Artistas Gaúchos

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